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Vista Alegre: uma visita à mais antiga fábrica de porcelana de Portugal

Prestes a completar 200 anos, a Vista Alegre, primeira fábrica de porcelana lusitana e uma das maiores do mundo, mantém a qualidade de seus produtos

Loja da Vista Alegre em Ílhavo, Portugal -  (crédito: Jorge Marques/ Especial para o Correio)
Loja da Vista Alegre em Ílhavo, Portugal - (crédito: Jorge Marques/ Especial para o Correio)
Vicente Nunes - Correspondente
postado em 10/12/2023 06:00

Lisboa — Diz a lenda que, no final do século 17, os moradores de Ílhavo, uma pequena vila de pescadores do Norte de Portugal, tinham como missão quase obrigatória uma visita a uma fonte de água cristalina que jorrava a poucos quilômetros dali. A fama do local era tamanha, que, em 1693, o bispo Dom Manuel de Moura Manuel mandou ornamentá-la com uma bela construção, para fazer parte de sua quinta, onde a Capela de Nossa Senhora da Penha de França, uma joia do barroco português, também começava a ser erguida. Além de a água fresca fazer bem à saúde, diziam os frequentadores, a fonte, por estar em uma pequena colina, permitia uma vista alegre, tão bonita era a paisagem.

Mais de um século depois, toda a propriedade do bispo foi comprada por um dos mais importantes comerciantes da época, José Ferreira Pinto Basto. Aos 50 anos, ele havia recebido do rei Dom João VI uma autorização para montar ali a primeira fábrica de porcelanas de Portugal. A Europa, em especial, a Alemanha e a França, já se destacavam na produção de louças e passaram a competir com as mercadorias chinesas, até então dominantes no mercado. Havia, contudo, um grande problema para o empresário. Os portugueses não tinham o domínio da técnica de porcelanas, apesar da boa tradição de cerâmicas. Mais importante ainda: o país não detinha a matéria-prima essencial para a fabricação das cobiçadas peças, o caulim, uma argila branca.

Capela de Nossa Senhora da Penha de França, de 1699. Na Vista Alegre, em Ílhavo, Portugal
Capela de Nossa Senhora da Penha de França, de 1699: uma joia portuguesa (foto: Jorge Marques/ Especial para o Correio)

Os desafios, porém, não intimidaram Pinto Basto, dono de uma das maiores fortunas do país. Em 7 de julho de 1824, quase dois anos depois da Independência do Brasil, ele abriu as portas da fábrica da Vista Alegre, cujo nome foi inspirado nos relatos de antigos pescadores que visitavam a Fonte do Carapichel. Nos primeiros 11 anos, a produção se concentrou em vidros e cristais. Foi a forma que o empresário encontrou para garantir receitas e permitir as pesquisas que, enfim, levassem a seu objetivo final, a fabricação de porcelanas. Detalhe: no Brasil, um pouco antes, o químico João Manso Pereira havia descoberto o mineral onde é hoje a Ilha do Governador, no Rio de Janeiro. Os indígenas chamavam o caulim de tabatinga.

A Vista Alegre comemorará 200 anos em 2024 e seus laços com o Brasil nunca se desfizeram. Da matéria-prima que o país ofereceu — e que pouco tempo depois seria descoberta a cerca de 30 quilômetros da fábrica, em Vila da Feira — ao faturamento crescente da empresa, as histórias se cruzam por completo. O Brasil foi o único local, fora de Portugal, a sediar uma unidade de produção de porcelanas da companhia. Está, em São Paulo, a maior loja fora do território luso. Do time atual de designers, a maioria é formada por brasileiros. Das cinco atuais coleções de louças mais vendidas, duas foram criadas por artistas originários do Brasil. A campeã é a coleção Amazônia, desenvolvida pelos índios caiapós, do Mato Grosso. Em quarto lugar está a coleção Transatlântica, de autoria de Brunno Jahara.

Garrafas para aguardentes em forma de uma baiana e uma portuguesa. Museu da Vista Alegre, em Ílhavo, Portugal
Garrafas para aguardentes em forma de uma baiana e uma portuguesa. (foto: Jorge Marques/ Especial para o Correio)

"O Brasil é e sempre foi muito importante para a Vista Alegre", diz Nuno Barra, diretor administrativo e responsável pelo marketing, pelo design e pelas lojas em Portugal. Sozinho, o país garante de 4% a 5% das receitas anuais da empresa, algo como 8 milhões de euros (R$ 44 milhões) — metade, com a loja de São Paulo. Fora de Portugal, apenas a Espanha tem maior representatividade. Essa participação, porém, tende a ser maior, devido à ânsia com que os brasileiros se dirigem aos pontos de vendas da fabricante espalhados pelo país lusitano. A chefe da loja principal no complexo da Vista Alegre em Ílhavo, Maria do Céu Manaia, assinala que os turistas do Brasil, seguramente, estão entre os principais clientes. Sônia Russo, vendedora da ponta de estoque da marca, afirma que, no inverno português, são os brasileiros que "salvam" as vendas. "Não há dúvidas de que a clientela brasileira faz a diferença", acrescenta.

Sonia Russo, vendedora da ponta de estoque da loja da Vista Alegre em Ílhavo, Portugal
Sonia Russo, vendedora da ponta de estoque da loja da Vista Alegre em Ílhavo, Portugal (foto: Jorge Marques/ Especial para o Correio)

Coleção Amazônia

A série de porcelanas foi lançada em 2018. A Vista Alegre fechou parceria com uma ONG brasileira para que um grupo de indígenas caiapós, do Mato Grosso, fosse para Portugal com o intuito de apresentar aos pintores da empresa os traçados, as técnicas e as cores usadas nos artesanatos produzidos nas aldeias. Sementes, frutos e flores foram utilizados nos trabalhos. Parte das receitas com as vendas é revertida aos indígenas e para o reflorestamento de áreas devastadas. Desde então, mais de 15 mil árvores já foram plantadas.

Transformações culturais

 Nuno Barra, diretor administrativo da Vista Alegre em Portugal
Nuno Barra, diretor administrativo: Vista Alegre deu a volta por cima (foto: Vicente Nunes)

Muitas das transformações sociais e culturais vividas por Portugal nos últimos dois séculos passam pelas fábricas da Vista Alegre. A empresa sempre fez questão de ter entre os seus artistas pessoas arrojadas, disruptivas, que quebraram barreiras com seus desenhos e formas. “Não à toa, independentemente da data de fabricação, as peças são, em maioria, atuais”, reconhece Nuno Barra. “O objetivo da empresa sempre foi o de se manter antenada com seus tempos, sempre relevante. Pode parecer fácil, mas não é. Isso exige mudanças, adaptações constantes, sem fazer revoluções. Tudo muito gradual”, complementa. Por isso, toda a aura em torno da marca e todo o peso da tradição que faz a alegria de representações diplomáticas do mundo todo.

 

Há outra ressalva importante, frisa o executivo. Quando a coroa portuguesa concedeu a autorização ao empresário Pinto Basto para a construção da fábrica da Vista Alegre, foi exigido que a empresa não fabricasse peças de porcelana apenas para a nobreza, era também preciso atender o povo, com itens mais acessíveis. “Fazemos peças suntuosas — a mais cara na loja de Ílhavo custa exatos 8,2 mil euros (R$ 45,1 mil) —, mas sempre mirando as pessoas de menor poder aquisitivo. Essa mensagem de inclusão é muito importante para nós. E prevalece até hoje, está enraizada na empresa”, destaca.

 Travessa em porcelana com reprodução de quadro de Debret sobre o Rio de Janeiro. Museu da Vista Alegre, em Ílhavo, Portugal
Travessa em porcelana com reprodução de quadro de Debret sobre o Rio de Janeiro (foto: Jorge Marques/ Especial para o Correio)

No Brasil, porém, o quadro é completamente diferente, afirma Barra. “Infelizmente, por uma série de circunstâncias, mas, sobretudo, por causa dos elevados impostos, a Vista Alegre atende, basicamente, as classes A e B”, detalha. Com os tributos de importação, as peças da empresa nos cerca de 400 pontos de venda espalhados pelo país chegam a custar o triplo do que se pratica em Portugal. “Um prato que, originalmente, custa 15 euros (R$ 82,5) em Portugal sai, no Brasil, por algo como 45 euros (R$ 247). É caro para os padrões da maioria dos brasileiros”, diz.

Uma das alternativas encontradas pela Vista Alegre para tentar quebrar essa barreira junto aos clientes do Brasil foi abrir uma fábrica no país nos anos de 1990. Mas o negócio não apresentou os resultados esperados. Apesar de todos os esforços para garantir a qualidade dos produtos, a unidade brasileira deixou a desejar, resultando em perdas para a companhia. Depois de 15 anos de insistência, o jeito foi encerrar as atividades e voltar a exportar de Portugal, mesmo sabendo que as porcelanas chegariam aos consumidores a preços bastante salgados. “Optamos por manter a relevância da marca”, reforça.

Pecas em porcelana da atual coleção da Vista Alegre, em Ílhavo, Portugal
Pecas em porcelana da atual coleção da Vista Alegre, em Ílhavo, Portugal (foto: Jorge Marques/ Especial para o Correio)

Na opinião do executivo, um dos caminhos para que o Brasil reduza as disparidades de preços em relação a Portugal seria o fechamento de um acordo de livre comércio direto com a União Europeia. Ele explica que, assim como os produtos industrializados europeus chegariam mais baratos ao Brasil, também as mercadorias brasileiras entrariam sem grandes barreiras na região. “Seria bom para os dois lados”, enfatiza. O Brasil, porém, está negociando um tratado comercial com a UE por meio do Mercosul, cujas conversas se arrastam há 23 anos. A expectativa do presidente Luiz Inácio Lula da Silva era de assinar o acordo ainda neste ano, mas a França, do lado europeu, e a Argentina, do grupo sul-americano, estão resistentes.

Paixão por futebol

Filipa Quatorze, coordenadora do Museu da Vista Alegre, em Ílhavo, Portugal
Filipa Quatorze, coordenadora do Museu da Vista Alegre, em Ílhavo, Portugal (foto: Jorge Marques/ Especial para o Correio)

Coordenadora do Museu Vista Alegre, em Ílhavo, a historiadora Filipa Quatorze destaca a visão social que sempre marcou a empresa. "Desde o início das atividades da fábrica, houve a preocupação de garantir boas condições de vida aos operários que vieram de várias partes de Portugal para trabalhar ali", conta. Foi construída uma vila de casas para os empregados. Também foram abertas uma escola e uma creche para as crianças, para que as mães pudessem realizar os afazeres na fábrica ou em casa. Há, aqui, uma curiosidade: como o fundador da Vista Alegre queria que toda a meninada do bairro criado em torno da companhia visse o mundo, ele mandou trazer plantas de várias partes do planeta. E uma das espécies, oriunda da América do Sul, chamada de Bela-Sombra, com seus 17 metros de altura e 11 metros de perímetro, continua lá, intocada, nos seus 194 anos.

A empresa Vista Alegre criou, logo na sua fundação, uma creche para os filhos de empregados, e os bisnetos do fundador levaram o futebol para Portugal
A empresa Vista Alegre criou, logo na sua fundação, uma creche para os filhos de empregados, e os bisnetos do fundador levaram o futebol para Portugal (foto: Fotos: Jorge Marques/ Especial para o Correio)

Para os portugueses, há outro legado da Vista Alegre que se tornou uma paixão nacional, tanto quanto no Brasil: o futebol. Foi Frederico Pinto Basto, bisneto do fundador, que, em 1886, levou da Inglaterra para Portugal uma bola usada na prática do esporte — a primeira que se tem notícia no país. Ele, com Guilherme e Eduardo, também bisnetos do criador da fabricante de porcelanas, realizaram o primeiro jogo da história em território luso. A partida foi disputada em Cascais e o time português venceu a esquadra inglesa por 2 x 1. O grande público só viu um jogo efetivo em 22 de janeiro de 1889, na atual Praça dos Touros, em Lisboa.

Ateliê de pintura das porcelanas da Vista Alegre em Ílhavo, Portugal
Ateliê de pintura das porcelanas da Vista Alegre em Ílhavo, Portugal (foto: Jorge Marques/ Especial para o Correio)

A ligação da família Pinto Basto com o futebol rendeu frutos. Em 1915, foi criado o time que deu origem ao atual Sporting Clube da Vista Alegre, que está na primeira divisão do estado de Aveiro. Até as camisetas dos jogadores são desenhadas pelos designers da empresa. Pouco antes, em 1880, lembra Filipa, a companhia criou o seu próprio Corpo de Bombeiros, que está em plena atividade até hoje. "Também houve a restauração total da Capela de Nossa Senhora da Penha de França, construída entre 1693 e 1699, e foi recuperado um teatro que se mantém ativo por todo o ano", detalha. No museu que ela administra, há mais de 30 mil peças de porcelanas, cristais e vidros que contam toda a trajetória da Vista Alegre.

 

Lealdade e troféus

Armando Grave, pintor de porcelana da Vista Alegre em Portugal
Armando Grave, pintor de porcelana, está na empresa desde os 14 anos (foto: Jorge Marques/ Especial para o Correio)

Entre os funcionários da Vista Alegre, o sentimento, quando se olha para o passado e para o futuro, é de lealdade. Armando Grave, de 55 anos, está na empresa desde os 14, quando entrou para uma escola de desenho que selecionava aprendizes de pintores de porcelana. Ele é um dos combatentes do exército de 20 pintores que hoje garantem o esplendor das porcelanas que atravessam gerações. “A pintura sobre porcelana é uma das mais difíceis. Quando alguém pinta um quadro a óleo e erra, pode passar uma tinta por cima e tudo fica como o planejado. Na porcelana, se fizermos isso e a peça for ao forno a 800ºC, vamos ter uma surpresa”, explica.

A alta temperatura dos fornos, que chega a 1.400ºC em vários casos, é, por instância, a definidora das cores pintadas nas peças da Vista Alegre. O preto, por exemplo, vira ouro. “Assim, para chegarmos às cores ideais, temos de prever o que o forno vai fazer. Isso só será possível com a experiência”, afirma Grave. Pelos cálculos dele, para conseguir o domínio da técnica da pintura em porcelana leva-se em torno de seis anos. “Mas tenho mais de 40 anos de empresa e continuo aprendendo”, ressalta. Ele conta que, neste momento, há cinco aprendizes na sua equipe. Alguns vão substituir a sua geração que, logo, sairá de cena.

 Aves em porcelana da Vista Alegre, em Ílhavo, Portugal
Aves em porcelana da Vista Alegre: beleza nos detalhes (foto: Jorge Marques/ Especial para o Correio)

Chefe do departamento de pintura da Vista Alegre, Mário Oliveira, 60 anos, dos quais 35 no grupo, diz que o trabalho das peças da empresa é tão minucioso, que, no caso de réplicas de pássaros e animais, são contratados ornitólogos e biólogos para que eles orientem os pintores. As aves portuguesas, por exemplo, são replicadas em tamanho natural. E a pintura da plumagem deve ser a mais próxima possível da realidade. “Os prazos dependem de cada peça. Algumas podem levar semanas até toda a decoração ser concluída”, frisa. Filipa Quatorze, coordenadora do museu da empresa, destaca que a técnica usada é única. Não por acaso, a Vista Alegre é um caso de sucesso de 200 anos, com sua coroa real.

 Xícaras de chá em porcelana da Vista Alegre, da coleção Lacinhos, dos anos 1920, levadas para o Brasil pela avó de Nelson Felipe
Xícaras de chá em porcelana da coleção Lacinhos, dos anos 1920, levadas para o Brasil pela avó de Nelson Felipe (foto: Arquivo pessoal)

O aposentado Nelson Felipe da Costa, 61, guarda com carinho as porcelanas da Vista Alegre levadas pela avó dele para o Brasil, nos anos de 1920. A família trocara Lamego, no estado de Viseu, pelo Rio de Janeiro, em busca de melhores condições de vida — à época, Portugal era um país paupérrimo. “Minha avó era muito cuidadosa com todas as louças que ela ganhava de presente. E fez questão de levar na bagagem para o Brasil tudo o que tinha, mesmo sendo uma viagem longa, de navio”, conta. “Ela ostentava as porcelanas como verdadeiros troféus”, lembra. Quando a avó morreu, as peças ficaram com os pais de Nelson e eram usadas somente em ocasiões muito especiais. “Hoje, todo o acervo — a maioria, da Coleção Lacinhos — está comigo e com a minha irmã. É um orgulho para nós”, conclui.

 

 

  • Filipa Quatorze, coordenadora do Museu da Vista Alegre, em Ílhavo, Portugal
    Filipa Quatorze, coordenadora do Museu da Vista Alegre, em Ílhavo, Portugal Foto: Jorge Marques/ Especial para o Correio
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