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O poder da escuta empática e a importância do trabalho do CVV no Brasil

Nos momentos difíceis da vida, ter quem te escute pode ser essencial. Especialistas falam da importância de existir um ouvido empático e ativo

Detalhes mudam tudo. Muitos deles, em alguns casos, salvam alguém. Essas minuciosidades que muitos acreditam não ter nenhum valor, na verdade, são maiores do que podem imaginar. Atenção, afeto e compreensão, numa relação, são elementos imprescindíveis. Juntos, podem ser encontradas em um único ato: o de escutar. Saber ouvir, livre de preconceitos e coberto de empatia não é para qualquer um. Mas tem gente que se dá pelo outro nesse hábito.

"Alguém te perguntou como é que foi seu dia?", o saudoso Chorão se eternizou em muitas frases na música brasileira. Esse trecho, da canção Céu azul, é simples, mas beira um significado quase que invisível no dia a dia. Na corrida acelerada durante a rotina, importar-se com alguma pessoa a ponto de perguntar se ela está bem é muito raro. Em especial nas relações atuais. Mais do que isso, é dizer a verdade quanto se é questionado. Geralmente, a resposta "estou bem" é mais automática do que sincera.

Essa dificuldade em verbalizar o que sente vem do medo de não ser compreendido. Psicólogo clínico e doutor em linguística, Sérgio Freire explica que, ao ouvir com empatia, você constrói confiança e conexão. Quando alguém se sente entendido e recebido ao falar, é mais provável que consiga compartilhar suas preocupações e problemas. "Também permite que você seja solidário, oferecendo apoio emocional, conselhos práticos ou apenas uma escuta atenta que a pessoa precisa", completa.

Entender uma outra perspectiva, ainda mais diferente da sua, não é uma tarefa fácil. Inclusive, poucos são aqueles que dispõem dessa habilidade. Apesar disso, como diria Carl G. Jung, psiquiatra e psicoterapeuta suíço, fundador da psicologia analítica, quando uma alma humana te procurar, seja apenas uma outra alma humana. Dedique tempo e menos ego, se desfaça das experiências individualizadas. Você não está competindo com ninguém.

60 anos e muitas vidas

No Brasil, a maior referência de escuta voluntária é o Centro de Valorização da Vida (CVV). Criado em 1962, na cidade de São Paulo, sua vinda ao mundo veio, resumidamente, com apenas um objetivo: salvar vidas. Uma década depois, sua expansão a nível nacional começava a acontecer, em Porto Alegre. A entidade também atende de maneira presencial, embora sua popularidade tenha ocorrido por telefone, através do número 188.

Hoje, são mais de 100 pontos de ajuda espalhados pelo país. E há cada vez mais pessoas em busca do mesmo propósito, que é de se doar por alguém. Carlos Correia, 69 anos, porta-voz do CVV, iniciou seus passos como voluntário, em 1992. Atraído por uma faixa de divulgação nas ruas, encontrou nesse convite uma nova forma de enxergar o mundo. Era como se o chamado fosse pessoal — e talvez tenha até sido.

"Eu tinha acabado de perder um colega de faculdade, isso dois anos depois de formados. Aquilo me marcou bastante, sempre ficou na minha cabeça. O que pode levar uma pessoa a isso?", relembra. Tantas perguntas, nenhuma resposta. Após a perda, tentou rememorar sinais e o porquê das coisas terem passado assim, totalmente despercebidas. A filosofia e as motivações do CVV o incentivaram a continuar no processo. Com isso, fez dos últimos 30 anos seu maior propósito.

Em 2010, Leila Herédia, 52, saía de Maceió para a capital federal, depois de terminar os estudos. Um lugar novo, pronto para ser explorado. E no que ela pensava? Ser voluntária de algo que valesse a pena. "Um dia, andando de carro, vi uma propaganda falando sobre as inscrições do CVV. Lá, falavam, também, de alguns valores, como o sigilo, o respeito e o não julgamento. Achei aquilo muito diferente. Como não julgar em uma sociedade em que isso é tão comum?", recorda.

No início, decidiu participar muito mais por curiosidade. Queria saber o que estava por trás de todo aquele trabalho. Afinal, o receio era completamente natural. Trabalhar com a escuta, segundo Leila, é algo que mobiliza não só externamente, mas, também, internamente. Sua ideia de voluntariado não passava por ouvir alguém e, sim, pelo contato físico e presencial. No entanto, o que nasceu em um interesse pela novidade acabou ficando, e está até hoje.

A experiência em ouvir as emoções e dificuldades de uma pessoa anônima também invade Leila. É impossível, para ela, não refletir sobre a própria vida quando se vê em ligação com alguém. Além, é claro, do autoconhecimento ganho nessa troca. "O que eu acho muito ímpar no CVV é essa nova percepção do que é escutar. Não é o ouvir na característica física, não é o trocar palavras. Vai muito além, a gente também repara no silêncio, no tom da voz, na forma do outro se expressar", destaca.

Essa escuta ativa, totalmente presente na conversa, é o que diferencia. Nenhum detalhe é imperceptível, afinal, é pelas particularidades, em muitos momentos, que a ajuda pode ser ainda mais ampla. A capacidade de estar atento e reparar no irreparável. Inclusive, cita esses elementos como primordiais na sua própria forma de ver o mundo. As ligações, conversas e vivências. É o que faz Leila seguir em frente.

Uma voz é um abraço

Essa crença da voluntária, de que o CVV é especial, não é uma visão somente dela. Dos anônimos que ligam diariamente, esse pensamento também existe. Em algum dia, em março deste ano, Carol Ferro (nome fictício), 26, descreve uma crise emocional forte e delicada, logo pela manhã. Longe da irracionalidade e apegada a vários sentimentos negativos, ligou para o CVV, como se isso fosse a última faísca de esperança que lhe restava.

O número chamava e chamava. O desespero aumentando gradualmente. Até que, de repente, conseguiu ser atendida. "Fui abraçada. A pessoa me atendeu e foi muito empática, superatenciosa. Ouviu tudo o que tinha para falar e me aconselhou", ressalta. No início, em razão do turbilhão de sensações, mal conseguia conversar. As palavras escapavam, e o choro tomava conta, movimento natural de quem está passando por um momento difícil.

Depois de uma hora de conversa, uma paz estranha reinou. A calma que parecia ter desaparecido retornou novamente, segundo Carol. Ao final da troca, sentia-se muito melhor. Emocionalmente, a jovem confessa viver uma montanha-russa, entre altos e baixos, quase sempre. Entretanto, voltou com a terapia, algo que a tem ajudado nesse processo. Hoje, quando pensamentos ruins querem tomar conta, tenta se apegar às coisas boas que existem por trás da fumaça da depressão e da ansiedade.

"Penso que isso não é o que quero. Eu quero é viver, compartilhar dias com pessoas que amo e que me amam. Penso que ainda tem um monte de lugares para fotografar e conhecer, isso me acalma e faz os pensamentos ruins irem embora", revela. Tanta coisa difícil, às vezes, se perde nesse mar de coisas boas que ainda existem. Três meses depois, apesar de tudo, Carol prossegue. E não pensa em desistir, graças à sua força, mas, também, a um ouvido que quis prestar atenção. 

Os desafios pós-pandemia

O poder de uma escuta atenta e empática mostrou ainda mais sua importância durante a pandemia da covid-19, quando os índices de casos de ansiedade e depressão explodiram no Brasil e no mundo. No CVV, por exemplo, ao longo do ano de 2020, quando começou a crise sanitária, e um pouco depois, esse efeito foi sentido, seja no boom de ligações, seja no número de pessoas deixando o instituto, como explica o porta-voz Carlos Correia.

Diante do obstáculo e do esforço que teria de ser feito para suprir essas necessidades, uma vez que as pessoas estariam em confinamento, muitos voluntários dobraram a demanda de horário. E isso, claro, também os influenciou emocionalmente. A covid-19, de certa forma, abalou todo mundo. "Tivemos que manter o equilíbrio psicológico para conseguir conversar com quem estava precisando", cita o porta-voz. Hoje, o CVV conta com quase 3.500 voluntários distribuídos pelo Brasil.

Um pouco antes do início da crise sanitária de covid-19, o número de pessoas que procuraram o conforto do CVV era de 3,1 milhões — dado que acabou aumentando, dois anos depois, para 3,9 milhões, de acordo com o painel estatístico do instituto. Passado o período pandêmico, Carlos acredita que os atendimentos se estabilizaram. Em 2022, por exemplo, o CVV recebeu quase 3,3 milhões de ligações.

Na capital federal, mais de 76 mil brasileiros buscaram ajuda no ano passado. Uma média correspondente a oito contatos por hora. No primeiro trimestre de 2023, os voluntários já receberam pouco mais de 700 mil solicitações via 188. De acordo com Carlos, essas variações são comuns.

O porta-voz admite que nem sempre o atendimento é perfeito, já que a carga de trabalho e alguns obstáculos persistem. "Por isso, caso tenha tido alguma experiência ruim, não se preocupe: isso não significa que o CVV não é bom", reforça. "Temos uma quantidade grande de ligações curtas ou abandonadas. Tudo isso acaba gerando uma fila, pois a busca automática do CVV pode acabar levando a pessoa para outros lugares, aumentando o número de espera", justifica.

O conforto no anonimato

Mesmo com impasses naturais, o instituto investe em treinamentos e cursos gratuitos para os voluntários. E, obviamente, em sigilo absoluto. São profissionais totalmente capacitados, que decidiram seguir esse caminho do acolhimento. Não há um motivo específico que faça alguém falar com uma pessoa que não saiba quem é. Talvez o conforto necessário esteja nisso. Quantas vezes você quis desabafar com os seus pais ou amigos e teve medo?

Esse movimento é normal, segundo o voluntário Sérgio Freire. Falar com um estranho pode ser melhor, pois os julgamentos não existirão ou serão sem acidez. "Quando você desabafa com um colega ou um parente, eles podem tender a oferecer conselhos não solicitados. No entanto, desconhecidos têm menos probabilidade de fazer isso, pois não o conhecem tão bem, o que lhe dá a oportunidade de expressar seus sentimentos sem receio de ser julgado", explica.

Na visão do profissional, o discurso do anônimo também é mais objetivo. Em contrapartida, quando você conversa com alguém mais próximo, é mais difícil que eles enxerguem a situação com mais clareza, devido à proximidade emocional. Com isso, as opiniões podem aparecer de forma não tão útil ou até mesmo imparcial. Além disso, existe sempre uma estranha sensação de controlar suas emoções ou precisar censurar tudo o que precisa ser dito.

Conversando com uma pessoa que não tem ideia de quem você seja, a troca pode ser mais catártica. Há uma liberdade profunda nessa questão, na avaliação de Sérgio. "Você pode se sentir mais livre para se expressar sem inibições. Esse é o princípio da escuta qualificada, como a praticada por um psicólogo", aponta Sérgio.

Ouvindo o outro

Graziela Furtado Scarpelli Ferreira, professora e coordenadora do curso de psicologia do Centro Universitário Iesb, afirma que de nada adianta escutar se não for com empatia; se, de fato, você não estiver pronto para se projetar no outro e conseguir enxergar a dor dele. "Essa capacidade de ajudar alguém é dada por uma região cerebral no córtex pré-frontal, na qual utilizamos muito no processo terapêutico", detalha.

Fazer um acolhimento adequado e genuíno é fundamental na hora de estender a mão para aquele que sofre com uma dor incompreendida dentro de si. Diante desse ato, sintomas como depressão e ansiedade, muito comuns, podem ser amenizados, como pondera a profissional. Ser sensível à dor humana é transformar-se em uma luz no fim do túnel para aqueles que padecem.

Além da escuta ativa e qualificada, não esquecer, sobretudo, de buscar o desabafo. Expressar seus sentimentos também faz parte dessa jornada interior. Verbalizar é continuar caminhando rumo ao tratamento da dor. "Conversar sobre nossas dores auxilia para que possamos diminuí-las e identificá-las melhor. Esses fenômenos chamamos de psicoeducação, que é o momento em que conseguimos nomear esses sentimentos", comenta.

Saiba Mais

Um novo começo

Foi baseada nessa crença que Amanda Silva (nome fictício), 21, decidiu ligar para o CVV. Durante vários dias, confessa que uma necessidade de acabar com tudo começou a inundar seus pensamentos. Mas havia uma esperança capaz de competir com eles. Encontrou nela a coragem para discar 188. "Inicialmente, fiquei na espera, mas logo depois me atenderam. Foi uma mulher. Eu desabei em choro e ela me acalmou", lembra.

Uma conversa de 15 minutos que durou uma vida inteira. Ou que, pelo menos, conseguiu salvar uma. Foi aconselhada, ensinada pela voluntária a fazer métodos de relaxamento. A calma que ela precisava estava em alguém que não via seu rosto, mas reparava na sua voz. Desde os 10 anos, talvez tenha sido tudo isso que Amanda tenha buscado. Mas nunca encontrado.

Em alguns momentos, durante as passagens pelo psiquiatra e psicólogo, conseguiu lidar com o sofrimento. Afinal, nada é instantâneo, muito pelo contrário, é um processo. No meio do caminho, deixou o tratamento de lado algumas vezes, o que piorou o quadro. Depois de voltar, acredita estar na rota certa. "Eu me encontro bem melhor. Não acredito que estou 100% e imagino que será bem difícil chegar até lá, mas sempre crendo que eu vou me curar."

Caso precise de ajuda, o CVV funciona 24 horas. O acolhimento previne o suicídio e escuta, com carinho, atenção e zelo. O porta-voz Carlos Correia é enfático ao dizer que, por vezes, a vida disputa um cabo de guerra com muitas coisas negativas que aparecem na jornada de cada indivíduo. Entretanto, há sempre uma saída. E se você chegou até aqui, seja um bom ouvinte. Como pôde perceber, isso pode mudar a história de uma pessoa.

Cuidado com a saúde mental

De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), doenças como depressão e ansiedade cresceram em até 25% no primeiro ano de pandemia. Na época, jovens e mulheres eram os grupos mais impactados com a crise sanitária. Quase dois anos depois, a OMS destaca uma melhora nos números. Mas, ainda sim, reitera o cuidado com a saúde mental da população, em especial aqueles que já possuem condições ou sintomas pré-existentes.

Outro estudo, desta vez publicado pela Pan-Americana da Saúde (Opas), em 9 de junho, por meio do relatório Uma Nova Agenda para a Saúde Mental na Região das Américas, detalha um crescimento de 30% nos casos de depressão e ansiedade ao longo de todo o período pandêmico. Neste meio tempo, o mais assustador, segundo a Opas, é que mais de 80% das pessoas que apresentam quadros mais graves estão sem tratamento.

Ajuda:

Telefone: 188, ligação gratuita e 24 hotas (inclusive feriados)

Email: cvv.org.br/e-mail: preencha os campos com e-mail e a mensagem

Chat: cvv.org.br/chat: atendimento de segunda a quinta, das 9h à 1h, às sextas, das 15h às 23h, aos sábados, das 16h à 1h, e aos domingos, das 17h à 1h

Presencialmente: SRTVN Quadra 702 — Edifício Brasília Rádio Center, Sobreloja 5 (próximo ao Brasília Shopping)