No interior do Nordeste, há muito tempo, as pessoas costumavam usar a expressão "nervosinha" para descrever alguém que apresentava sintomas incomuns, como movimentos descoordenados e mudanças súbitas de humor. Sem saber, essa descrição estava relacionada à doença de Huntington (DH), uma condição neurodegenerativa rara que afeta pessoas de todo o mundo.
O nome da doença é uma referência ao médico George Huntington, que fez a primeira descrição do que denominou de Coreia Hereditária — um dos sintomas mais característicos é a coreia (movimentos involuntários e irregulares), observada em mais de 90% das pessoas acometidas pela enfermidade. A descoberta foi em 1872, após observar famílias afetadas em East Hampton, Nova York, identificando o padrão hereditário. O termo coreia tem raízes na palavra latina choreus, que significa dança — devido aos movimentos involuntários.
Os primeiros sintomas e o diagnóstico, geralmente, ocorrem na idade adulta, entre 30 e 50 anos, porém podem acometer crianças e adolescentes (DH infantil). Gradualmente, a doença afeta a autonomia, tornando as atividades diárias básicas, como se alimentar e andar, mais desafiadoras. A pessoa pode sofrer impacto nas atividades rotineiras antes mesmo do surgimento dos movimentos anormais (coreia) devido ao aparecimento de sintomas cognitivos e comportamentais.
A depressão atinge até 50% das pessoas com a patologia. A qualidade de vida de famílias com DH pode ser gravemente afetada — por se tratar de doença genética e hereditária, é muito comum existir mais de uma pessoa com a doença na família.
Localizado em Porto Alegre, o Centro de Atendimento Integral e Treinamento em Doenças Raras (Casa dos Raros) é uma iniciativa inédita na América Latina. Trata-se de uma parceria entre o Instituto Genética para Todos e a Casa Hunter, duas organizações da sociedade civil, que tem como objetivo estabelecer uma rede interligada de atendimento integral para pessoas com doenças raras. Isso envolve diagnóstico rápido e preciso, tratamentos avançados, pesquisas clínicas, bem como o treinamento e a capacitação de profissionais de saúde para atuar na área.
Uma conquista importante foi a criação do Dia Nacional da Conscientização da DH, em 27 de setembro, estabelecido pela Lei nº 14.607/23, sancionada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva em 21 de junho deste ano, com o objetivo de aumentar o conhecimento sobre a doença de Huntington.
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Causa
De acordo com o neurologista especializado em distúrbios de movimento Gustavo Franklin, a DH é causada por uma mutação no gene que codifica a proteína huntingtina (HTT), o que resulta em uma forma anormal da proteína e, consequentemente, leva à morte de células nervosas em áreas específicas do cérebro e causa o comprometimento em diversas funcionalidades do paciente.
Sintomas
Apatia, irritabilidade, depressão e impulsividade, declínio cognitivo, com queda na capacidade de planejamento, da fala e, com o avanço da doença, levando a um quadro de demência. “Muitas vezes, é confundida com doença de Parkinson, doença de Alzheimer, esquizofrenia, vícios em substâncias e outras doenças psiquiátricas”, explica Franklin.
Diagnóstico
De acordo com Gustavo Franklin, o diagnóstico é baseado em sintomas e sinais clínicos, bem como histórico familiar comprovado, além da confirmação por teste genético. O diagnóstico antes da manifestação dos sintomas é desaconselhado e só deve ser realizado, com acompanhamento especializado, em indivíduos adultos saudáveis em risco que queiram saber se são portadores ou não da mutação.
“Não é recomendado em casos suspeitos de DH realizar testes antes do aparecimento dos primeiros sintomas, uma vez que, até o momento, não há medicamentos que alterem o curso natural da doença. Devido ao impacto emocional, só é aconselhável à pessoa orientação familiar e acompanhamento psicológico, caso seja de expressa vontade do indivíduo maior de idade”, afirma o especialista.
Tratamento
Franklin explica que ainda não há cura para a doença de Huntington. Porém, existem tratamentos farmacológicos e multidisciplinares que ajudam a controlar os sintomas e melhoram a qualidade de vida. “Além do tratamento medicamentoso para auxiliar nos sintomas motores e comportamentais, é fundamental que a pessoa com DH tenha acompanhamento multidisciplinar, com fisioterapeuta, nutricionista, fonoaudiólogo e psicólogo”, afirma.
Impactos para o cuidador
Cuidar de um paciente com DH é uma responsabilidade desafiadora e desgastante. Os que assumem esse papel enfrentam desafios emocionais, mentais e físicos, e precisam contar com apoio, assistência e informações.
Para se tornar um cuidador com fortaleza tanto física quanto mental, é fundamental manter atividades de lazer, prática de atividades físicas e contato social, além de compartilhar suas próprias emoções. Além disso, por se tratar de uma doença genética e hereditária, este cuidador pode ser tanto impactado por mais familiares com DH, quanto também ele(a) mesmo(a) estar em risco de desenvolver a doença.
Prevalência
A prevalência estimada da doença de Huntington é de 1/10.000, principalmente em pessoas caucasianas de origem europeia. No Brasil, não há dados oficiais, entretanto, de acordo com levantamento da Associação Brasil Huntington (ABH), o número de pessoas portadoras do gene da doença é de 13 mil a 19 mil, sendo mais recorrente nos municípios de Ervália, em Minas Gerais, região de Senador Sá, no Ceará, e Feira Grande, em Alagoas.
Desafio Global
De acordo com Roberto Giugliani, professor da UFRGS, coordenador o Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Genética Médica Populacional (INAGEMP), fundador e presidente do conselho de administração da Casa dos Raros, as doenças raras são condições médicas que afetam um número limitado de pessoas em todo o mundo, variando de acordo com a região geográfica.
“A odisseia diagnóstica é um aspecto crucial nessa jornada. Surpreendentemente, cerca de 40% das doenças raras são diagnosticadas erroneamente em algum momento, atrasando a obtenção de tratamento adequado. Complicando ainda mais o cenário, terapias específicas estão disponíveis para apenas 5% a 10% das doenças raras”, evidencia o Giugliani.
No Brasil, o Ministério da Saúde implementou políticas e diretrizes para atender pessoas com doenças raras pela Portaria nº 199, de 30 de Janeiro de 2014, incluindo serviços de referência no SUS e a instituição de incentivos financeiros. No entanto, muitos pacientes ainda aguardam atendimento adequado.
De acordo com o gerente da empresa farmacêutica global Teva, Roberto Rocha, o compromisso com a saúde mundial é fundamental nessa luta contra as doenças raras. “A Teva é quem desempenha um papel crucial nesse esforço, com uma estratégia sólida de Responsabilidade Social Empresarial (ESG) fornecendo medicamentos em todo o mundo, incluindo em regiões com necessidades significativas, como a África e o Oeste da Ásia.”
Palavra do especialista
Quais são os principais exames utilizados no diagnóstico da doença de Huntington?
Os testes genéticos são comuns para detectar essa doença degenerativa, utilizando uma proteína reativa para analisar o DNA e verificar sua manifestação. Além disso, exames cerebrais, como ressonância magnética, doppler transcraniano e cintilografia do cérebro, são úteis para identificar áreas problemáticas, como o gânglio da base, que afeta a coordenação motora e também influencia emoções e memória. Investigar as regiões subcorticais do cérebro é desafiador, então faz sentido usar vários marcadores em vez de apenas um para monitorar e formar uma opinião sobre essa doença cerebral.
Além dos testes genéticos, quais abordagens médicas podem ser usadas para confirmar o diagnóstico?
Alguns pacientes têm genes ligados a distúrbios como depressão e TDAH, e a ciência está progredindo na capacidade de alterar a expressão desses genes. Doenças raras enfrentam desafios de pesquisa devido à falta de investimento, dificultando a criação de protocolos de tratamento. Para condições mais comuns, como depressão e TDAH, aplicamos conceitos semelhantes de modificar a expressão genética, mas sua eficácia pode variar, como vimos com o caso da síndrome de Guillain-Barré. Em alguns casos, intervenções podem levar à reversão dos sintomas, como controle da inflamação e neuromodulação, resultando em pacientes assintomáticos a longo prazo.
De que forma famílias com casos da doença podem se mobilizar para fomentar a disseminação de informações sobre a doença?
Quando uma doença é menos conhecida ou rara, é importante que as pessoas afetadas se associem e se mobilizem para impulsionar a pesquisa, a coleta de dados e o desenvolvimento de protocolos de reabilitação e, idealmente, melhorias na qualidade de vida. Essa é uma boa sugestão para quem enfrenta doenças menos convencionais, já que muitas vezes essas pessoas desconhecem outras com a mesma condição. Isso resulta em protocolos de tratamento e diagnóstico limitados devido à falta de informação e de pesquisa.
Ricardo Caiado é psicólogo, neurocientista em psiconeuroimunoendocrinologia e atua na Clínica Heartbrain
*Estagiária sob a supervisão de Sibele Negromonte