Quando o assunto é moda sustentável, planeta e pessoas, impreterivelmente, devem andar de mãos dadas. Essa é a filosofia da Trama Afetiva, uma plataforma de convergência e pesquisa em design, inovação para resíduos da indústria têxtil, criada em 2016, e um ambiente de diálogo entre pensadores, artistas, ativistas, cientistas, empresários e representantes da sociedade.
Durante os quase oito anos de existência, ressignificar matérias-primas paradas em estoque é um compromisso inviolável da plataforma. "Quando nós falamos de tecidos parados em estoque, na indústria da moda como um todo, não estamos falando em retalhos, mas em galpões cheios de rolos de tecido. É um processo que pode não ter fim, porque a cada nova coleção mais tecidos são comprados e produzidos e nem todos são utilizados, então acabam sobrando", explica Jackson Araujo, que, ao lado de Luca Predabon e Rogério Zé, criou o projeto com o intuito de buscar uma indústria sustentável, criativa e, sobretudo, inclusiva no cenário da moda.
Preocupados com a questão dos resíduos têxteis, os idealizadores passaram a estudar o tema e entenderam a existência de outros resíduos, chamados pelo projeto de corporeidades políticas. "Esses são os 'resíduos sociais' que a moda sempre colocou debaixo do tapete, os corpos negros, gordos, os corpos femininos, que não querem ser fetichizados, os masculinos que já não querem ser tóxicos, os corpos PCDs e tranvestigêneres. Nós procuramos atuar sempre por essa pauta, existe a preocupação com os resíduos, mas existe, também, grande preocupação em criar linhas de protagonismos para essas corporeidades."
Dessa forma, a Trama Afetiva tem como essência a ideia do coletivo. Chamados por eles de bens não negociáveis, as pessoas e o planeta são o núcleo de qualquer discussão, projeto ou evento relacionados às estruturas do design de moda da plataforma. "As pessoas estão no centro do processo e a gente busca utilizar as ideias que surgem no coletivo para solucionar problemas complexos de forma simplificada", detalha Jackson Araujo, que é comunicólogo e diretor criativo. Para os projetos, a plataforma conta com o apoio da Hering.
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Design sustentável
Desde 2020, a Trama passou a atuar na ressignificação do náilon de guarda-chuvas recuperados do aterro sanitário, que são transformados em roupas e/ou peças em crochê para instalações e exposições. O processo envolve cooperativas de catadoras e catadores de resíduos sólidos, grupos produtivos de costureiras periféricas e também grupos de artistas-artesãos do crochê em situação de vulnerabilidade social.
A primeira coleção, Água, foi lançada ainda em 2020, no Brasil Eco Fashion Week. No ano seguinte, foi a vez da coleção Flores Astrais, construída com guarda-chuvas florais, que são facilmente encontrados nos aterros sanitários.
Antes do lançamento da segunda coleção, Jackson pensou que a Trama poderia ir muito além de recuperar sete guarda-chuvas por peça, que era o número trabalhado até então, por isso sugeriu ao grupo que começassem a produzir, por meio dos tecidos, peças de crochê. À época, Thaís Losso, diretora e designer de moda da Trama Afetiva sugeriu que os tecidos do guarda-chuva passassem a ser cortados como uma "casca de laranja" e, posteriormente, transformados em um fio que pudesse servir para fazer o crochê. A ideia foi acatada pela equipe.
No início, os tecidos eram cortados à mão, com tesouras e depois emendados na máquina de costura, mas Jorge Feitosa, designer tutor da Trama, sugeriu que os fios fossem cortados diretamente na máquina de costura, pois dessa forma seria possível criar novelos com os tecidos. A equipe descobriu, então, que um guarda-chuva equivalia a 42 metros de fitas de nylon. A nova forma de produzir deu supercerto, a ponto de recuperarem 103 guarda-chuvas em apenas um pulôver, que foi lançado na coleção de 2021.
O olhar para a questão social nunca ficou de lado. A plataforma já firmou parcerias com variados projetos que também atuam na transformação social. Junto ao projeto Ponto Firme, idealizado por Gustavo Silvestre, que trabalha com crochê feito por presidiários, a Trama Afetiva conseguiu apoio para gerar um grupo apenas de mulheres egressas do sistema prisional e de pessoas trans em situação de vulnerabilidade social. Os participantes do projeto receberam 800 guarda-chuvas, convertidos em novelos, que foram transformados em uma tapeçaria de 20 metros.
No guarda-roupa
Em 2023, a Trama Afetiva passou a produzir diversas peças vestíveis, quimonos, shorts, saias, jaquetas, bolsas —todas construídas por meio do material reciclável e seguindo a política de produzir o mínimo possível de resíduos. "Se a modelagem não é resíduo zero, tudo o que for resíduo tem que retornar ao local de produção. Então, nós temos peças que são como um quebra-cabeça, feitas com minipedacinhos. Mas a gente não deixa sobrar nada, porque a nossa missão é retirar do aterro aquilo que levaria 30 anos para desaparecer", conta Jackson.
O diretor criativo explica que, antes de haver a destinação do náilon do guarda-chuva, eles paravam na esteira e voltavam para o aterro, porque não tinha quem comprasse aquilo. "A gente abriu um novo campo de trabalho e de monetização para as mulheres que trabalham nos aterros", ressalta Jackson.
As peças são vendidas em feiras, lojas de designers que participam da Trama Afetiva e na internet. A plataforma envia para todo o Brasil, basta enviar um direct no Instagram (@trama_afetiva).
*Estagiária sob a supervisão de Sibele Negromonte
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