Especial

Tradição renovada: a arte que passa por gerações pernambucanas e ganha o mundo

Artesãos de Pernambuco mantêm vivo o trabalho artístico que passa de geração em geração e movimenta o turismo e a economia criativa do estado nordestino

Reza a lenda que os pernambucanos têm mania de grandeza. Eles mesmos costumam dizer, em tom de gozação, que tudo o que é feito por lá ou é o maior ou o melhor do mundo. Brincadeiras à parte, o pernambucano tem mesmo muito do que se orgulhar. Com uma cultura riquíssima e um artesanato diverso e único, o estado conta com uma economia criativa vibrante, um diferencial turístico que vai além das praias paradisíacas do Nordeste.

Com técnicas, algumas milenares, que passam de pai para filho, o artesanato pernambucano chama a atenção por sua forte conexão com a cultura local, fortalecida pelas novas gerações. A bandeira do estado, com seu marcante arco-íris, tornou-se um ícone nacional e hoje estampa camisas, bolsas, peças decorativas, cangas e o que mais a imaginação permitir. Um passaporte, distribuído gratuitamente em pontos turísticos, pode ser carimbado a cada visita a espaços culturais e reforça o slogan que, por lá, é propagado aos quatro cantos: "Meu país é Pernambuco".

Saiba Mais

Durante quatro dias, a Revista esteve presente na 23ª edição da Feira Nacional de Negócios do Artesanato (Fenearte), maior evento do setor da América Latina e que se encerra neste domingo, após intensos 12 dias de programação, conversou com artesãos de diversos municípios, que levam sua arte para o Brasil e o mundo, e visitou alguns pontos turísticos e de economia criativa entre Recife e Olinda.

Andreey Lucas/Divulgação - 2023-07-12 - Revista do Correio - Especial Fenearte Pernambuco

Reverência aos grandes mestres

Uma das características do artesanato pernambucano é a herança passada de pai para filho. Hoje, o estado conta com aproximadamente 120 mestras e mestres artesãos. Para receber o título, além da transmissão do saber para as novas gerações, eles precisam ter notório reconhecimento popular. Espalhados por todo o estado, durante os dias de Fenearte, os artesãos se reúnem para ocupar um lugar de destaque, logo na entrada da feira, onde os visitantes podem ver de perto o seu trabalho e conhecer um pouco da sua história.

Andreey Lucas/Divulgação - 12/07/2023 - Revista do Correio - Especial Fenearte Pernambuco

Valfrido de Oliveira Cezar, o Mestre Fida(@mestrefida), de Garanhuns (PE), participou de todas as 23 edições da Fenearte. Apesar de ter começado sua arte depois dos 40 anos de idade, logo imprimiu uma marca registrada: o Homem Cata-Vento, inspirado em um boneco que o pai tinha ganhado de um amigo quando Fida era criança. Feito em madeira amarela, típica da região, o boneco tem braços articulados que se movem como cataventos. Hoje o seu trabalho é reconhecido em todo o mundo.

Nenhum dos sete filhos de Fida seguiu os passos do pai. Mas o mestre repassa aos vizinhos, na cidade do Agreste, os seus saberes para que a sua arte continue viva. O artesão também produz barcos e os famosos ex-votos.

Roberta Guimaraes/Divulgação - Mestre Fida

Também de Garanhuns, José Sérgio Pereira dos Santos, o Mestre Serginho (@mestre_serginho_artesao), teve sua vida modificada pela arte. Sonhando em ser jogador de futebol, chegou a atuar em times profissionais, mas, com a morte da esposa, precisou arrumar um novo meio de sustento para os filhos, então com 6 e 8 anos. O pai tinha o hobby de esculpir peças em madeira. Serginho aprendeu a técnica e imprimiu a sua própria assinatura ao criar bonecas de roca rústicas — uma releitura dos santos de procissão, ocos na parte inferior para não pesar durante a romaria.

Integrante da Fenearte desde 2012, o artesão de 43 anos é um dos mais concorridos da feira — no segundo dia de evento, tinha vendido toda a produção. Serginho faz questão de dizer que só usa madeira reciclada. Além das bonecas, esculpe santos, animais e peças utilitárias, como bancos.

Daniela Nader/Divulgação - Mestre Serginho

A força feminina

Nascida em Poção, município do Agreste pernambucano, Odete Maciel, a mestra Odete, há mais de oito décadas domina a arte da renascença, renda de origem italiana que encontrou terreno fértil no interior de Pernambuco. Ela conta que a técnica foi levada pelas irmãs da congregação francesa Filhas da Caridade de São Vicente de Paulo à sua cidade natal. Foi a mestra Lalá, apelido de Elza Mendes Medeiros, quem montou um grupo embrionário de rendeiras, do qual dona Odete fazia parte. "Eu era a mais novinha da turma", recorda-se.

Depois de se casar, dona Odete se mudou para a vizinha cidade de Pesqueira, onde vive até hoje. Ativa aos 95 anos, garante que faz renda todos os dias. "O meu trabalho já não é tão bonito por causa da minha vista", lamenta, exibindo uma peça impecavelmente bordada por suas mãos. A veterana diz que sempre fez questão de passar a sua arte para quem estivesse disposto a aprender — foi professora de renascença por muitos anos. Mas se ressente com o fato de não ter descendentes diretos seguindo os seus passos.

Daniela Nader/Divulgação - Mestra Dona Odete

A história de Mestra Odete é contrária à da família de Ana das Carrancas (@anadascarrancas), cujas filhas Maria da Cruz, a Mestra Maria de Ana, e Angela Lima mantêm vivo o trabalho da mãe, artesã que virou símbolo da cultura pernambucana. Dona Maria conta que Ana Leopoldina dos Santos, que este ano completaria 100 anos, nasceu em Santa Filomena, então município de Ouricuri. Viúva, para fugir da seca, foi parar em Petrolina, município na divisa com a Bahia, com as duas filhas e o restante da família. Lá, conheceu o segundo marido e desenvolveu a arte que a deixaria famosa mundialmente.

De início, para ganhar a vida, Ana vendia suas loiças de barro na feira. Um dia, quando tirava barro nas margens do Rio São Francisco, conheceu um pescador que lhe contou a lenda das carrancas — uma estátua, misto de homem e de bicho, que era colocada nas proas das embarcações para protegê-las dos maus espíritos. Ao chegar em casa, a artesã criou uma carranca com as características que imaginou a partir do relato do pescador. A peça virou sua marca registrada. Outra característica marcante das peças de Ana da Carranca é uma homenagem ao seu segundo marido, que era cego. A artesã fez um furo nos olhos das carrancas.

Daniela Nader/Divulgação - Mestra Maria de Ana

"Minha mãe chegava na feira e expunha suas loiças. Quando o povo se aproximava, ela mostrava suas carrancas e todos riam do trabalho dela. Até que, um dia, dois jornalistas da capital foram a Petrolina e conheceram suas peças. Eles se encantaram pelo trabalho da minha mãe e decidiram fazer uma matéria, que foi capa de jornal. A partir daí, as peças ganharam o devido reconhecimento", detalha Maria.

Hoje, Mestra Maria de Ana e Mestra Angela Lima seguem o legado da matriarca. Produzem as clássicas peças e fazem uma releitura do seu trabalho, que foi reconhecido, inclusive, com a Ordem do Mérito Cultural, recebida em Brasília, em 2005, ao lado de outros grandes nomes da cultura brasileira.

Falante, Mestra Maria lembra com alegria o dia em que sua mãe descobriu que ela seguiria os passos dela no artesanato. A filha tinha 8 anos, e a mãe pediu sua ajuda para dar conta da encomenda de 500 carrancas que tinha recebido. "Eu fiquei lá quietinha e fiz a minha própria peça do início ao fim. Minha mãe me olhou e disse: "Graças a Deus, de hoje em diante, tenho quem me ajude".

A preservação de uma arte milenar 

No mezanino do Centro de Convenções de Pernambuco, onde ocorre a Fenearte, uma indígena hipnotiza quem passa. Sentada no chão, ela pega um pedaço de barro e, habilmente, sem a ajuda de torno ou de qualquer outro equipamento, vai moldando o material até transformá-lo em um pote perfeitamente simétrico. Dona Maria Aciole Barbosa, a mestra griô Maria de Dion de Pankararu, é uma das mais antigas do seu povo a manter viva a arte milenar das loiceiras — mulheres que fazem loiças (em português vernacular) de barro.

Mariana Guerra/Divulgação - Performance

Os loiceiros pernambucanos foram o tema da feira deste ano, que contou com a exposição As loiceiras de Tacaratu, fruto de uma pesquisa etnográfica concluída pela fotógrafa Ana Araújo (@fotoanaraujo) em 2017 e iniciada em 1987. Esses 30 anos de trabalho foram registrados no livro As loiceiras de Pernambuco — A arte milenar das mulheres do meu sertão, publicado em 2018. "Comecei fotografando a mestra griô de origem afro­indígena Antônia Inês da Conceição, conhecida como Tônia Loiceira, em 1987, vendendo as suas loiças na feira de Tacaratu", detalha Ana, que nasceu em Tacaratu, cidade a 444km do Recife, e cresceu admirando a arte dessas mulheres.

Maria de Dion é da mesma aldeia de dona Tônia, que morreu em março de 2012, aos 80 anos, e também é retratada no livro da jornalista pernambucana radicada em Brasília. A indígena esteve na Fenearte para mostrar um pouco da arte do seu povo. Aos 66 anos, a penitente, como se apresenta, tem o orgulho de ver as quatro filhas e o "bocado" de netas manterem vivo o seu trabalho. "Enquanto preparo as loiças, eu canto e rezo", conta a mulher, que tem importante papel religioso em sua aldeia, ao mesmo tempo em que é devota de Padre Cícero.

Mariana Guerra/Divulgação - Performance

Essa transmissão dos conhecimentos pela oralidade continua até hoje nas famílias das loiceiras, como explica Ana Araújo. No entanto, os produtos de plástico e as panelas de alumínio seguem tomando o lugar da tradicional cerâmica utilitária de barro antigamente vendidas nas feiras. "Por conta dessa demanda quase inexistente, hoje, só restam em atividade, e produzindo sob encomenda, quatro descendentes da mestra Tônia Loiceira do Altinho e cerca de dez loiceiras das aldeias indígenas Pankararu e Entre­ Serras Pankararu, localizadas nos município de Tacaratu, Jatobá e Petrolândia", detalha.

Dona Maria de Dion confirma que tudo o que produz hoje é usado nos rituais religiosos da aldeia. "Os Praíá (entidades representativas do sagrado Pankararu) vão na frente com as panelas de barro grandes (produzidas por ela e outras mulheres), com comida dentro, e o restante segue com os pratos", explica. As loiças são pintadas com o giz branco da Serra do Sorongo e com o toá, ou tauá, uma pedra de um intenso vermelho-terra. Para o acabamento das peças, também são usadas apenas ferramentas naturais, como sabugo de milho, seixo e cabaça.

Mariana Guerra/Divulgação - 11/07/2023 - Fotos da matéria especial da Revista sobre a Fenearte e artesãos no Recife

Ações como a homenagem dessas mulheres em uma feira de visibilidade mundial e os registros feitos por Ana Araújo mantêm viva essa arte milenar. "Com o olhar de dentro, de filha da terra, busco visibilizar o valor e a beleza do patrimônio cultural e imaterial dos habitantes originários dessa região de Pernambuco.

Trabalho explorado

Durante muitos anos, Cida Lima (@cidamila_oficial) teve o trabalho explorado. A artesã, que vivia das loiças de cerâmica que produzia, tinha dificuldade em conseguir a matéria-prima. Uma moradora de Belo Jardim, sua cidade natal, fornecia o barro, mas, em troca, a hoje mestra dava sua produção quase de graça.


O marido, Germano Ciço da Silva, resolveu dar um basta na situação e correu atrás do material que a mulher precisava para fazer a sua arte. Mas a grande guinada na carreira de Cida ocorreu mesmo quando a artista plástica Ana Veloso conheceu o trabalho dela e disse que ela poderia agregar valor se fizesse algo diferente, único.

Daniela Nader/Divulgação - Mestra Cida Lima e Família

Com aquilo em mente, Cida moldou um boneco que costumava fazer quando criança para brincar. Ao ver aquela cabeça perfeitamente esculpida em barro, a artista plástica profetizou: "Nasce aqui uma artista, seu trabalho vai ganhar o mundo". De fato, as cabeças em cerâmica, com nariz, orelha e um acabamento impecável, encantaram a todos. Em sua primeira Fenearte, em 2011, Cida participou como mestra. Hoje, suas peças estão presentes em galerias de arte de todo o Brasil. "Vendemos até para o exterior", orgulha-se.

Assim, a artesã, que antes mal tinha dinheiro para pôr comida na mesa, hoje emprega nove pessoas da família, sem contar o marido, que continua a cuidar da matéria-prima, os filhos Jadeilson, Jailson e Joselma, que seguem os passos da mãe como artesãos, e o caçula, Josimar, responsável pela administração do negócio. Jailson e Joselma Lima, inclusive, já assinam suas próprias criações, que têm traços próprios.

Para o presidente da Agência de Desenvolvimento Econômico de Pernambuco (Adepe), André Teixeira Filho, esse é o papel da economia criativa: pegar uma vocação e transformar em atividade econômica. "Para isso, precisamos entender por que ela existe, estudá-la, repensá-la, agregar valor e transformar em um negócio lucrativo para o artesão. Ao mesmo tempo, em que o estado vende sua riqueza cultural", detalha. "É isso que, no final das contas, vai resultar no 'orgulho de ser pernambucano'."

Para entender todo esse processo, a Adepe está realizando uma detalhada pesquisa com os artesãos, iniciada pouco antes da Fenearte e que só deve ter os resultados no final do ano. Com base nesse estudo, será possível saber os rumos que a economia criativa de Pernambuco deve seguir.

A jornalista viajou a convite da Adepe

 

Andreey Lucas/Divulgação - 12/07/2023 - Revista do Correio - Especial Fenearte Pernambuco
Andreey Lucas/Divulgação - 12/07/2023 - Revista do Correio - Especial Fenearte Pernambuco
Andreey Lucas/Divulgação - 12/07/2023 - Revista do Correio - Especial Fenearte Pernambuco
Andreey Lucas/Divulgação - 12/07/2023 - Revista do Correio - Especial Fenearte Pernambuco
Andreey Lucas/Divulgação - 2023-07-12 - Revista do Correio - Especial Fenearte Pernambuco
Fotos: Andreey Lucas/Divulgação - 12/07/2023 - Revista do Correio - Especial Fenearte Pernambuco
Daniela Nader/Divulgação - Mestre Serginho
Daniela Nader/Divulgação - Mestre Serginho. Garanhuns. PE
Daniela Nader/Divulgação - Mestra Maria de Ana
Daniela Nader/Divulgação - Mestra Dona Odete
Daniela Nader/Divulgação - Mestra Dona Odete
Roberta Guimaraes/Divulgação - Mestre Fida
Mariana Guerra/Divulgação - Performance
Mariana Guerra/Divulgação - Performance
Mariana Guerra/Divulgação - 11/07/2023 - Fotos da matéria especial da Revista sobre a Fenearte e artesãos no Recife
Daniela Nader/Divulgação - Mestra Dona Odete
Daniela Nader/Divulgação - Mestra Cida Lima e Família
Daniela Nader/Divulgação - Mestra Cida Lima e Família
Daniela Nader/Divulgação - Mestra Cida Lima e Família