O intestino, muitas vezes chamado de segundo cérebro, desempenha um papel fundamental no nosso organismo. Imagine-o como o centro de uma complexa fábrica responsável por tarefas vitais, como a digestão, a absorção de nutrientes e a eliminação de resíduos. Assim como uma fábrica precisa funcionar sem falhas para produzir produtos de alta qualidade, o intestino deve permanecer saudável para garantir o funcionamento ideal do corpo.
Esse órgão, frequentemente subestimado em sua complexidade, abriga uma vasta rede de neurônios, desempenhando um papel surpreendente nas funções autônomas do sistema digestivo e interagindo com o sistema imunológico de maneira intrigante. Esse entendimento permite a inovação da compreensão do microbioma intestinal e promete um futuro promissor no campo da saúde gastrointestinal.
De acordo com a roda de conversa on-line da Janssen, que contou com um time de especialistas que abordaram as doenças inflamatórias intestinais (DIIs), a retocolite ulcerativa e a doença de Crohn afetam milhões de pessoas em todo o mundo. No Brasil, sua incidência está em crescimento, impactando pessoas entre 15 e 40 anos, com até 100 casos por 100 mil habitantes registrados no SUS, e frequentemente estão associadas a comorbidades, como a psoríase, que acomete 11% dos pacientes.
Diagnóstico precoce e acesso ao tratamento são cruciais, apesar da ausência de uma cura definitiva para as DIIs. A conscientização é fundamental, pois sintomas podem causar isolamento e constrangimentos, afetando o bem-estar psicossocial dos pacientes. Ampliar o acesso a terapias é essencial para reduzir o impacto socioeconômico, promovendo tratamentos personalizados por meio da colaboração entre médicos, associações de pacientes e o governo.
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O futuro do tratamento das DIIs
De acordo com a gastroenterologista e pesquisadora de estudos em DIIs pelo Idor Marjorie Argollo, atualmente, temos dois grandes grupos de terapias para tratar pacientes com doenças inflamatórias intestinais, como a doença de Crohn e a retocolite ulcerativa.
“O primeiro grupo inclui terapias convencionais, como corticoides tópicos e sistêmicos, aminossalicilatos e imunossupressores. No entanto, muitos pacientes não respondem a essas terapias e precisam de uma abordagem de tratamento mais eficaz”, explica.
“A ultrassonografia intestinal tornou-se uma técnica não invasiva e precisa para avaliar a atividade inflamatória, monitorar a resposta ao tratamento e identificar complicações em pacientes com DIIs”, afirma Marjorie.
A gastroenterologista destaca que as ferramentas de Inteligência Artificial são utilizadas na genética, na radiologia e na colonoscopia para identificar marcadores genéticos associados ao prognóstico, melhorar a distinção entre fibrose e inflamação e avaliar lesões displásicas ou neoplásicas.
Majorie ainda aborda que existem possibilidades da personalização do tratamento, devido aos novos avanços que permitem diagnósticos mais precisos, prognósticos melhores e tratamentos mais personalizados, com potencial para melhorar a qualidade de vida e os resultados a longo prazo para os pacientes com DIIs.
Sinais de alerta
A doença de Crohn e a retocolite ulcerativa, que são as duas principais DIIs, compartilham sintomas semelhantes, embora apresentem diferenças na localização e na extensão da inflamação. São eles:
- Diarreia
- Dores abdominais
- Perda de peso
- Inchaço
- Falta de apetite
- Fadiga
- Anemia
- Sangramento retal
- Náuseas e vômitos
Como diagnosticar
Para ambas as doenças, o diagnóstico envolve exames de sangue, de fezes e procedimentos como colonoscopia, tomografia computadorizada e ressonância magnética. Esses exames avaliam a inflamação, a extensão da doença e as possíveis complicações. A avaliação começa com uma revisão do histórico médico e familiar do paciente.
Cadastro nacional de pacientes
O Cadastro Nacional de Pacientes (CNP), liderado pelo GEDIIB (Grupo de Estudos da Doença Inflamatória Intestinal do Brasil), tem como objetivo mapear o perfil dos pacientes com DIIs no Brasil.
Esses dados são fundamentais para aprimorar políticas de saúde, aumentar o acesso ao diagnóstico e tratamento e melhorar a qualidade de vida dos pacientes. Desde seu início, em 2020, esse projeto se expandiu para 86 centros médicos em todo o país, coletando informações valiosas sobre pacientes com DIIs.
Os números já coletados revelam informações importantes sobre os pacientes registrados, incluindo idade média, sexo, raça, tempo até o diagnóstico, estado nutricional e manifestações extra intestinais. Esses dados são essenciais para a compreensão das DIIs e para orientar políticas de saúde mais eficazes.
Transplante de microbiota fecal (TMF)
Um procedimento utilizado para tratamento de doenças inflamatórias e infecções por Clostridioides difficile é o transplante de microbiota fecal (TMF). Apesar de reconhecido pelo FDA — agência reguladora ligada ao departamento de saúde do governo dos EUA —, a técnica ainda não foi regulamentada pela Anvida.
O envolve a transferência de fezes de um doador saudável para o intestino de um paciente receptor. O processo inclui a coleta das fezes do doador, sua purificação para isolar as bactérias benéficas, e a administração no paciente, que pode ocorrer por meio da colonoscopia, que é monitorado, após o transplante, para avaliar a eficácia e possíveis reações adversas.
“No Brasil, a Anvisa ainda não regulamentou o TMF como terapia estabelecida, exigindo protocolo de pesquisa aprovado ou consentimento informado do paciente. O TMF mostra promissoras potencialidades no tratamento de doenças autoimunes, como a doença de Crohn e a retocolite, mas há uma lacuna entre pesquisa e aplicação clínica”, detalha o professor Eduardo Varela, associado do Departamento de Clínica Médica da Faculdade de Medicina da UFMG e coordenador do Biobanco de Tumores e Tecidos do Instituto Alfa de Gastroenterologia do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais.
O especialista destaca que o TMF tem uma taxa de sucesso de cerca de 90% no tratamento da infecção por Clostridioides difficile, com resultados positivos observados no Hospital das Clínicas. “A segurança é priorizada, e os doadores passam por avaliações de saúde rigorosas, restrições de idade (18 a 50 anos) e critérios de índice de massa corporal (IMC abaixo de 25). A triagem molecular das fezes dos doadores é feita para detectar microrganismos que podem afetar o receptor”, afirma. No caso das DIIs, o TMF é investigado como uma potencial terapia quando antibióticos convencionais não têm sucesso no tratamento.
Varela enfatiza que a seleção rigorosa de doadores e os exames laboratoriais visam evitar a transmissão de doenças aos receptores, sendo que, até o momento, apenas seis doadores foram aprovados após uma avaliação minuciosa de mais de 170 candidatos. “Os efeitos adversos do TMF são raros, geralmente limitados a cólicas e diarreia nas primeiras horas após o procedimento, tornando-o globalmente bem tolerado. O risco de perfuração intestinal é baixo, especialmente quando o TMF é realizado por colonoscopia.”
Palavra do especialista
Considerando os atrasos no diagnóstico das DIIs e o impacto psicológico que os pacientes enfrentam, como os sistemas de saúde podem melhorar o suporte aos pacientes, desde a identificação precoce dos sintomas até o tratamento?
O ideal é disponibilizar a calprotectina fecal pelo SUS, sendo um exame acessível. Atualmente, a Conitec não o utiliza para todos os pacientes e esse exame seria útil como triagem para suspeita de doenças, permitindo diagnóstico mais rápido. Pacientes com níveis elevados poderiam fazer colonoscopias precoces e iniciar tratamento em centros de referência. A calprotectina fecal é desenvolvida pela Bio-Manguinhos/Fiocruz, mas ainda não foi incorporada pelo SUS, ficando restrita aos beneficiários de planos de saúde.
Dado que o acesso aos imunobiológicos é considerado insuficiente pelos especialistas, como vê a importância de ampliar as opções terapêuticas disponíveis para pacientes com DIIs, especialmente no contexto do SUS e do Rol da ANS?
Diferentes mecanismos de ação permitem alternativas de tratamento caso um não funcione para um paciente, evitando cirurgias e hospitalizações. A participação ativa em consultas públicas, como na INS ou Conitec, é fundamental para incorporar novas tecnologias no sistema de saúde. Além disso, envolver a comunidade médica e os pacientes é crucial para que as autoridades entendam a importância dessas incorporações.
Diante dos dados do CNP e da crescente utilização de medicamentos biológicos, como percebe os desafios de acesso a essas opções terapêuticas para os pacientes com DIIs no Brasil?
Estamos percebendo que, devido à educação médica continuada, há uma utilização mais criteriosa de medicamentos, com aumento no uso de imunobiológicos, resultando em um uso mais racional, além da redução do uso de mesalazina para casos mais graves. Um tratamento adequado é fundamental para evitar cirurgias e hospitalizações. A longo prazo, a prevenção de cirurgias e internações pode economizar custos.
Renata Fróes é gastroenterologista e autora do estudo O impacto socioeconômico da incapacidade no trabalho por doença inflamatória intestinal no Brasil
*Estagiária sob a supervisão de Sibele Negromonte