Quando a inquietação dos gatos Bob e Tiquinho começou a preocupar a tutora Zoraide Elisabeth Simm, o acompanhamento veterinário e o uso de calmante passaram a fazer parte da rotina dos dois. Eles são exemplos de animais domésticos com transtornos de saúde mental, que podem incluir ansiedade, depressão, fobia, compulsão e disfunção cognitiva. Porém, Edilberto Martinez, médico veterinário, mestre em biologia animal e doutor em psicologia social, emite um alerta: para definir o que seriam transtornos mentais dos pets, é preciso conhecer o que são manifestações comportamentais naturais esperadas para a espécie.
O especialista explica que cães e gatos têm necessidades, como roer, farejar, arranhar e marcar território. "Alguns dos problemas comportamentais de nossos animais são problemas na nossa perspectiva, e não na deles", orienta. No caso de Tiquinho, de 13 anos, Zoraide conta que precisou de ajuda veterinária quando o felino começou a morder o rabo frequentemente, ocasionando feridas com sangramento. Já Bob, de 5 anos, foi diagnosticado com dermatite nervosa após transtornos por estresse. Ela diz que o animal passou a apresentar pequenas lesões na pele.
Médica veterinária especializada em neurociência clínica e doutora em zoologia, Erika Zanoni aponta que, por meio do comportamento, os animais dão sinais do processamento emocional. "Podem apresentar movimentos repetitivos e sem função, problemas na socialização, perda ou ganho de peso, problemas para resolver questões simples, lambedura excessiva de patas, vocalização excessiva e eliminação de fezes e urina em locais inadequados", evidencia a especialista, que é autora do livro Bichoterapia.
Situações motivadoras
Cerca de 20% dos pets em clínicas podem apresentar algum tipo de transtorno, geralmente mais leves, causados por alguma mudança no dia a dia. Essa é uma estimativa do presidente do Conselho Regional de Medicina Veterinária do Distrito Federal (CRMV-DF), Jadir Costa Filho. "Principalmente as rotinas relacionadas à falta de atividade física e de estímulos mentais, isolamento em quintais, canis, área de serviço de apartamentos, estresse causados, por exemplo, por muitas crianças agitadas em uma casa, com um animal de comportamento mais reservado e tranquilo, podem desencadear essas alterações", exemplifica.
Já Edilberto Martinez salienta que os animais precisam de interações sociais e exploração ambiental, mas se a rotina mudar sem um preparo adequado, o laço emocional pode ser quebrado e resultar em situações estressantes. "Um ambiente pobre em estímulos sensoriais e sociais também pode gerar frustração e ociosidade. Ambientes com estímulos negativos, como sons altos e constantes, pessoas ou outros animais que os ameaçam, são propícios para o desenvolvimento de insegurança e medo", complementa.
Temperamento
Maria Eugênia, uma pinscher de seis meses, é a filha de quatro patas do casal brasiliense Ana Spinelli e Fernanda Monteiro. Carinhosamente chamada de Magê, a cadelinha apresentou mudança brusca de temperamento por volta dos três meses. As tutoras contam que estudaram muito o comportamento animal para evitar o estigma de agressividade que a raça carrega. Elas dizem que a cadela foi sempre socializada e que nunca foi incentivada em brincadeiras envolvendo mordidas, mas que começou a morder com mais força quando contrariada.
"Magê está sempre ansiosa. Nem a própria comida ela come direito, pois está sempre querendo saber o que e onde está acontecendo qualquer coisa. O sono dela também é super prejudicado, porque ela não faz igual aos filhotes normais. Ela dorme sonecas picadinhas e, por estar sempre atenta, não relaxa. Outro ponto onde temos muita dificuldade é em colocar a coleira. É sempre uma tarde toda, e dedos machucados das tentativas frustradas. O que nos impede de levá-la para passear", desabafa Ana.
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Tratamento
Sem um tratamento adequado, os transtornos mentais têm potencial de desencadear situações de maior gravidade, podendo levar o animal a óbito. Por isso, é importante observar sinais que podem sinalizar que é a hora de procurar ajuda. Foi o caso de Magê. O tratamento envolve alguns exercícios de reforço positivo, incluindo um treinamento para reforçar a confiança. "Seguimos fazendo os treinamentos e exercícios, mas já fomos preparadas para entender que é possível que, em determinado estágio dessa ansiedade, a gente precise entrar com algum medicamento. Mas isso, é claro, sempre orientadas pelo médico veterinário", explica a tutora Ana.
Edilberto Martinez, especialista que ajuda no tratamento da Magê, ressalta que a medicina veterinária comportamental é baseada em três pilares: adaptação ambiental; modificação comportamental; psicofarmacologia. "Mas costumo falar para os tutores que são quatro, sendo eles mesmos o principal pilar. É muito importante frisar que o uso de estímulos aversivos deve ser evitado. Uma vez que o uso deles nos treinos ou na rotina pode piorar um quadro de insegurança", pontua.
Quando as mudanças na rotina e de comportamentos não são suficientes, medicamentos podem ser necessários para ajudar a saúde mental do seu pet, como calmantes e antidepressivos. Nesses casos, é imprescindível a orientação de um médico veterinário. Além de indicar tratamentos, o profissional poderá sinalizar que um animal não está doente ou que não precisa mais de acompanhamento contínuo.
Prevenção e cuidados
Uma rotina de nutrição balanceada, exercícios físicos, enriquecimento ambiental e socialização podem ser um bom caminho para evitar transtornos mentais em animais domésticos.
Para Jadir Costa Filho, é importante que os tutores estimulem e exercitem os pets, levando em conta sua capacidade física, principalmente por meio de passeios, exercícios, natação, adestramento e estímulos ambientais. "Tudo isso somado a um lar que acolha o pet, trate-o com carinho e cuidados médicos veterinários apropriados", complementa.
Ajuda
No Distrito Federal, os tutores podem procurar ajuda especializada no Hospital Veterinário Público (HVEP). Em nota, a Secretaria de Estado do Meio Ambiente e Proteção Animal do Distrito Federal (SEMA) aponta que o equipamento público atendeu mais de 18 mil animais em 2022. O HVEP realiza o tratamento referente a administração de medicamentos, além de prestar uma consultoria para o tutor visando amenizar comportamentos motivados por transtornos mentais.
Para agendar uma consulta, basta ir ao hospital ou por meio do Agenda DF (https://agenda.df.gov.br/).
As principais causas de transtornos mentais e estresse crônico nos animais são: abuso, violência, restrição de liberdade, não ter a oportunidade de execução de comportamentos naturais, exposição crônica ao medo, excesso de humanização, abandono, violência sexual, deficiência nutricional, falta de estrutura ambiental, dentre outras situações de maus-tratos.
Fonte: Erika Zanoni, médica veterinária
— Adaptação ambiental: requer técnicas de enriquecimento ambiental que estimulem de forma positiva todos os cinco sentidos do animal.
— Modificação comportamental: abrange desde o adestramento básico até técnicas específicas para a dessensibilização e o contracondicionamento a fim de minimizar as sequelas deixadas pelos transtornos mentais.
— Psicofarmacologia: único pilar de uso exclusivo dos médicos veterinários, em que o profissional pode indicar o uso de medicamentos de apoio, como ansiolíticos, antidepressivos, anticonvulsivantes, sedativos e até mesmo analgésicos.
Fonte: Edilberto Martinez, médico veterinário