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Como o diagnóstico tardio de autismo impacta as diferentes fases da vida

O transtorno do espectro autista (TEA) está presente na vida de muitas pessoas. Para tratá-lo, é fundamental que seja identificado ainda na infância. No entanto, a falta de informações acaba atrasando o diagnóstico e trazendo prejuízos na fase adulta

Encontrar o seu lugar no mundo pode ser um desafio de anos. Em muitos casos, essa busca intensa é reflexo da necessidade de se encaixar e pertencer. Para quem é diagnosticado de forma tardia dentro do transtorno do espectro autista (TEA), essa procura tem ainda mais impacto e significado. E quando, enfim, o diagnóstico vem, vários são os sentimentos. Alívio e autoconhecimento são alguns deles, isso porque um passado inteiro de incompreensões passa a fazer sentido.

Estima-se que, hoje, há um caso de autismo a cada 44 pessoas nos Estados Unidos, conforme dados publicados pelo CDC (Center for Disease Control and Prevention), em 2022. Em nível nacional, não se sabe ao certo qual o número correto de brasileiros com autismo. No entanto, com base na estatística apresentada pelo órgão ligado ao governo norte-americano, o cálculo aponta um contingente de 4 milhões de indivíduos que vivem com TEA no Brasil.

Considerado uma alteração do neurodesenvolvimento, o transtorno do espectro autista é uma condição inata, que se manifesta desde a primeira infância. Carlos Uribe, neurologista do Hospital Brasília, da rede Dasa no DF, explica que os sintomas característicos incluem alteração no desenvolvimento normal da linguagem, dificuldade para as interações sociais e presença de comportamentos estereotipados. "Dentro do espectro tem casos com sintomas muito graves e outros com sintomas muito sutis, que inclusive podem passar despercebidos durante vários anos", ressalta.

As características centrais do autismo têm a ver com limitações ou deficiências nas habilidades sociais (cognição social), linguagem e comportamento. Segundo o neurologista, o assento dessas habilidades cognitivas está localizado em redes amplas de neurônios que têm seus epicentros no lobo frontal. Casos com sintomas muito sutis podem passar despercebidos durante a infância e a adolescência. Por isso, talvez, o diagnóstico tardio esteja presente na vida de vários indivíduos. São pessoas que, muitas vezes, eram chamadas de forma coloquial de "esquisitas" ou "diferentes", na avaliação de Uribe.

"Por se tratar de uma condição inata, há um componente genético/hereditário muito forte. É muito comum que, nesses casos de diagnóstico tardio, tudo tenha sido iniciado pelo diagnóstico de um filho, que faz perceber que alguns comportamentos e algumas experiências passadas dos pais poderiam estar explicados por um diagnóstico de TEA nos progenitores", completa o neurologista.

Autismo e depressão

"Desde a infância, eu me diferenciava das demais crianças." Larissa Argenta Ferreira de Melo, 40 anos, apresentava perfil introvertido, não gostava de toques ou abraços, tampouco de conversar ou fazer amigos. Estudava em um tradicional colégio particular, mas ninguém, jamais, suspeitou que o autismo fizesse parte da vida dela. Aluna destaque, com notas altas e bom desempenho, a desconfiança sempre passou despercebida. Naquela ocasião, só sabiam das altas habilidades/superdotação, mas não havia nenhuma adaptação curricular para isso.

Arquivo pessoal - Larissa Argenta

Com a chegada da adolescência, os problemas começaram a aparecer. Larissa tinha mau comportamento, tornou-se agressiva, arredia e faltava aulas. "Tinha uma sensação de tristeza, de inadequação, que, aos poucos, foi se transformando em desencanto pela vida, em vontade de não mais viver. Por esse motivo, a partir dos 17 anos, comecei a saga de internações psiquiátricas intermitentes, que perduraram até os 34 anos. O diagnóstico, à época, era transtorno afetivo bipolar (TAB), e experimentei todas as medicações existentes, mas nenhuma fazia efeito", relembra.

Aos 34 anos foi reavaliada por um psiquiatra que descartou o diagnóstico anterior, mas não conseguiu saber o que de fato ela tinha. Felizmente, à época, parou de tomar medicações erradas, o que melhorou bastante sua qualidade de vida. "Aos 38 anos, estava em um relacionamento com uma pessoa que tinha sido casada com uma autista. Ele disse que precisávamos fazer terapia para resolver questões da relação, mas, na verdade, era uma avaliação neuropsicológica, que resultou no meu diagnóstico de autismo. Esse foi um dos momentos mais difíceis para mim."

No começo, refutou completamente a avaliação. Larissa não aceitava o diagnóstico, pois afirmava ter "uma percepção capacitista" do autismo. Uma depressão profunda surgiu, o que gerou uma grave crise sensorial, somatizada em adoecimento físico. Depois de tantas dificuldades, como consequência, foi internada em setembro de 2022, em isolamento, com suspeita de tuberculose. Foram quase 10 dias sem conseguir respirar, tendo alterações nos batimentos cardíacos e perdendo eletrólitos.

"Como eu estava em risco de vida, aproveitei o momento de introspecção e reflexão para estudar sobre o que era autismo, como ele se manifestava em mulheres. A partir desse momento, tudo começou a fazer sentido, e o diagnóstico que antes me gerava dor passou a ser um instrumento de libertação. Tudo começou a fazer sentido, todas as dores, as dificuldades, as rejeições", acrescenta.

Luz na escuridão

Ainda neste período, decidiu que, caso não morresse naquele momento, dedicaria o resto da vida à causa autista, imaginando a quantidade de pessoas que viveram e morreram sem ter acesso ao diagnóstico. Larissa pensou, ainda, naqueles que sofriam na terapia, mentalmente e fisicamente, e em muitos que não têm condição financeira para buscar tratamento adequado. Essa crença, talvez, tenha a segurado nos dias ruins. E mais do que isso, passou a encarar a própria jornada com uma definição nunca experimentada antes: a de lutar por um motivo.

Por sorte, ela começou a melhorar e descobriu que estava com uma pneumonia atípica agressiva, mas tratável. Ao sair do hospital, colocou em execução o que havia planejado durante o período de internação. "Sabia que, ao assumir o diagnóstico, enfrentaria muitos preconceitos e dificuldades, mas não poderia me calar ou me omitir. O primeiro passo foi assumir o autismo no emprego", detalha.

Arquivo pessoal - Larissa Argenta

Servidora pública concursada desde 2005, ocupava função de chefia na ocasião. Ao apresentar o diagnóstico, foi imediatamente descomissionada, e luta até hoje na Justiça para reverter a situação. "Inaugurei um escritório de advocacia especializado na causa autista. Comecei a me articular com os movimentos ativistas, também das demais deficiências e síndromes. Tive a oportunidade de participar da criação da Comissão dos Direitos do Autista da OAB Subseção Taguatinga, a qual presido. Em outubro deste ano, tive a alegria de falar sobre autismo e diversidade na Conferência Nacional da Mulher Advogada da OAB Nacional, em Curitiba", conta Larissa.

Foi convidada pelo deputado Eduardo Pedrosa para integrar a Frente Parlamentar do Autismo; da Prevenção ao Suicídio, Depressão e Qualidade de Vida. Recebeu moção de Louvor do deputado Fábio Felix pela atuação na educação inclusiva. Começou a atuar junto ao Legislativo na luta pela inclusão. "Eu me uni ao Sindicato dos Bancários de Brasília no combate ao assédio moral aos autistas e seus familiares. Proponho projetos ao Executivo para a criação de políticas públicas. E me engajei em diversas redes e movimentos, ocupando cargos voluntários de natureza jurídica."

Propósito

Nada nesta nova fase parecia parar Larissa. Até que, no ano passado, foi diagnosticada com uma doença rara: SED (Síndrome Ehler-Danlos), que lhe causa bastante fadiga e limita sua capacidade de produção. No entanto, isso não a impediu de continuar atuando pela causa. Atualmente, consegue ficar pouco tempo em exposição social, o que a impede de marcar presença física em eventos. Mas, sempre que pode, afirma aceitar os desafios que se apresentam.

A cada dia que passa, Larissa enxerga que o diagnóstico tardio prejudicou seu desenvolvimento enquanto ser humano. Dores poderiam ser evitadas no passado, sofrimento em decorrência do desconhecimento e da desinformação sobre quem de fato ela era. "Olhando para trás, consigo ver todo o prejuízo social, profissional, educacional e relacional que essa situação me causou. Tenho profunda gratidão por ter tido acesso ao diagnóstico, de me entender, de me conhecer e buscar o meu equilíbrio", comenta.

Arquivo pessoal - Larissa Argenta

Grande parte dos dias de Larissa são dedicados a terapias e acompanhamentos médicos. Conta com diversos profissionais que a acompanham e que lhe ajudam a se manter sem crises. Por conta da SED, faz fisioterapia duas vezes por semana em clínica especializada. Cuida da alimentação, não toma leite nem glúten e evita açúcar refinado. Não lê notícias negativas, que possam desestabilizá-la emocionalmente, e escapa do excesso de telas. "Vivo cheia de regras, mas que me possibilitam viver em paz. Isso é libertador, e vou dedicar todo o meu empenho e capacidade para que o máximo de pessoas possam ter o direito de viver da mesma forma: em paz dentro de si mesmo." 

Um rosto desconhecido

Vários aspectos podem contribuir para o diagnóstico tardio de autismo, como a falta de informação sobre o assunto, que levaria a não identificação dos sinais ao longo da infância e da adolescência. Rafael Alberto Moore, professor no curso de psicologia do Centro Universitário Uniceplac, doutor em psicologia clínica e especialista em neuropsicologia, ressalta que algumas apresentações atípicas dos sintomas também podem dificultar a identificação do TEA.

Além disso, a falta de acesso a serviços e a profissionais de saúde durante a infância e a adolescência atrapalham a busca pelo diagnóstico correto, já que o retrato de informações e dados no que diz respeito ao tema são difíceis de encontrar. O processo de avaliação, na fase adulta, segundo Rafael, é similar aos primeiros anos de vida.

"Um neurologista ou um psiquiatra vai analisar o caso com apoio de outros profissionais que fornecem avaliações complementares, como um fonoaudiólogo e um neuropsicólogo, por meio de avaliação e aplicação de testes específicos. O autismo pode estar associado a quadros genéticos, que tornam o quadro mais provável, ou outros fatores genéticos e ambientais mais gerais. Como transtorno de neurodesenvolvimento, os sinais do autismo devem ser identificados desde as fases iniciais do desenvolvimento", discorre.

Muitos sinais também se tornam menos presentes nos adultos, que podem mascarar ou desenvolver capacidades de enfrentamento, o que torna difícil a avaliação. De acordo com Rafael, para o diagnóstico no adulto nem todos os sintomas precisam estar presentes no agora, se eles puderem ser comprovados em fase prévia do desenvolvimento, ou seja, um comportamento estereotipado ou repetitivo na infância, por exemplo, que não está mais presente no adulto, ainda é um indicativo de autismo.

Depois da descoberta

O autismo pode afetar importantes marcos do desenvolvimento, como o comportamento motor, a aquisição da fala, as primeiras interações, a maneira de brincar, a interação com o ambiente. “Muitas vezes, esses comprometimentos são pequenos, mas alcançam um grande espectro do desenvolvimento infantil. A criança pode ser identificada de forma pejorativa como estranha, tímida ou diferente”, alerta Rafael.

Se esses comprometimentos não chegarem a gerar impacto na aprendizagem, pode ser que os pais não procurem ajuda de um profissional, descreve o psicólogo. Isso porque tais aspectos podem não ficar registrados ou não serem lembrados adequadamente com o tempo. Outra dificuldade é quando ocorre, durante o desenvolvimento, o mascaramento das diferenças.

As pessoas com autismo falam de mascaramento ao se referir à ação de se comportarem de uma forma que demandam deles em ambientes sociais, mas que não correspondem ao que eles sentem e fazem normalmente. O desenvolvimento dessas formas de adaptação pode não deixar clara a presença de uma série de sinais do autismo, tornando mais difícil o diagnóstico no adulto.

O começo de tudo

Dois anos antes da pandemia, Daniel Zukko, 44, procurou ajuda psicológica e psiquiátrica para tratamento contra a depressão. Durante as sessões, um dos temas mais abordados era sua dificuldade em entender regras, em especial as de convivência social. Isso o incomodava e lhe deixava pensativo. Até que recebeu, de presente, o boneco de Sheldon, protagonista do seriado The Big Bang Theory, dado pela primeira psicóloga que conheceu.

Marcelo Ferreira/CB/D.A Press - 15/04/2024 Crédito: Marcelo Ferreira/CB/D.A Press. Brasil. Brasília - DF - Revista - Diagnóstico tardio de autismo em adutos. Daniel Zukko, ele é músico, desenhista e chargista.

O personagem, conhecido pela intelectualidade e humor inteligente, também é autista. “Ela me disse que eu era um pouco parecido com ele”, recorda Daniel. A partir desse momento, a semente foi plantada. Com isso, correu atrás para entender um pouco mais desse universo. Não demorou muito até que o diagnóstico de autismo aparecesse, vindo de outra especialista da área.

“Meu autismo é nível um de suporte com altas habilidades. Tive muitas dificuldades pra entender. Sou da década de 1980. Para quem cresceu nessa época, falava-se muito pouco disso. Todo mundo entendia que autista era rígido e muito agressivo, que ficava balançando, não se comunicava. Pouco se falava de outros níveis”, conta.

Durante quatro décadas, Daniel se moldou para caber. Resolveu se adaptar, costurando sua essência para não ser sempre o “esquisito” dos âmbitos sociais em que estava inserido. Contudo, quando o diagnóstico chegou, uma espécie de alívio veio junto. “Já vinha lendo sobre, pesquisando algumas coisas. Quando, na terapia, começou a falar, pensei na possibilidade. Foi quase um: 'Então é isso? Agora tudo faz sentido'. A partir do alívio, você entende tudo, as máscaras sociais, até que ponto isso me esgotou socialmente e sensorialmente”, acrescenta.

Busca pela liberdade

Daniel passou a se conhecer um pouco melhor, conversar com as pessoas e pedir muitas desculpas por acontecimentos do passado. O diagnóstico tardio, talvez, tenha atrapalhado muita coisa, principalmente nas questões sociais. Algumas delas, inclusive, ele mesmo encarava como frescura, sobretudo na alimentação, porque tem problemas com as texturas de certos alimentos. Sempre foi taxado como o chato da comida, que não come isso ou aquilo e que não encosta a mão.

“Odeio passar creme, não gosto de hidratante, por conta do toque. Passei a entender meu cansaço constante da questão sensorial, tenho sensibilidade auditiva, sons diversos são quase que imediatos. Sou músico também. Dificultou, porque a gente vai chegando em pontos de estresse que são muito difíceis. Fui o cara taxado de pessoa difícil e arrogante, por conta dessa coisa de falar e não entender qual o problema de falar.”

Hoje, ele faz acompanhamento com psicólogo, em especial nos momentos de dificuldade. Gosta de ler muito, compreender as coisas e se autoconhecer. Além disso, tem alguns amigos próximos e familiares que o ajudam nesse processo. Daniel é, basicamente, autodidata em quase tudo o que faz. Toca instrumentos, desenha, faz charges, tem dois livros publicados, cria animações 3D, edita vídeos e ainda arruma tempo para ser fotógrafo. “Tenho facilidade com o que me interessa muito, incluindo idiomas", finaliza.

Classificação e tratamento

Para realizar o tratamento, há de se considerar a neuroplasticidade, ou seja, a capacidade do sistema nervoso de se adaptar e crescer. Segundo o psicólogo Rafael Alberto Moore, na criança, essa plasticidade é máxima. Por isso, intervenções precoces do autismo são as mais eficientes. No adulto, porém, ainda é possível um conjunto de adaptações, mas de outro tipo. Após a avaliação, ao se identificar as dificuldades específicas de cada pessoa, o tratamento foca em desenvolver habilidades de enfrentamento e adaptação às limitações existentes, à habilitação ou à reabilitação de funções cognitivas com algum prejuízo.

Mas, também, em aspectos emocionais, como autoestima, no estigma que pessoas com autismo sofrem ao longo da vida, na valorização das qualidades e em pertencimento, que, quando afetados, podem contribuir para transtornos de humor e ansiedade em cormobidade. De acordo o especialista, o TEA é dividido em graus, seguindo o nível de suporte necessário para cada pessoa.

“No DSM-V (manual estatístico e diagnóstico de transtornos mentais), o autismo pode ser dividido em três níveis, sendo o nível um o de menor suporte, com relativa autonomia da pessoa, enquanto no nível três existe a necessidade de suporte substancial para a pessoa com autismo”, elenca.

Outra classificação importante é a dos comprometimentos associados ao autismo, que podem ser de linguagem e de intelecto. O autismo não implica em prejuízo de linguagem ou de intelecto, mas, em muitos casos, esses comprometimentos podem ser percebidos.

Um novo nascimento

Dificuldades para socializar e manter uma conversa. O simples para Lorrany Beatriz Urias de Abreu, 23 anos, nunca foi algo fácil. Na infância, especialmente na escola, interagir com amigos e professores era sempre um obstáculo que ela nunca tinha forças para atravessar. Além do diálogo, outros desafios enfrentados pela jovem era o de compreender ironia e manter contato visual. "Sempre tive seletividade alimentar. Quando criança, minha alimentação era arroz e tomate na maior parte dos dias", complementa.

Arquivo pessoal - Lorrany, 23 anos, foi diagnosticada com autismo no ano passado.

Ano passado, depois de muito tempo vivendo uma vida solitária, todas as respostas que Lorrany procurava apareceram. No início, a primeira reação foi de alívio e pertencimento. Sempre se sentiu diferente, mas não entendia por que essa sensação crescia dentro dela, de forma tão exponencial. Lidou com esse assunto na psicoterapia, local em que pôde perceber a evolução por meio de estímulos para flexibilizar a rigidez cognitiva presente do autismo.

Para a jovem, o diagnóstico tardio lhe prejudicou de diversas formas, tendo em vista que, na infância, quando a identificação acontece de forma precoce, há a possibilidade de abranger o acesso a tratamentos adequados e a terapias. "Quando descoberto de forma tardia, as mudanças são mais difíceis de serem realizadas", acredita.

A vida após o diagnóstico tem sido mais leve. Lorrany se culpa menos por ser diferente e compreende que o próprio funcionamento não é igual ao de todo mundo. A socialização evoluiu bastante na adolescência, mas foi difícil trabalhar essa questão sem ao menos saber o porquê da limitação. Realizou psicoterapia por um período e, no momento, encontra-se sem acompanhamento, mas pretende retornar com as sessões.

"Minha família, inicialmente, ficou em choque, não entendia muito bem o diagnóstico, até mesmo por falta de informação. As pessoas estão acostumadas com crianças autistas. Quando olham para algum adulto autista que consegue realizar atividades, como trabalhar e estudar, isso gera estranhamento. Até então, não tem nenhum caso diagnosticado na minha família", diz.

Arquivo pessoal - Na infância, Lorrany tinha dificuldades de conversar e interagir.

Com autismo nível um e suporte, as maiores dificuldades da jovem estão relacionadas a
barulhos, que causam incômodo, a mudanças repentinas — até mesmo em rotina —, a iniciar conversas com pessoas e a provar novos alimentos. Todavia, são questões que ela lida diariamente, e tem feito o máximo para se esforçar com elas. Sobre barulhos, costuma andar com abafador de ruídos para não lhe gerar uma sobrecarga sensorial.

Direitos garantidos

De acordo com Edilson Barbosa, pai de dois jovens autistas e especialista em direito dos autistas, direito penal e processo penal e direito eleitoral e democracia, dependendo do local de trabalho, o indivíduo tem direito a ter um ambiente adequado para o desenvolvimento da sua função. Sempre munido, claro, de relatórios médicos e terapêuticos informando suas condições. “O melhor é informar antes da contratação, como é feito nos concursos públicos”, aconselha.

Em âmbito geral, os direitos estão elencados em várias leis municipais, estaduais, distritais e federais. A principal é a Lei Federal n° 12.764/2012 que, em seu artigo 3°, disciplina esses direitos, detalha Edilson. E em seus seus artigos apresenta um rol de direitos para autistas no Brasil.

“Leiam as leis, tente conseguir interpretar e, se tiver dúvidas, procure uma entidade de defesa dos autistas que, certamente, terá alguém para esclarecer e como ter acesso a esses direitos. Conhecendo seus direitos, a pessoa autista e seu suporte terão condições de não aceitar qualquer violação a eles”, orienta Edilson, que também é presidente do Movimento Orgulho Autista Brasil-MOAB e presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB/Ceilândia-DF.

Tristeza e isolamento

Imagine tentar por inúmeras vezes ser quem você não é, ainda mais quando criança. Foi assim que Ilus, 41, começou a própria jornada no mundo. Sempre que buscava se socializar, se frustrava. Desde muito cedo, a mãe percebeu que ela, frequentando a escola, nunca conseguia participar das brincadeiras com outros colegas. Com isso, as professoras eram questionadas, mas respondiam que tentavam a introduzir nas participações, mas sem sucesso.

Arquivo pessoal - Ilus, 41, foi diagnosticada com autismo há poucos anos. .

“Não era uma criança triste por isso, embora tivesse a impressão que nem meus colegas, nem meus professores gostassem de mim. Só não me sentia mais isolada porque morava numa vila, em Minas Gerais, e, com as crianças da vila, meu irmão era uma espécie de ponte que me ajudava a participar de algumas brincadeiras. Na adolescência, minhas dificuldades aumentaram muito, e a escola se tornou quase insuportável pelo bullying que sofria diariamente”, revive.

A partir dos 17 anos, passou a se esforçar para socializar, pois sentia que demorava demais para conseguir fazer amizades, mas, mesmo com muito esforço, o contato com pessoas da própria idade era sempre limitado e cheio de frustrações. “Não tinha grandes dificuldades no estudo, mas me sentia ignorada por meus professores, até que entrei em contato com a física, e esse se tornou um assunto de interesse intenso”, acrescenta.

Fez o bacharelado em física, o mestrado e o doutorado em geofísica espacial, e era sempre vista como inteligente, mas pouco esforçada. No mercado de trabalho, teve a primeira grande barreira. Não conseguia exercer sua profissão, pois a exigência social se tornou um imperativo. Resolveu mudar de área, foi para a música, outro hiperfoco de Ilus. Fez coisas incríveis, um talento nato, mas não o suficiente para mantê-la no eixo e desenvolver uma carreira.

“Quando perdi o apoio de duas produtoras, muito competentes, que trabalhavam em alguns projetos comigo, entrei em depressão. Naquele momento, percebi que meus esforços não tinham me levado a lugar nenhum, e que minhas dificuldades sociais eram reais. O autismo foi a primeira coisa que veio à minha cabeça”, narra.

O mundo se abriu

Resolveu estudar mais sobre o assunto e, por fim, se estruturar para realizar avaliação diagnóstica. “Veja bem, sempre soube que era diferente. Percebi como pensava, sentia e estruturava o mundo de uma forma diferente. Mas não compreendia completamente minha diferença no mundo. Por causa da dificuldade de seguir minha profissão, entendi que precisava de ajuda. Nunca me senti uma pessoa com problemas, mas realmente vivia com uma espécie de neblina que me impedia de compreender o mundo e até a mim mesma.”

Arquivo pessoal - Hoje, ela é co-fundadora do projeto Adultos no Espectro.

Quando o diagnóstico chegou, há poucos anos, o primeiro momento foi de uma euforia enorme. Inocentemente, pensava que, quando soubessem que ela era autista, iriam validar todas as coisas que relatava como difíceis. "Acabei descobrindo que a sociedade é capacitista. E qualquer apoio teria que ser conquistado com muita luta. Mas, dessa vez, eu tinha as leis ao meu lado e, finalmente, apoio terapêutico para me fortalecer e me ajudar a lutar para ter uma vida que valesse a pena ser vivida”, adita Ilus.

A descoberta, apesar de difícil para o mundo externo, dentro dela, foi como nascer de novo. Reaprender consigo mesma, enxergar os pontos fortes que sempre existiram e, principalmente, a ter paciência no processo que vem seguindo até então. Sua força, completamente resgatada, une-se ao entusiasmo de viver e fazer com que a vida de outras pessoas também seja melhor. Por isso, o nascimento de um novo movimento, que vem mudando os rumos do país.

Uma família

Hoje, Ilus é co-fundadora do projeto Adultos no Espectro (@adultosnoespectro), que começou com uma página do Instagram que fornece informações científicas, além de ser um local de acolhimento para adultos autistas, sejam diagnosticados tardiamente, seja na infância. “Somos uma plataforma de soluções em saúde mental voltada para adultos autistas. Temos cursos rápidos e workshops, grupos de apoio, profissionais associados que fazem diagnóstico e tratamento, como psicólogos, psiquiatra, neurologista e terapeuta ocupacional, e agora daremos início à nossa pós-graduação”, informa.

Todas essas ações são coordenadas por ela e Mayck Hartwig, com quem divide as responsabilidades da iniciativa. O projeto conta com a arte e a experiência cotidiana da pessoa autista e a neurociência como direcionadores do pensamento e do desenvolvimento de linguagem.

“Entendemos que é importante aprender e ressignificar tudo o que diz respeito ao que se conhece no autismo. A diferença precisa ser celebrada e muitos saberes são necessários para se compreender o mundo da pessoa neurodivergente."

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