Especial

Entre vinhos e tradições: passeio por uma vinícola portuguesa

Visitamos a Cartuxa, vinícola localizada na região do Alentejo que é queridinha dos brasileiros. Dos 22 mil visitantes recebidos no ano passado, 80% tinham o passaporte do Brasil

 Brasileiros têm aulas sobre a produção de vinhos na Adega Cartuxa. -  (crédito: Fotos: Jorge Marques/Especial para o Correio)
Brasileiros têm aulas sobre a produção de vinhos na Adega Cartuxa. - (crédito: Fotos: Jorge Marques/Especial para o Correio)
postado em 22/10/2023 07:00

Lisboa — Patrimônio Mundial da Humanidade, Évora é destino obrigatório para quem visita Portugal. Com joias da arquitetura que remontam ao período romano, é um museu a céu aberto. Sentar-se em um café da Praça Central da cidade de pouco mais de 50 mil habitantes é como voltar no tempo. Difícil não se emocionar ao adentrar a Catedral que levou 18 anos para ser construída, entre 1186 e 1204, e é um dos mais belos monumentos góticos do planeta. Ao mesmo tempo em que se mergulha na história de mais de 2 mil anos da capital do Alentejo, é possível saborear as delícias dos vinhos da região, muito apreciados pelos brasileiros. Em especial, os da Adega Cartuxa, que tem no seu catálogo o mítico Pêra-Manca.

Diz a lenda que, quando aportou no Brasil, em 1500, Pedro Álvares Cabral trazia em sua caravela alguns exemplares de vinhos, que teriam sido produzidos na região das pedras mancas — que se movem facilmente. O português teria oferecido a bebida aos nativos, que, ao provarem, cuspiram imediatamente. Acharam o gosto terrível. O registro sobre o vinho teria sido feito em uma das cartas enviadas por Pero Vaz de Caminha ao rei Dom Manuel I. A história ultrapassou os séculos e ainda hoje é contada, com todas as pompas, dentro da Adega Cartuxa, que, em 1990, passou a produzir o vinho que se consome hoje. O direito de comercializar a marca foi repassado à Fundação Eugénio de Almeida, dona da Cartuxa, por uma vinícola que havia falido anos antes.

O trajeto entre Lisboa e Évora, de pouco mais de 100 quilômetros, é feito com tranquilidade, de trem ou de carro. E são os brasileiros os principais viajantes a desfrutar de tudo o que a cidade oferece. Os registros são feitos pela Cartuxa. No ano passado, a vinícola recebeu 22 mil visitantes, dos quais 80% eram cidadãos do Brasil. Esse movimento já foi superado nos oito primeiros meses de 2023, puxado, claro, pelos brasileiros. Não é diferente na Enoteca criada pela empresa há cerca de oito anos. Dos clientes que reservam os 50 lugares disponíveis para beber um bom vinho e saborear as delícias da culinária portuguesa, aproximadamente 70% têm passaporte do Brasil. Mais: de cada 100 garrafas compradas para levar, seja para consumo próprio, seja para presente, 90 têm como destino o território brasileiro.

 Vinhedos da Adega Cartuxa.
Vinhedos da Adega Cartuxa. (foto: Jorge Marques/Especial para o Correio)

Responsável pelo atendimento da adega da Enoteca, a brasileira Fabíola Regis, 47 anos, dos quais 23 em Portugal, testemunha: "Quase todas as vendas que fazemos são para gente do Brasil. Está claro que os brasileiros despertaram o desejo de saborear um bom vinho". Nas visitas à adega da Cartuxa não é diferente. "Os brasileiros são ótimos clientes. Há grupos de visitas montados só para eles", complementa Jorge Santiago, que guia os turistas pelos corredores e pelos tonéis usados para o envelhecimento da bebida. O desejo maior dos brasileiros é pelo Pêra-Manca. Mas, como a produção dessa pérola é restrita — em 33 anos, foram apenas 14 safras —, há limites. Cada visitante pode comprar apenas uma garrafa do estoque, que, no momento, só tem o branco, ao custo de 58 euros (R$ 320). O tinto varia entre 275 euros e 315 euros (R$ 1.513 e R$ 1.733).

Edição comemorativa

O gosto pelo vinho português não se resume aos visitantes brasileiros. Diretor Comercial da Cartuxa, João Teixeira afirma que 30% das quase 6 milhões de garrafas que a empresa produz por ano seguem diretamente para o Brasil, 60% ficam em Portugal e apenas 10% vão para os demais países. "Mas é certo que a participação dos brasileiros no consumo dos nossos vinhos é muito maior, se levarmos em conta tudo o que é consumido internamente e aparece como sendo de Portugal. Temos de considerar que o número de turistas brasileiros cresce ano a ano e há uma comunidade muito grande oriunda do Brasil vivendo no país", ressalta. Os dados apontam para quase 400 mil brasileiros morando legalmente em Portugal. Quando incluídos os ilegais e aqueles que têm dupla nacionalidade, passam de 600 mil.

 

 Caixa com oito vinhos e uma garrafa de azeite feitos especialmente para a comemoração dos 60 anos da Fundação Eugénio de Almeida, dona da Adega Cartuxa.
Caixa com oito vinhos e uma garrafa de azeite feitos especialmente para a comemoração dos 60 anos da Fundação Eugénio de Almeida, dona da Adega Cartuxa. (foto: Jorge Marques/Especial para o Correio)

O mercado brasileiro é tão estratégico para a Cartuxa, que a companhia separou uma parte da produção especial que acaba de lançar em comemoração aos 60 anos da Fundação Eugénio de Almeida para enviar ao país. Trata-se de uma caixa com oito vinhos, todos de uvas características do Alentejo, e um vidro de azeite. O mimo, que chegará aos consumidores em novembro, custará 1 mil euros cada um (R$ 5,5 mil). Enólogo da Cartuxa, Pedro Baptista diz que os vinhos são da safra de 2021 e essa edição especial terá apenas 1 mil caixas, das quais 10% serão mandadas para o Brasil. Por conta dos impostos de importação, o conjunto de vinhos e azeite não sairá por menos de R$ 8 mil. Os distribuidores no país estão em polvorosa.

Para Francisco Mateus, presidente da Comissão Vitivinícola Regional do Alentejo, não são apenas os vinhos da Cartuxa que atraem os brasileiros. "Com certeza, há uma preferência desse público pelos vinhos alentejanos. Tanto que o Brasil é o maior comprador mundial da nossa produção, e os negócios com o país aumentam ano após ano", assinala. Em 2023, o Alentejo — a região mais pobre de Portugal — fabricará entre 115 milhões e 118 milhões de litros de vinho, com crescimento entre 5% e 10% em relação ao ano anterior. "Nossos vinhos têm sabores muito marcantes, devido às castas de uvas características da localidade, como Aragonês, Trincadeira, Roupeiro, Antão Vaz, Castelão e Alicante Bouschet", acrescenta.

 João Teixeira, diretor Comercial da Adega Cartuxa.
João Teixeira, diretor Comercial da Adega Cartuxa. (foto: Jorge Marques/Especial para o Correio)

Levantamento feito pelo ViniPortugal, com base em informações do governo, mostra que o Brasil é o quarto principal destino das exportações de vinhos portugueses em valor — foram 71 milhões de euros (R$ 391 milhões) no ano passado — e o quinto, em volume — 23,8 milhões de litros da bebida. Os dados trazem uma particularidade. O vinho mais exportado por Portugal é o do Porto, servido como licor. Quando se olha para o Brasil, esse produto é pouco consumido. Não por acaso, quando se retira essa bebida dos indicadores, o país passa a ser o segundo mercado para os vinhos portugueses, atrás apenas dos Estados Unidos. Sem o vinho do Porto e o vinho verde, o Alentejo assume a liderança no ranking dos exportadores, graças ao Brasil. Não só: a Cartuxa passou a ser, individualmente, a maior fornecedora da Europa de vinhos para os brasileiros.

O fenômeno Brasília

Quando se destrincha, por região, os principais compradores dos produtos da Cartuxa e, por consequência, do Alentejo, chama a atenção a força do mercado brasiliense. "Podemos dizer que Brasília é um fenômeno", afirma João Teixeira. Além de o número de bebedores de vinhos ser crescente, a capital do país se tornou um grande entreposto. Quer dizer: recebe os vinhos de Portugal e distribui para outras localidades. Para o executivo da vinícola, é importante ressaltar, porém, que a empresa tem representantes em todos os estados brasileiros. Por isso, o fato de seus produtos serem encontrados com mais facilidade, mesmo no interior.

Fabíola Regis, atendente da Enoteca Cartuxa.
Fabíola Regis é atendente da Enoteca Cartuxa (foto: Jorge Marques/Especial para o Correio)

Há outro ponto a ser assinalado. As áreas em que o agronegócio está crescendo também estão se tornando grandes consumidoras de vinhos, sobretudo dos mais caros. Goiânia é um exemplo claro desse movimento, assim como cidades do Mato Grosso, líder na produção de soja. Se a renda aumenta, o consumo de bebidas mais sofisticadas vai junto. Chama a atenção de Francisco Martins, presidente da Associação das Vinícolas Alentejanas, o conhecimento maior que os brasileiros têm mostrado em relação aos vinhos. Eles não compram mais apenas pelo sabor, querem saber detalhes da produção, os anos das safras, as uvas usadas, o tempo de fermentação e muito mais.

É o caso do empresário Ricardo Cavalcanti, 72 anos. O recifense faz questão de conhecer detalhes do vinho que consome. Dono de dois hotéis, um em Gravatá, ele está se preparando para abrir um restaurante italiano, que terá na carta de vinhos opções de Portugal. Ele conta que tem fortes ligações com o país. O avô nasceu em Vieira do Minho, ao norte, quase na divisa com a Espanha, e foi para o Brasil aos 17 anos de idade. Mas jamais rompeu os laços com suas origens. "Para mim, sempre é um prazer visitar Portugal e provar o que de bom o país oferece, como os vinhos e a culinária", diz.

 Ricardo Cavalcanti, empresário de Recife (PE), em visita à Adega Cartuxa.
Ricardo Cavalcanti, empresário do Recife, foi à adega conhecer detalhes dos vinhos (foto: Jorge Marques/Especial para o Correio)

O alemão Martin Maass, 61, não esconde a paixão por vinhos. Casado com uma brasileira e vivendo em São Leopoldo, no Rio Grande do Sul, ele lembra que, desde muito jovem, sempre gostou de colecionar a bebida. "Qualquer dinheiro extra que ganhava, comprava uma garrafa", conta. Engenheiro de formação tem uma adega que ele mesmo fez debaixo de sua casa, onde guarda exemplares raros. Um deles, um vinho do Porto da safra de 1947, ele fez questão de abrir no dia do batizado do filho, Julius, hoje com 30 anos. O jovem, por sinal, ressalta que aprendeu com o pai a saborear um bom vinho. "Na minha turma, sou o único que aprecia essa bebida, em especial, o moscatel, que é mais doce."

 Martin Mass, engenheiro, morador de São Leopoldo (RS), com o filho Júlio Feitosa Maass, na Enoteca Cartuxa.
Martin Mass, engenheiro, morador de São Leopoldo (RS), com o filho Júlio Feitosa Maass, na Enoteca Cartuxa. (foto: Jorge Marques/Especial para o Correio)

Futuros enólogos

O consumo maior de vinhos tem resultado na glamourização desse mercado. Essa é uma das razões de um número cada vez maior de jovens querer seguir a carreira de enólogo. Na Cartuxa, os pedidos de estágios são frequentes, inclusive de brasileiros. Com toda experiência que acumulou na empresa, o enólogo Pedro Baptista diz que o primeiro passo para ser um bom profissional é se preparar cientificamente por meio de cursos adequados. De nada adianta querer ser um enólogo se não tiver uma formação consistente. "Isso é óbvio", enfatiza.

Baptista aconselha, também, que, antes de seguir carreira, todos os futuros enólogos devem participar de uma vindima, o período de colheita das uvas. A despeito de, em muitas regiões, esse ser visto como um momento festivo, pois os frutos deram resultado, para aqueles que vão definir o sabor dos vinhos, é um período de enorme tensão, que exige dedicação total. Qualquer erro pode resultar em prejuízos enormes. "Quem não está disposto a enfrentar, efetivamente, sofrimento mental e físico, não deve continuar nesse caminho", afirma.

 Pedro Baptista, enólogo da Adega Cartuxa.
Pedro Baptista, enólogo da Adega Cartuxa (foto: Jorge Marques/Especial para o Correio)

Para ele, as pessoas que associam a profissão de enólogo ao glamour não têm a menor noção da realidade. "A sofisticação de determinados vinhos e a exposição frequente de enólogos criam esse tipo de visão. Na minha opinião, não é uma coisa que se justifique", acrescenta. Em vez de se renderem ao mundo da futilidade, os futuros enólogos devem desenvolver a criatividade para chegar a produtos que realmente vão cativar os consumidores. É isso, no entender de Baptista, que deve prevalecer entre os bons profissionais.

Sinal de alerta

Apesar dos muitos motivos para comemorar o ótimo desempenho da produção e das exportações de vinho neste ano, as empresas acenderam o sinal de alerta diante dos eventos extremos provocados pelas mudanças climáticas. O enólogo Pedro Baptista, da Cartuxa, destaca que o aquecimento global já provoca efeitos no ciclo de vida das plantações de uvas. Tem sido frequente o amadurecimento mais rápido de determinadas castas, exigindo atenção redobrada para que os frutos não se percam, assim como quando há excesso de chuvas, que levam ao apodrecimento das frutas.

“Temos investido cada vez mais em soluções para lidar com as questões climáticas. Esse será nosso maior desafio daqui por diante”, admite Baptista, que, desde criança, sonhava em trabalhar na área agrícola. “Só não pensava que seguiria para a produção de vinhos. Agora, não me vejo fazendo outra coisa”, complementa ele, que entrou na Cartuxa em 1997 como técnico agrícola e, em 2004, tornou-se o responsável por todos os produtos da vinícola. São o paladar aguçado dele e a capacidade de saber tirar o melhor de cada uva que mantêm a qualidade do que é oferecido aos consumidores.

 Degustação de vinhos por um grupo de brasileiros na Adega Cartuxa.
Degustação de vinhos por um grupo de brasileiros na Adega Cartuxa (foto: Jorge Marques/Especial para o Correio)

Baptista frisa que a preocupação com o meio ambiente e a escassez de água — o Alentejo é uma região muito seca — levaram a Cartuxa a ser a primeira vinícola de Portugal a adotar o sistema de rega em conta-gotas, ainda no início dos anos 1990. Foi uma economia e tanto. E, dos mais de 170 hectares de vinhas e oliveiras da Fundação, quase 180 já têm produção biológica, dentro dos padrões mais recomendados. Para se manter nessa direção e avançar em pesquisas e desenvolvimento tecnológico, a companhia investe, em média, 6 milhões de euros (R$ 33 milhões) por ano, praticamente todo o valor do que exporta atualmente para o Brasil.

A preocupação ambiental encontra respaldo nos consumidores, que, frequentemente, vêm indagando as empresas sobre suas técnicas de produção. Não se trata ainda de um movimento disseminado, mas que tende a ganhar corpo à medida que as intempéries advindas dos gases de efeito estufa provocarem estragos maiores. Outro questionamento importante tem a ver com a elevada presença de álcool nos vinhos. Há uma tendência de se produzir bebidas com menos teor alcoólico. “É preciso ter equilíbrio. O percentual de álcool não pode comprometer a qualidade dos vinhos”, recomenda o enólogo.

Templo do iluminismo

Dona da Adega Cartuxa, que foi criada em 1986, numa referência aos monges que habitavam o Alentejo, mais precisamente o Mosteiro de Santa Maria Scala Coeli, construído próximo de 1600, a Fundação Eugénio de Almeida usa boa parte do faturamento com a venda de vinhos para promover quatro missões definidas por seu fundador, Vasco Maria Eugénio de Almeida, o conde de Vilalva: desenvolvimento econômico, social, cultural e espiritual. Não há hipótese de se abrir mão desses compromissos, diz a secretária-geral da instituição, Maria do Céu Ramos.

 Maria do Céu Ramos, secretária-geral da Fundação Eugénio de Almeida
Maria do Céu Ramos, secretária-geral da Fundação Eugénio de Almeida (foto: Jorge Marques/Especial para o Correio)

A sede da Fundação, por si só, merece um registro. O prédio, encravado no centro histórico de Évora, abrigou, na Idade Média, o Tribunal da Inquisição, comandado pela Igreja Católica, que mandou muita gente para a fogueira e perseguiu os judeus que moravam em Portugal. Expulsos do país, eles, em boa parte, migraram para Pernambuco, de onde um grupo partiu para os Estados Unidos e, mais à frente, fundaria o que é hoje a cidade de Nova York. Maria do Céu ressalta que o local abriga o Museu de Arte Contemporânea, um templo do iluminismo, em que não há espaço para o obscurantismo.

Além de garantir todo tipo de expressão artística — o museu recebe 19 mil visitantes por ano, boa parte, brasileiros —, a Fundação mantém forte proximidade com a comunidade, de forma a mitigar as desigualdades sociais que ainda perduram em Portugal. Todos os anos, são repassados 200 mil euros (R$ 1,1 milhão) à Caritas, uma entidade assistencial, para atender as necessidades dos mais pobres. Outros 150 mil euros (R$ 825 mil) vão para garantir bolsas de estudos em universidades a alunos carentes.

 Templo Romano, Évora, Portugal.
Templo Romano,em Évora, no Alentejo (foto: Fotos: Jorge Marques/Especial para o Correio)

Ciente dos problemas que esses estudantes enfrentam, a instituição avalia, neste momento, como ajudar os jovens com o pagamento de moradia. Os preços dos aluguéis dispararam. "De nada adianta terem a bolsa de estudos se não tiverem como garantir uma moradia digna. Habitação é o maior problema de Portugal", afirma Maria do Céu. Ela lembra que, na emergência, é preciso agir logo para conter os danos. Na pandemia do novo coronavírus, a Fundação liberou 1 milhão de euros (R$ 5,5 milhões) para o sustento da classe artística, sem distinção. "Tudo parou, muitos profissionais ficaram sem perspectivas", lembra.

Dignidade, sempre

O apoio se estendeu aos que, da noite para o dia, ficaram sem ter o que comer. Com tudo fechado pelo governo, a Fundação decidiu manter em pleno funcionamento a Enoteca Cartuxa, onde os turistas tomam uma garrafa de vinho Pêra-Manca por 315 euros (R$ 1.733). "Passamos a oferecer comida gratuitamente aos mais necessitados. Foram, em média, 200 refeições por dia. Não deixamos de trabalhar um dia sequer", ressalta Bruno Berenguer, 47 anos, chefe de sala da Enoteca. "Foi um trabalho espetacular, que contou com toda a equipe." A secretária-geral da Fundação complementa. "Na vulnerabilidade, é preciso que a dignidade das pessoas seja mantida". Não combater a fome é impensável para ela.

Passado esse período terrível, a Enoteca voltou a funcionar a pleno vapor para atender os apreciadores de vinhos, que, ressalte-se, fazem parte da cesta básica dos portugueses. Conseguir uma reserva no local requer disposição, até porque os 50 lugares são destinados a pessoas que realmente gostam da bebida. Como bem diz Berenguer, a Enoteca não é um local para apressados. "É uma casa de vinhos em que se pode comer algo, não um restaurante onde há algo para beber." Aqui vale um adendo: tudo no cardápio é bom, mas uma das entradas, as lascas de bacalhau com batata palha e ovo, misturados na frente do cliente, e, das sobremesas, o pudim de azeite com salada de laranja e azeitonas, são imperdíveis. São verdadeiras explosões de sabores dentro da boca.

Oferecer essas experiências aos turistas e, ao mesmo tempo, estender as mãos a quem precisa ampliam os desafios da Fundação, que completa 60 anos. No entender de Maria do Céu, ainda há muito a ser feito para que as missões dadas por Vasco Maria cumpram seus objetivos, como combater a pobreza econômica e a pobreza cultural. De volta ao tema habitação, ela lembra que, em 1958, o mecenas doou a 50 famílias de Évora 300 hectares de sua propriedade para que pudessem construir suas casas e plantar. Cada um ganhou um lote. Foi um precursor da reforma agrária.

Monges e suas histórias

 André Moreira, mediador cultural da Fundação Eugénio de Almeida.
André Moreira, mediador cultural da Fundação Eugénio de Almeida (foto: Jorge Marques/Especial para o Correio)

O mediador cultural André Moreira, tem, na ponta da língua, toda a história de Évora, do passado e do presente. E não economiza quando o assunto são os monges cartuxos, que, por séculos, se abrigaram no Alentejo. A ordem da Cartuxa foi fundada há 920 anos por São Bruno, que, desiludido com a riqueza e o excesso de vaidade no mundo, abrigou-se, com um grupo de eremitas, no maciço de Chartreuse, nos Alpes franceses, para uma vida de silêncio e contemplação. Essa ordem, a mais reclusa da Igreja, chegou a Portugal em 1587.

Seis anos depois, os monges deram início à construção do mosteiro de Santa Maria Scala Coeli, com 20 celas. Eles viveram no local até 1834, quando o liberalismo adotado pelo país extinguiu as ordens religiosas. Em 1960, sete deles regressaram para território luso para fundar a nova ordem Cartuxa, com o apoio de Vasco Maria, que havia comprado as ruínas do mosteiro. Os últimos monges viveram no local até 2019.

Hoje, o mosteiro é um dos centros de produção dos vinhos da Adega Cartuxa e continua a mexer com a imaginação de quem passa por lá, nem que seja para provar uma taça da bebida que leva o nome da ordem religiosa, cujo lema é: "Stat Crux dum volvitur orbis", ou "O mundo gira, mas a Cruz permanece".

 

  •  Martin Mass, engenheiro, morador de São Leopoldo (RS), com o filho Julius Feitosa Maass, na Enoteca Cartuxa.
    Martin Mass, engenheiro, morador de São Leopoldo (RS), com o filho Julius Feitosa Maass, na Enoteca Cartuxa. Foto: Jorge Marques/Especial para o Correio
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