Já conhecemos uma série de atitudes no dia a dia que reconhecidamente podem deixar nosso cérebro mais esperto. Estamos falando de atividade física, sono e alimentação regulares, estar sempre aprendendo, equilíbrio psíquico e um cafezinho para arrematar. Além disso, as famosas pílulas usadas para turbinar o cérebro, conhecidas como “smart drugs”, têm sido cada vez mais consumidas por pessoas sem qualquer tipo de problema neurológico ou psiquiátrico. Uma pesquisa que avaliou o consumo dessas drogas entre dezenas de milhares de pessoas ao redor do mundo mostra um crescimento nada discreto. Em 2017, 14% das pessoas utilizaram essas medicações pelo menos uma vez no último ano, comparado a 5% em 2015. Nos EUA, esse consumo é de 30% da população geral.
O fato é que dispomos de pouquíssimas evidências científicas de que essas pílulas trazem reais benefícios cognitivos a indivíduos sem transtornos neurológicos ou psiquiátricos, e há até resultados mostrando que algumas pessoas podem piorar o desempenho. É como se nosso cérebro fosse uma orquestra bem afinada e introduzíssemos 20 violinos a mais. Pode melhorar, pode não fazer diferença no resultado, ou pode até desafinar. E apesar desse conhecimento ainda estar engatinhando, essas medicações têm-se tornado cada vez mais populares entre adultos e adolescentes, na maior parte das vezes sem qualquer orientação médica.
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Elenco a seguir algumas questões sobre esse fenômeno que têm sido discutidas nos últimos anos por pesquisadores da área.
– Existe atualmente um forte mercado clandestino dessas medicações voltado para indivíduos saudáveis, com transações de compra e venda que podem ser punidas até mesmo com prisão em países como os Estados Unidos.
– O uso de medicações dessa natureza para melhorar o desempenho cerebral poderia ser visto como “trapaça”, ao pensarmos que outras pessoas podem não estar usufruindo dos mesmos benefícios. Não dispomos ainda de regras que regulem se as pessoas podem ou não fazer uso dessas medicações para a realização de um concurso público, por exemplo. Outra situação: uma pessoa tem o hábito de investir no seu equilíbrio psíquico, como, por exemplo, através da meditação e atividade física regular, e outra pessoa não o faz. Esse equilíbrio psíquico tem grandes chances de aumentar o desempenho cognitivo, mas, culturalmente, isso não costuma ser visto como trapaça, já que a pessoa “investiu seus esforços” para alcançar sua vantagem. Por que a vantagem alcançada por pílulas deveria ser vista de outra forma? E será que essas drogas realmente oferecem vantagens no aprendizado ou só melhoram o desempenho a curto prazo em dias de maiores desafios? Será justo para aqueles que não usam as drogas concorrer com outros cérebros turbinados? Seria a mesma coisa se parte dos concorrentes num teste de matemática estivessem usando calculadora e outra parte, não?
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– Medicações dessa natureza poderiam provocar dependência e efeitos colaterais. Por outro lado, até a cafeína é passível de desenvolver dependência e efeitos colaterais, apesar do seu risco de fazer mal à saúde ser infinitamente menor do que de outras drogas. Com base na atual experiência, talvez os riscos de dependência/efeitos colaterais das medicações estimulantes não sejam muito diferentes do que os da cafeína e, por isso, não há razões para tanto receio. É preciso avançar nas pesquisas sobre o assunto.
– Em crianças, as questões éticas são muito mais complexas. A primeira questão é em relação à segurança dessas medicações em indivíduos que ainda têm o cérebro em franco desenvolvimento. Além disso, a criança não tem o poder de fazer suas próprias escolhas. Entre os adultos, há de se considerar no futuro questões éticas ligadas à obrigatoriedade em se usar tais medicações em algumas situações ocupacionais. Nos EUA, o modafinil é hoje uma droga aprovada pelo FDA para trabalhadores em turno invertido. Será que o empregador poderá, um dia, obrigar o trabalhador a usar a medicação para evitar acidentes ou para melhorar o desempenho?
– Como qualquer tecnologia, as “smart drugs” poderão um dia ser bem ou mal usadas. Há muito trabalho pela frente para se avaliar seus custos e benefícios, para se educar a população sobre o assunto e para ajustar a legislação vigente, caso se consiga demonstrar que elas são realmente seguras e eficazes para as pessoas que querem turbinar seus cérebros.
Em entrevista concedida à Scientific American, e publicada há alguns anos na revista Mente & Cérebro, o Prêmio Nobel Eric Kandel, um dos neurocientistas mais renomados do planeta e, certamente, um dos pesquisadores que mais contribuíram para o nosso atual entendimento da memória, declara: “Ainda não temos evidências de segurança e nem mesmo de eficácia do uso de medicações para melhorar o cérebro de pessoas saudáveis. Eu não aconselharia meus netos, pelo menos por enquanto, a usar essas medicações”.
E a cada dia o conselho de Kandel parece ser mais acertado. Este mês, pesquisadores da Universidade de Cambridge, na Inglaterra, e Melbourne, na Austrália, publicaram na Scientific Advances resultados de estudos mostrando que as tais “smart drugs” podem piorar o desempenho cognitivo entre pessoas sem transtornos cognitivos. As medicações deixam os voluntários mais motivados, mas com desempenho menos eficiente, mais errático, com maior demora para execução de tarefas complexas. No caso do metilfenidato (Ritalina), o tempo de execução da tarefa aumentou em 50%. E os mais prejudicados foram os que tinham o melhor desempenho antes de usar as medicações. Talvez caiba aqui novamente a analogia com a orquestra sinfônica com 20 violinos extras e sem ensaio.
*Ricardo Afonso Teixeira é doutor em neurologia pela Unicamp e diretor do Instituto do Cérebro de Brasília
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