Por Sérgio de Sá - Especial para o Correio
Havia uma janela de correr no meu quarto, grudada no cobogó que dava para o lado de fora. Isso era na 710 Sul, nos anos 1970, e dali eu via meu cômodo imaginário na árvore em frente, dentro de um jardim que era para ser britânico, mas meus amigos e eu não sabíamos nada disso. Talvez o Falcon barbudo soubesse, sujeito criado na guerra imperialista entre mundos.
Essa zona verde entre os blocos das casas geminadas se deixava frequentar por habitantes e passantes. Nós, pequenos moradores, fazíamos longos torneios de bola de gude, traçando a pista de terra e seus buraquinhos no meio do gramado onde, claro, já não havia grama.
Também jogávamos bola sobre o surrado tapete natural, cada vez menos verde com o raspar dos kichutes e o passar do tempo. Era uma grama bastante malhada, mas ainda grama, com ou sem o famoso e temido personagem defensor das gramas oprimidas, o tal Graminha, que nunca me ameaçou nem nunca vi, para ser bem sincero.
Para completar o circuito, andávamos de bicicleta sobre a trilha aberta em meio ao mesmo gramado, além das calçadas traçadas previamente pela ordem urbana. Um pouco mais abaixo, o terreno inclinado, que vislumbrava a 711, permitia a descida dos carrinhos de rolimã, entre solavancos causados pela grama que brotava do cimento.
Por ali, as casas próximas eram todas mais iguaizinhas. Pertenciam à Marinha e tinham algo de assustador. Talvez estivessem naufragadas em mar que parecia mesmo muito remoto. Sim, a cidade celebrava a democracia da amizade na rua compartilhada em meio a essa mescla de natureza e concreto, enquanto escondia de seus filhos a política adulta que dava carteirada, emparedava, ensinava moral e cívica, invadia gramíneas discordantes. Praga difícil de arrancar.
A turma infantil masculina da quadra, que não era super, mas ainda assim quadra, tinha Beto Seba, Danilo von Sperling e Serjão Guimarães (eu devia ser Serginho, não me lembro bem), entre outros. Apesar de mais velhos, Eric e Jader, irmãos do Beto, e Moacir, Marcelo e Murilo, irmãos do Danilo, muitas vezes também entravam na diversão. Brasília era uma festa adolescente feita no cotidiano da casa estendida sobre o espaço comum.
Hoje, passados mais de 45 anos, é triste visitar algum amigo nas 700 e constatar as grades em torno de tudo, fechamento para um jardim pelo qual quase ninguém mais passa ou em que poucos pisam. Foi-se a convivência nesse lugar antes entreaberto. A vizinhança era real — de corpo e alma — e nos fez menos autômatos. Agora, nossa grama tem outra pegada. Ela é sintética.
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O projeto popular das 700 se reinventou, para o bem e o mal. E rendeu uma frase de efeito musical: o cobogó da casa geminada está fechado para nós, que fomos jovens em Brasília. Temos agora a oportunidade da memória enquadrada no texto de uma crônica, percepções que o querido Paulo Pestana, ex-ocupante popular e culto destas linhas, sabia identificar na canção do dia a dia.
Ao longo do tempo, a ideia original e utópica foi abrindo falhas visíveis pelo caminho, marcadas no olhar de quem aqui nasceu e ainda vive. Assim como os lares, as vidas também estavam geminadas. Mesmo quando cor de terra vermelha, a grama do vizinho não era sempre mais verde do que a minha. Era tão verde quanto a minha. Era nossa.
O curioso disso tudo é que minha galera alimentou o desejo de deixar, de ir embora. Para a geração das minhas filhas brasilienses, essa não é uma necessidade real. No rés do chão, o Plano Piloto encontrou novas frestas por onde respirar e repartir a alegria de viver. Outros gramados (e novos asfaltos) seguem sendo ocupados. E isso é ótimo: a esperança permanece na raiz dos nossos domingos.
# Sérgio de Sá é professor na Universidade de Brasília e autor de Bernardo Sayão: caminhos, afetos, cidades (sayaobernardo.com.br).