A florescência de ipês rosas e os galhos retorcidos podem até lembrar a capital federal, mas as ladeiras e os prédios históricos não enganam: estamos em Minas Gerais! Além da culinária de peso, uma das mais tradicionais do Brasil, o estado foi berço do Ciclo do Ouro durante a colonização portuguesa, tornando-se responsável por preservar um importante capítulo da história do país.
Do barroco ao contemporâneo, a diversidade artística de Minas chama atenção até dos pouco chegados em museus. E o encantamento não se restringe a esses espaços. Afinal, da região se exportou a literatura de Carlos Drummond de Andrade, o talento musical de Milton Nascimento e as tantas manifestações religiosas, com inspirações em Aleijadinho — apenas para citar alguns exemplos.
Em setembro, a Revista acompanhou um roteiro com foco na diversidade cultural e artística de Minas Gerais, a convite do Instituto Cultural Vale e do Instituto Inhotim. Os pontos turísticos escolhidos foram o Memorial Minas Gerais Vale, que é parte do Circuito Liberdade, em Belo Horizonte; o Museu Boulieu e o Museu do Oratório, em Ouro Preto; e o Instituto Inhotim, em Brumadinho. Nesta última parada, ainda foi possível conhecer o projeto de turismo rural e de base comunitária Céu de Montanhas.
Aos que ainda não se aventuraram nas cidades mineiras, fica o recado: os convites para tomar um cafezinho, que de diminutivo tem apenas o nome, revelam mesas caprichadas com pão de queijo, bolo, doces e biscoitos de polvilho. Não falta, claro, uma boa conversa — a combinação de sucesso para retornar para casa com histórias memoráveis e aquele gostinho de quero mais.
Ladeiras com história
Separe um sapato confortável, escolha a roupa mais fresquinha do armário e se prepare, pois, para conhecer Ouro Preto, é preciso ter fôlego para subir e descer ladeiras. Os refrescos estão nas belas paisagens, nas igrejas e nos casarões cheios de histórias, portanto, não se acanhe e siga em frente. O trajeto de Belo Horizonte até o município leva cerca de uma hora e 40 minutos.
Ouro Preto foi uma das primeiras cidades tombadas pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), em 1938, e a primeira cidade brasileira a receber o título de Patrimônio Mundial, conferido pela Unesco, em 1980. Mas se engana quem pensa que a região se restringe aos feitos do passado. Afinal, não faltam repúblicas para acolher os jovens universitários da Universidade Federal de Ouro Preto, grupos que movimentam a vida noturna do local.
Próximo à Praça Central de Tiradentes, está o Museu do Oratório, situado no Adro da Igreja do Carmo, em um casarão setecentista de três andares. O espaço abriga um rico acervo com 162 oratórios e 300 imagens que retratam a forma como os brasileiros expressavam a devoção religiosa de maneira privada, em casa ou em viagens. As peças datam dos séculos 17 ao 20 e foram reunidas, ao longo dos anos, pela colecionadora e restauradora Angela Gutierrez.
Oratórios são utensílios religiosos, geralmente de uso particular. Os colonizadores portugueses foram os responsáveis por trazê-los à Colônia e por fazê-los presentes no cotidiano brasileiro, em fazendas, senzalas e residências. Os objetos revelam o desejo de posse de relíquias ou outros itens de piedade que conferiam aos seus donos segurança e intimidade com o mundo sagrado. Por isso, eram guardados em pequenos altares, ambientes propícios para orações e celebrações.
Questionada sobre o porquê decidiu doar as peças ao Iphan, Angela comentou: "Depois de um tempo, tive consciência de que sou mais fraca que a coleção". Parte do acervo já esteve em exposição itinerante, nacional e internacionalmente, em países como França, Inglaterra, Espanha, Itália, Venezuela e Chile.
"Nós fomos um país que tratou muito mal nossa memória. Estamos tentando nos redimir. Esses oratórios chegaram aqui caindo aos pedaços e foram restaurados e recuperados", destacou a colecionadora. Os utensílios têm influência barroca, rococó e neoclássica, apresentando detalhes da arquitetura, pintura, vestuário e costumes da época em que foram produzidos.
Difusão cultural
Inaugurado no ano passado, o Museu Boulieu abriga a coleção de obras barrocas, doadas pelo casal Jacques e Maria Helena Boulieu. O acervo foi montado ao longo de 60 anos. O espaço já recebeu mais de 40 mil visitantes e alcançou mais de 1 milhão de pessoas on-line.
A instituição ocupa as instalações do antigo Asilo São Vicente de Paulo, localizado ao lado do Paço da Misericórdia, onde funcionava a Santa Casa de Misericórdia de Ouro Preto. O prédio possui ambientes internos característicos da arquitetura sanitarista do início do século 20. Como o restante da cidade, que é repleto de lendas urbanas, há relatos de que, vez ou outra, velhos moradores do casarão decidem visitá-lo, de forma, digamos, misteriosa. Nada que os funcionários já não estejam acostumados.
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O acervo reúne peças provenientes das regiões colonizadas pelos países ibéricos na Ásia e na América, incluindo o Brasil. Da coleção, contam-se histórias e traçam-se rotas, uma vez que as peças apresentam características resultantes das influências e trocas culturais que marcaram a diáspora do barroco. É possível notar o rigor artístico trazido pelas ordens religiosas, além das influências orientais da época. Dos séculos 18 e 19, há objetos produzidos na Bahia, em Pernambuco e no Maranhão.
Nas manifestações mineiras de arte popular, observa-se, mais uma vez, o retrato da forte religiosidade, na qual os santos tornam-se cada vez mais pardos e pretos. Além da visitação ao museu, o Boulieu é um importante espaço de difusão cultural em Ouro Preto, contando com a oferta de oficinas, bate-papos musicais e apresentações teatrais para a comunidade.
A exuberância de Inhotim
A 60 quilômetros de Belo Horizonte, em Brumadinho, está localizado o maior museu a céu aberto da América Latina, o Inhotim, que une arte contemporânea e jardim botânico. Em uma área total que compreende 140 hectares, o instituto expõe, de forma permanente, obras de icônicos artistas brasileiros e internacionais, além de um acervo com cerca de 4,3 mil espécies de plantas de diferentes continentes.
Inhotim nasceu da intersecção entre arte, natureza, arquitetura e educação, e desde sua abertura ao público, em 2006, já recebeu mais de 3,5 milhões de pessoas de diversas nacionalidades. A criação do instituto contribuiu consideravelmente para destacar Minas Gerais na cena de arte contemporânea global e para impulsionar a economia local, gerando empregos na região.
Os caminhos tortuosos e cheios de curvas são uma estratégia paisagística para fazer os visitantes terem curiosidade de explorar o espaço. E o que não falta são lugares para conhecer. Afinal, o parque conta com 24 galerias e 19 jardins temáticos. Há destaque para artistas como Hélio Oiticica, Cildo Meireles, Yayoi Kusuma, Tunga e Adriana Varejão. Já a diversidade botânica — com espécies como pau-brasil, samambaia-gigante, ipê-amarelo e bromélia-imperial — deve-se à mistura de Mata Atlântica e Cerrado, característica da região.
Assim que chega, o visitante, munido do mapa do parque, pode decidir se fará as visitas a pé ou, para áreas mais distantes, usando os carrinhos elétricos disponibilizados pelo Instituto (para pessoas com necessidades especiais, os veículos são gratuitos). Paula Azevedo, diretora vice-presidente de Inhotim, lembrou que o índice de retorno do público é altíssimo, comprovando a excelência do espaço. "Arte e cultura são experiências duradouras que não se perdem", completou Júlia Rebouças, diretora artística.
Visando expandir a democratização do acesso ao museu, garantir a sua sustentabilidade e contribuir com o desenvolvimento socioeconômico de Brumadinho, a Vale firmou um compromisso de longo prazo com a instituição, no qual serão aportados até R$ 400 milhões nos próximos dez anos. Como um dos resultados, a gratuidade que ocorria uma vez por mês foi estendida para todas as quartas-feiras, dia de maior lotação no parque.
Presença negra na arte
No último mês, Inhotim inaugurou duas novas exposições que apresentam diferentes possibilidades da presença negra no campo da arte. As mostras integram o Programa Abdias Nascimento e o Museu de Arte Negra e ficam em cartaz até o próximo ano.
A exposição Fazer o Moderno, Construir o Contemporâneo: Rubem Valentim contempla produções de mais de 30 anos do artista, cujas obras são marcadas por emblemas e símbolos, geometrias complexas, composições bidimensionais, relevos, objetos, composições e cores, conectando Áfricas, Américas e Europas.
"A trajetória de Rubem Valentim é uma dessas referências emblemáticas que convocam uma revisão, ainda que tardia, e apontam existências negras como protagonistas, como definidoras daquilo que é a arte brasileira", pontuou Lucas Menezes, co-curador da exposição.
Já na mostra coletiva Direito à forma, estão expostos trabalhos de artistas de variadas temporalidades e formas, como Mestre Didi, Rommulo Vieira Conceição, Sônia Gomes, Ayrson Heráclito, entre outros. "O direito a uma investigação formal é o ponto de partida das obras que ocupam o espaço. Seja em consonância, seja em contraposição, esses trabalhos reposicionam uma discussão sobre a arte de autoria negra, muito relacionada, nos últimos anos, à figuração", explica Deri Andrade, co-curador da mostra.
A cultura figurativa, segundo Igor Simões, curador convidado das mostras, relaciona-se com a representação do corpo negro, geralmente em situação de precariedade, que limita os espaços de discussão e tenta fixar o que deve ou não fazer um artista negro. "Um artista negro pode produzir aquilo que ele quiser; pode, inclusive, não se interessar em discutir raça; pode, por que não, abstrair", frisou.
"O que está em jogo nas duas exposições são as inúmeras possibilidades de presença negra no campo da arte, para além de definições que tentam encapsular a produção artística afro-brasileira em um conjunto limitado de manifestações. O que temos são as provas concretas que qualquer tentativa de compreensão da arte brasileira tem de passar pela produção de artistas negros", completou o curador convidado, em conversa com a imprensa.
Saiba Mais
Turismo de experiência
Lançado em julho de 2022, o Céu de Montanhas é resultado de um trabalho de mapeamento, assessoria técnica e sistematização da oferta de turismo rural e de base comunitária em Brumadinho. De acordo com Daniele Teixeira, analista de Sustentabilidade da Vale e coordenadora do projeto, o catálogo foi pensado para diversificar a oferta da região e facilitar o acesso do turista aos atrativos.
"Essa ação busca aumentar o tempo de permanência do visitante que vai a Brumadinho e fortalecer a contribuição do turismo para a economia local." No catálogo, é possível conhecer os 28 empreendimentos do projeto, que oferta vivências, gastronomia, design têxtil, artesanato, cerâmica e música. Todas as vivências do catálogo Céu de Montanhas podem ser acessadas em www.ceudemontanhas.com.br.
Arte imersiva
Ao lado da famosa Praça da Liberdade, em Belo Horizonte, está localizado o Memorial Minas Gerais Vale, um "museu de experiência". Com o uso de tecnologias, ambientes sensoriais e atividades educativas, o espaço une cultura, arte e história. Inaugurado em 1897, o edifício já abrigou a Secretaria de Estado da Fazenda e, mesmo depois de ser restaurado, ainda mantém as linhas arquitetônicas de inspiração francesa e uma icônica escadaria de ferro.
As exposições combinam cenários, luzes, sons, vídeos, imagens, algumas obras e objetos de época, visando recontar a Minas Gerais dos séculos 18 ao 21. Nas salas, o visitante pode interagir com os elementos formadores da cultura mineira, com destaque para a representação das festas de rua, do ambiente rural do interior e da expressividade do barroco. Até agosto deste ano, 83.926 pessoas visitaram o memorial.
Gratuita, a programação abre espaço para diferentes expressões artístico-culturais, novos artistas e vozes periféricas da cidade. Em seus 31 ambientes, entre salas expositivas e espaços de convivência, ocorrem exposições de longa duração, mostras temporárias de arte e atividades culturais e educacionais. Há espetáculos infantis, saraus, oficinas e palestras, festivais e shows que, por vezes, extrapolam os muros e ganham o entorno do edifício.
Literatura indígena
No fim de agosto, o Memorial Vale recebeu a exposição Araetá: a literatura dos povos originários, que apresenta a produção literária de escritores indígenas de 1998 até hoje. Dentre as 305 etnias existentes no Brasil, 40 diferentes povos têm a literatura representada na mostra.
Partindo de uma catalogação da literatura de autoria indígena no Brasil, a exposição, apresentada pelo Instituto Cultural Vale e pelo Ministério da Cultura, através da Lei Federal de Incentivo à Cultura, contempla livros escritos e narrados por indígenas em língua portuguesa e nativa.
Ao compartilhar um pouco do cotidiano de seu povo, a cacica Ãgohô revelou o desejo de resgatar o senso de coletividade e as tradições medicinais, para além dos limites da sua comunidade. "Nos livros didáticos, escritos em língua nativa, fazemos questão de celebrar nossas tradições", concluiu. A exposição pode ser vista até dia 5 de novembro.