Saúde

Desmistificar a hemofilia é crucial para iniciar o tratamento adequado

A ausência de fatores de coagulação pode trazer dificuldades, mas não impede que os pacientes tenham uma rotina normal

Quando ouvimos falar em hemofilia sem conhecer a doença, acabamos pensando nos mitos que cercam a condição. Um deles é de que a pessoa hemofílica não pode, de forma alguma, se cortar ou se ferir, uma vez que nunca pararia de sangrar. E, claro, essa ideia não corresponde à realidade, tanto pela maneira real que a doença afeta o corpo, quanto pela variedade de tratamentos existentes atualmente.

A hemofilia é uma condição hematológica na qual o organismo não consegue realizar o processo de coagulação, o que causa sangramentos excessivos e de longa duração. Existem dois tipos de hemofilia, mas a mais comum é o tipo A. De acordo com a Federação Mundial de Hemofilia, o Brasil tem a quarta maior população de pessoas com hemofilia no mundo, com cerca de 13 mil pacientes diagnosticados.

Segundo dados da Bayer, entre as coagulopatias hereditárias, a hemofilia A é a mais prevalente no Brasil, correspondendo a 40% dos pacientes com esse tipo de doença. Embora a maioria dos afetados pela condição sejam homens, cerca de 99,4%, ela pode se manifestar em mulheres.

E pela alta incidência da doença e pela quantidade de informações equivocadas que ainda circulam, é extremamente importante falar sobre os sinais da hemofilia e não esquecer da pequena porcentagem de mulheres, que costumam demorar para conseguir um diagnóstico correto e começar o tratamento necessário.

Por dentro da doença

- A hemofilia A, a mais comum no mundo, é uma doença hematológica e é classificada como um distúrbio de coagulação.

- Jonathan Ducore, hematologista pediátrico, chefe do Hemostasis and Trombosis Center da UC Davis, explica que a hemofilia A se caracteriza quando os pacientes não produzem ou têm níveis muito baixos de uma proteína chamada fator VIII, essencial para o processo de coagulação.

- Em pessoas que não têm a doença, quando ocorre um sangramento, essa proteína se liga a dois outros fatores e se inicia a formação do coágulo sanguíneo, que ajuda o organismo a estancar e diminuir o sangramento.

- A quantidade de fator VIII produzida naturalmente pelo paciente é o que determina o grau de severidade da doença.

- Nos casos mais leves, que acometem de 15% a 20% dos pacientes, os níveis de fator VIII variam de 5% a 40%.

- Nessa apresentação, os sangramentos espontâneos são raros e costumam ocorrer somente em cirurgias ou após traumas mais graves.

- A versão moderada da doença atinge de 25% a 30% das pessoas e os níveis de fator VIII ficam entre 1% e 5%. Os sangramentos espontâneos não são frequentes, mas acontecem ocasionalmente.

- A hemofilia A severa ou grave é a mais prevalente, atingindo de 50% a 60% dos pacientes, que têm níveis de Fator VIII menores que 1%. Muitos deles não chegam a produzir nada da proteína que auxilia na coagulação.

- Nos pacientes severos, os sangramentos espontâneos são comuns nos músculos e articulações e podem acontecer com o menor esforço, como uma corrida mais intensa.

Tratamentos

- Estudando a hemofilia tipo A há décadas, o hematologista Jonathan Ducore ressalta o avanço nos tratamentos desde a década de 1980.

- No início, os pacientes recebiam o plasma de pessoas não afetadas, obtendo assim a proteína necessária.

- Em seguida, foi possível isolar o fator VIII e, poucos anos depois, a proteína passou a ser criada em laboratório, não sendo necessário o uso de material biológico de outras pessoas, o que aumentava os riscos do paciente criar anticorpos contra as infusões.

- Atualmente, inclusive no Brasil, o tratamento mais comum é a administração profilática de fator VIII, que pode ser combinado com outros fatores e proteínas a depender da necessidade e do sistema imune de cada paciente.

- De acordo com a severidade da doença e da rotina do paciente, as injeções para a reposição do fator coagulante podem acontecer de duas a três vezes por semana, independentemente de o paciente estar sangrando ou não.

- O objetivo desse tratamento é diminuir as ocorrências e melhorar a qualidade de vida do paciente, sendo feito nos casos de hemofilia grave ou moderada.

- No Brasil, 86% dos pacientes recebem tratamento profilático e ele é integralmente realizado pelo Sistema Único de Saúde (SUS).

- O tratamento sob demanda costuma acontecer quando o paciente sofre algum trauma mais sério ou vai passar por uma cirurgia, por exemplo. O Fator VIII é administrado no momento do sangramento, em altas porcentagens.

- Com o tratamento profilático, os pacientes podem ter uma rotina normal. É possível praticar esportes, trabalhar, viajar e até viver aventuras, desde que a reposição dos fatores coagulantes esteja em dia.

- No caso das pacientes mulheres, não só é possível ter um ciclo menstrual normal, como engravidar. É necessário, claro, o acompanhamento com um hematologista e um obstetra.

- Os especialistas ressaltam a importância de que as mulheres entendam todas as possibilidade apesar da hemofilia.

Sintomas

- Os principais sintomas da hemofilia A são o surgimento de marcas roxas sem nenhum trauma, sangramento em músculos e articulações, sangramentos espontâneos, como no nariz, e sangramento prolongado após algum ferimento.

- Normalmente, os pacientes são diagnosticados na primeira infância, uma vez que a maioria tem a forma grave da doença.

Palavra do especialista

Como a hemofilia afeta as mulheres?

A situação é incomum, mas existe. Na maioria das vezes, observamos que as mulheres são portadoras do gene da mutação que causa a hemofilia, mas nem sempre ele se manifesta, uma vez que a mutação está no cromossomo X e as mulheres têm dois. Nos homens, quando eles recebem o gene da mãe, a doença vai se manifestar mais facilmente, uma vez que eles só têm um cromossomo X. Ainda assim, as mulheres podem desenvolver a hemofilia, mas ela não costuma ser na forma grave, o que pode dificultar o diagnóstico, que, na maioria das vezes, é tardio.

Como são os sintomas nas mulheres?

Muito semelhantes como é nos homens, inclusive com sangramentos nas articulações e nos músculos. Elas manifestam os sintomas desde crianças, assim como os homens. Mas são sinais que acabam não sendo vistos, muitas vezes por falta de conhecimento, muitas pessoas ainda acham que as mulheres não podem ter hemofilia e elas sofrem muito com o diagnóstico tardio. Quando a adolescente passa pela menarca, os sinais ficam mais evidentes. A menstruação é muito intensa e dura muitos dias, podendo causar anemia grave se a doença não for identificada.

As mulheres com hemofilia podem engravidar?

Elas podem manter a menstruação fazendo o tratamento mais convencional da hemofilia ou podem optar por tratamentos hormonais para regular ou mesmo interromper o ciclo menstrual, mas isso depende de cada caso e do desejo de cada paciente. E a doença tratada é totalmente compatível com a gestação. Dependendo do nível de fator coagulante que a paciente tem é necessário fazer uma reposição mais intensa durante a gravidez e, principalmente, no momento do parto. Como cada caso é um caso, é importante avaliar e acompanhar todo o processo gestacional com um obstetra e um hematologista. Sobre o tipo de parto, a indicação vem da obstetrícia e, a partir dela, nos preparamos para as precauções necessárias no procedimento. Mas em via de regra, a opção com menos trauma é sempre a ideal. Além do cuidado com o sangramento materno, é necessário ter atenção com o bebê, que tem chances de apresentar a doença e sangramentos logo após o parto, principalmente no sistema nervoso central.

Margareth Ozelo é hematologista do Hemocentro da Unicamp, diretora da Divisão de Hematologia e professora de hematologia e hemoterapia da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp.