Especial para o Correio - Laerte Rimoli
“João, meu 'sem raça definida', gosta mais de humanos do que dos assemelhados. Cheira os passantes, abana o rabinho, fica de pé por um afago”. “Estou feliz em ter trocado a casa por um apartamento”. “Meu filho saiu dos Estados Unidos e vive melhor no interior da França”. “Papai agora se cuida, faz fisioterapia, admitiu que precisa se mexer”. “Quanto tempo, como vai o senhor, arrumei trabalho na 305 Sul, vou visitá-los quando der”. O que têm em comum essas falas? Todas foram trocadas em fortuitos encontros domingueiros nas esquinas de Brasília. Mas, como? Brasília não tem esquina.
Perambulo pelas quadras da Asa Sul, as copas das árvores se fecham e formam corredores, coalhados de espatodeas no outono. Tropeço em flores cor-de-abóbora. O sol do Brasil Central penetra pelos desvãos. Vento fresco de maio perpassa a caminhada. A antiga banca de revistas virou um charmoso café. Mesinhas na calçada. A padaria chique mudou do meio da quadra para a esquina, na comercial da 306, ficou melhor. Noto que os brasilienses têm se apropriado cada vez mais dos espaços públicos, tornando-os efetivamente democráticos.
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Na minha toada, singrando pelas entrequadras da Asa Sul, há sempre surpresas. Jardins bem cuidados, fachadas de prédios restauradas e crianças ziguezagueando em bicicletas e patinetes. A Igrejinha é um point. Reza, hambúrguer e fotos na parede de azulejos do gênio Athos Bulcão. Se a fome aperta, a pizzaria Dom Bosco é logo ali. Se mudo de rumo, à direita, em linha perpendicular, me misturo ao furdunço do “Eixão da folia e do lazer”. Música sob árvores, barraquinhas com todo tipo de comida, churrasqueiras fumegantes e pula-pulas. Se desvio à esquerda, chego, em 10 minutos, ao Parque da Cidade. A algaravia de domingo, água de coco, gente de bike e a pé, toalhas estendidas no gramado.
Essa visão edulcorada do paraíso da classe média é, contudo, atravessada pela dura realidade. Moradores de rua, gente sofrida e mães desvalidas, com crianças nos colos, cruzam nosso caminho. Atestam o fosso social em que vivemos. Minha sugestão: nos dias de alma cinzenta, levante do sofá, sacuda a poeira e venha desfrutar da Brasília real. Cheia de esquinas, sob céu limpo e azul, cheiros e sabores, plena de humanidade e amplos espaços. Abra o coração. Eu os convido a se misturar às mazelas e à beleza da metrópole. Ir ao encontro da gente brasiliense. Afinal, hoje domingo.
*Laerte Rimoli é jornalista
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