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Natal além da ceia: conheça ações com o verdadeiro espírito generoso

Grupos de voluntários ajudam a alimentar pessoas que sofrem com insegurança alimentar. No período natalino, eles vão além e dividem a própria ceia

O estudo recente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) sobre segurança alimentar no Distrito Federal revelou que aproximadamente 21% das residências, equivalente a 196.362 lares, enfrentam algum grau de insegurança alimentar. No período natalino, quando as famílias costumam se reunir em torno de mesas fartas, essa realidade torna-se ainda mais gritante e desperta a solidariedade de gente disposta a dividir a própria ceia com quem precisa. 

A secretária de Atendimento à Comunidade (SEAC), Clara Roriz, destaca que nesta época do ano diversos grupos de voluntários entram em contato buscando parcerias institucionais em eventos e ações que visam não apenas atender à comunidade, mas também prestar solidariedade para o Natal. "Um exemplo é a parceria da SEAC com o Natal Solidário na Rodoviária, um projeto social que ofereceu refeições natalinas, ontem, focando especialmente na população em situação de rua e vulnerabilidade socioeconômica."

Conheça algumas dessas ações solidárias que, mais que um prato de comida, tem levado dignidade e amor aos mais carentes.

A turma da sopa

Há um elo de compaixão que conecta corações em Brasília desde junho de 2014, quando nasceu o projeto idealizado por Kenia Garcia, 43 anos, e um grupo dedicado de amigos e familiares. A missão? Levar alimentação e, acima de tudo, amor aos moradores de rua da capital.

A história por trás desse projeto é enriquecida pela inspiração pessoal da fundadora. Vinda de um lar em que os pais, apesar dos recursos limitados, sempre se dedicaram a ajudar o próximo, ela encontrou motivação para seguir o mesmo caminho. Mesmo com os desafios do Alzheimer, a mãe contribui de maneiras singelas, como preparando saquinhos de doces para o Dia das Crianças. Esse legado de solidariedade também se estende à sogra de Kenia, sua parceira incansável em todas as frentes.

O ápice do compromisso anual é a produção de uma ceia natalina verdadeiramente familiar. Comidas típicas, transporte especial para trazer os beneficiários de diversos locais da cidade e uma festa completa, com música ao vivo em uma tenda decorada. "Tudo isso é realizado com a atenção necessária para que cada pessoa seja servida com dignidade e bom humor, olho no olho."

Apesar do enorme esforço necessário para organizar o evento, a recompensa está nas expressões de gratidão e carinho recebidas. "A equipe sai dessa ação com a certeza de que fez uma diferença extraordinária na vida daqueles que, muitas vezes, têm nesse encontro o único momento natalino do ano."

O projeto, mantido por doações e livre de vínculos com igrejas ou partidos políticos, cresceu para além das expectativas iniciais. Atualmente, conta com voluntários cujo único propósito é fazer a diferença na vida daqueles que mais precisam. As doações, essenciais para manter a iniciativa, vêm tanto dos próprios voluntários quanto de benfeitores anônimos.

Toda quarta-feira, às 20h, esse grupo de voluntários se reúne em diversos pontos da cidade, levando consigo não apenas alimentos, cobertores e roupas, mas, acima de tudo, uma dose generosa de amor. O comprometimento desses voluntários se traduz em uma jornada constante de solidariedade.

"Minha sogra e meu esposo também são muito apoiadores, topam todas as minhas loucuras! Envolvem-se em todos os aspectos do projeto, desde a distribuição nas ruas semanalmente, a busca por doações, até a participação ativa na cozinha em eventos significativos como o Dia das Crianças e o Natal. Além disso, desempenham um papel importante na divulgação do trabalho. Juntos, provamos que somos mais fortes quando unimos forças."

Além das distribuições semanais, o projeto atende mais de 200 famílias cadastradas, proporcionando cestas básicas mensais. As redes sociais se tornaram aliadas fundamentais na divulgação do trabalho, atraindo novos voluntários e ampliando o alcance das ações.

As doações, que agora atingem volumes expressivos, permitem a continuidade dessas nobres iniciativas. Diversos tipos de doações e apoios são recebidos, desde a participação ativa de voluntários fixos até a colaboração de uma rede de doadores que, embora não façam parte diretamente dos grupos, mantêm uma boa relação com os voluntários.

 

Fotos: Arquivo pessoal - Voluntários da Turma da Sopa e a ceia antecipada que prepararam

Jovens unidos para fazer o bem

Anna Carolina Sant'Anna, 20 anos, presidente da ONG Da Rua, compartilha a trajetória da organização em sua busca por realizar ações sociais impactantes. A ideia central sempre foi criar eventos temáticos que não apenas sirvam a um propósito, mas que também sejam verdadeiramente úteis, guiados pela colaboração, pelo respeito e pela consciência.

A mais recente iniciativa foi a organização de uma ceia natalina distribuída no último dia 17 de novembro. "O desafio é ambicioso, desejamos alcançar uma arrecadação significativa, o suficiente para beneficiar todas as pessoas em situação de vulnerabilidade." A participação ativa de membros da ONG, muitos dos quais são estudantes da Universidade de Brasília (UnB), destaca a importância do engajamento da comunidade acadêmica. A colaboração e as doações provenientes desses estudantes contribuem significativamente para o sucesso das iniciativas.

Anna Carolina destaca o sentimento gratificante de realizar auxílios concretos e a energia positiva que as entregas proporcionam, tanto para os membros da ONG quanto para aqueles que recebem a ajuda. "Embora a ONG reconheça que não tem o poder de realizar grandes mudanças nas vidas das pessoas assistidas, a oportunidade de proporcionar uma refeição completa para uma família é significativa."

Desde 2021, a ONG realiza saídas durante todo o ano, contando com uma equipe de 18 jovens dedicados. Em 2023, as doações realizadas incluíram mais de 500kg de roupas, 805 marmitas, 222 cestas básicas, 419 kits de higiene, 267 cobertores e 181 kits de material escolar. Com saídas regulares, pelo menos duas vezes por mês, a ONG estabelece um vínculo constante com as comunidades assistidas.

Arquivo pessoal - Equipe da ONG da Rua em frente aos carros com o porta-malas cheio de doações

Tempo de doar

Na trajetória de mais de uma década como voluntários, a família de Valquíria Theodoro, 55, e Agnaldo Pereira, 60, tem vivenciado uma rede de conexões solidárias. As necessidades surgem organicamente, e o "boca a boca" identifica quem pode atender cada demanda. O convite para participar de ações sociais, muitas vezes iniciado com a presença do Papai Noel (Agnaldo), evolui para uma colaboração mais ampla à medida que a conversa com os organizadores se desenrola.

Ao longo dos anos atuando como o próprio Papai Noel, Agnaldo e seus duendes (os filhos Augusto César, 18, Gabriel, 17, e João Miguel, 9) percorreram várias instituições e comunidades, proporcionando momentos especiais em Brasília, no Entorno e até em outras cidades brasileiras, como Assis, em São Paulo. Suas chegadas, por diversos meios de transporte, tornam cada experiência única.

Entre as muitas experiências marcantes, destacam-se os momentos de ser o Papai Noel para crianças com câncer e hospitalizadas. Por trás da espessa barba, Agnaldo chorou ao perceber que, além de presentes materiais, levava esperança e contribuía para criar boas expectativas de recuperação. Em alguns casos, a relação se estendeu além do período natalino, resultando em amizades fraternas com crianças portadoras de doenças graves.

O envolvimento dos filhos na ação voluntária não apenas fortalece o vínculo familiar, mas também oferece oportunidades valiosas de vivenciar diversas realidades sociais. Ao participarem ativamente em projetos sociais, desde preparativos de doações até atividades específicas em eventos beneficentes, os filhos aprendem a respeitar as necessidades dos outros e a enxergar o mundo com empatia.

"Meus filhos sempre foram incentivados a participar de alguma maneira nos projetos sociais com o qual nos envolvemos. No Natal, desempenham tarefas nos preparativos das doações, como triagem, identificação e entrega, já foram responsáveis por barraca de pescaria em festa junina beneficente. Cozinhamos marmitas para doação aos moradores de rua uma vez por mês, durante todo o ano. Quando você se predispõe à iniciativa de ajudar espontaneamente, as oportunidades aparecem naturalmente; sempre tem a rede de alguém te acionando."

Valquíria destaca a importância de doar tempo, superar desafios com criatividade e proporcionar momentos de alegria, construindo laços significativos ao longo do caminho. A solidariedade, para ela, é um esforço coletivo, no qual a cooperação e a colaboração de muitas pessoas engajadas em causas nobres contribuem para a construção de uma sociedade mais equitativa.

Do pequeno gesto ao grande impacto

Há dois anos, Patrícia Rocha, 36 anos, e Wilson Brandão, 36, os pais de Marina, 11, e Bernardo, 6, decidiram transformar sua alegria em algo maior. Movidos pelo desejo de compartilhar sua felicidade, destinaram parte de seu orçamento para montar 20 cestas básicas e doar a famílias carentes. O que começou como um gesto modesto rapidamente se tornou uma tradição de generosidade.


No primeiro ano, entregaram 40 cestas, contando com a colaboração de amigos. No segundo ano, a iniciativa ganhou mais força, alcançando 136 cestas básicas. Este ano, a família continua a brilhar, ultrapassando a marca de 100 cestas, com a promessa de mais colaboradores se unindo à causa.


Patrícia, com seu entusiasmo, conta como o processo evoluiu. “Começamos com a vontade de fazer a diferença, sem saber se seria possível. Agora, a cada ano, envolvemos mais pessoas. Mandamos mensagens para amigos, familiares, colegas de trabalho, e até mesmo para o grupo de mães da escola e do nosso prédio.

A resposta tem sido incrível.” O casal não impõe critérios rigorosos na escolha das famílias beneficiadas. Antes de sair para as entregas, realizam uma oração, pedindo orientação divina para identificar quem realmente necessita. “Sempre vamos a bairros mais carentes, como Planaltina de Goiás, onde meu marido tem raízes. Caminhamos de porta em porta, deixando não apenas alimentos, mas também esperança.”


A emoção atinge seu ápice ao lembrar de um momento marcante no ano passado. “Entregamos uma cesta a uma senhora que, ao pedir para ajudar sua amiga, revelou ter perdido o marido e o filho recentemente. Não conseguia sustentar-se sozinha. Deixamos não uma, mas duas cestas com ela. Histórias como essa nos fazem perceber a real importância do que fazemos.”


O impacto financeiro, que inicialmente preocupava o casal, não foi um obstáculo. Mesmo com mudanças em suas vidas, como a saída do emprego de Wilson este ano, eles se preparam ao longo dos meses. “Acreditamos que, se você realmente quer ajudar, encontra uma maneira.


Preparamos nosso orçamento para isso, e mesmo com desafios, seguimos com nosso propósito.” Além das cestas, a família busca envolver os filhos na experiência. “No primeiro ano, hesitamos em levá-los, mas no segundo, queríamos que vissem que, com o que têm, podem fazer a diferença. Este ano, meu filho doará todos os seus carrinhos para outras crianças. Queremos que aprendam desde cedo o valor da solidariedade.”


Ao compartilhar suas experiências por meio de fotos e vídeos com doadores, a família não apenas alimenta o corpo, mas também o espírito da comunidade. Uma onda de solidariedade que, segundo Patrícia, mostra que ajudar pode começar com um pequeno gesto. “A gente acha que precisa de muito, mas, na verdade, só precisa se dispor a começar. Quando você faz o primeiro movimento, tudo flui.”

 

Arquivo pessoal - Patrícia e Wilson ao centro, com um dos primeiros casais que se juntaram à ação solidária e os filhos

 

Sacolinha do amor

Na história de Cida Caitano, 68, emerge um testemunho de compaixão e dedicação. Seu trabalho voluntário, expresso por meio do grupo Sacolinha do amor, revela a crença profunda no poder da ajuda ao próximo. Sua narrativa ressalta a confiança em sua fé como guia e fonte de milagres, mostrando que, mesmo diante da adversidade, ela impulsiona ações altruístas.


Ao longo dos anos, Cida tem sido uma voluntária incansável, seguindo os passos generosos de seus pais. Mesmo enfrentando desafios de saúde, como uma pessoa cardíaca e com chagas, ela continua sua missão de amor e solidariedade. A criação do grupo durante a pandemia demonstra sensibilidade ao sofrimento
dos irmãos em situação de rua, destacando a importância de agir em prol do bem.


A organização dos kits de higiene e lanche, distribuídos com carinho, reflete o compromisso de Cida em proporcionar conforto aos menos favorecidos. “Fiquei pensando, durante a pandemia, que muitas pessoas estavam perdendo suas vidas, tanta coisa triste acontecendo. E as pessoas carentes nas ruas, no meio de tudo isso, sem ninguém por perto, passando por apuros.


Decidi criar um grupo para ajudar, chamado Sacolinha do amor. Convidei algumas pessoas e começamos a comprar itens de higiene, como sabonete líquido, escova de dentes, guardanapos, álcool em gel, algodão, e fazíamos os kits. Além disso, incluímos lanchinhos. Visitamos a Santa Luzia na Estrutural, onde encontramos um grupo incrível, a Associação das Mães Solo, com 530 mães cadastradas, cada uma com vários filhos. Foi uma experiência gratificante ajudar essas mães guerreiras.”

Arquivo pessoal - Filho e netos de Cida auxiliando as atividades lúdicas para as crianças de Santa Luzia, na Estrutural

Olhar compassivo para o próximo e para si mesmo

A assistente social Solange Almeida, 43, ressalta o poder inegável das relações humanas nesse contexto desafiador. Para ela, a assistência perde seu propósito sem a humanidade presente nos gestos de apoio. Ela enfatiza a importância desses momentos, nos quais as famílias vulneráveis não apenas recebem ajuda prática, mas também têm a oportunidade de compartilhar, confraternizar e relaxar ao lado de outros que compartilham situações semelhantes. “É um momento ímpar”, diz Solange, “em que as pessoas conseguem olhar o próximo e a si mesmas com amor.”

Arquivo pessoal -
Arquivo pessoal -
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Fotos: Arquivo pessoal -
Arquivo pessoal -
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Arquivo pessoal -

 *Estagiária sob a supervisão de Sibele Negromonte

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