O ano era 1970. A carreira profissional estava de vento em popa. Suas coleções de moda, com tantas referências nacionais, eram sucesso no exterior. E o ateliê, sempre frequentado por celebridades. No entanto, uma vida que parecia próspera, aos poucos, era tomada pela angústia da ausência. O Brasil vivia sob uma ditadura militar, e Zuzu Angel procurava pelo filho desaparecido, Stuart. Certa de que ele já não estava vivo, exigiu do Estado, ao menos, um corpo para sepultar. Em 1976, tornouse, também, estatística: foi assassinada.
Antes de ter a vida interrompida, porém, a estilista decidiu se fazer ouvida. Implorou aos órgãos de segurança, fez denúncias à Anistia Internacional e até bateu de porta em porta nos quartéis. Os tecidos de suas criações, antes tão alegres, deram lugar a figuras de pássaros enjaulados e negros, canhões, manchas vermelhas e anjos entristecidos. Era preciso mostrar o que acontecia em seu país, mas também acolher outras mães que compartilhavam da sua tristeza. Há quase 50 anos, Zuzu transformou — como tanto se diz hoje — luto em luta.
E não foi a única. A associação Mães da Praça de Maio, da Argentina, ficou conhecida internacionalmente por reivindicar a verdade sobre seus filhos desaparecidos na ditadura do país. No Brasil, há movimentos com exigências diversas, desde aqueles que visam combater a violência policial e cobrar justiça por parte do Estado, como o Mães de Maio e o Mães de Acari, até os que desejam levar conhecimentos à sociedade, com o fim de protegerem seus filhos do preconceito e da marginalização.
Maternidade também é ato político
Falar sobre maternidade implica trazer à tona questões relativas aos papéis de gênero. Não há como dissociar. Afinal, por muito tempo, tornar-se mãe significou abrir mão das próprias escolhas (e de si mesma) e sofrer sozinha todos os desafios que a criação de um ser impõe. Nas associações, muitas mulheres compartilham o julgamento que recebem do restante da família quando a vida dos seus filhos é atravessada por dificuldades. Para elas, quem diria, sobra mais essa responsabilidade.
Daí o sentimento de solidariedade e união dentro dos movimentos que organizam. Cada uma sabe a cruz que carrega e nem por isso desconsideram a história das demais, mesmo que diferente. Acolhem-se. Nesse sentido, a maternidade sai da esfera privada, do cuidado individual e doméstico, e ganha dimensão coletiva, política. Para Tatiane Duarte, doutora em antropologia pela Universidade de Brasília e membro do Coletivo de Mães da UnB, é preciso romper com a exclusão das mães de espaços políticos e de poder, a fim de garantir uma atuação plena e com acesso a direitos.
“Nós não somos guerreiras nem queremos uma maternidade de batalha. Reivindicamos uma maternidade que possa ser o que ela é: potência revolucionária e beleza; que nos seja plena e com acesso a direitos, à dignidade e à cidadania”, destaca. Dessa forma, a Revista conta, nesta edição especial de Dia das Mães, histórias de mulheres que se mobilizam e desenvolvem um papel político e social em prol dos filhos, das próprias demandas e da sociedade. Elas são, como Tatiane mencionou, potência!
“Droga é preconceito e falta de informação”
Há quem diga que as mães sempre sabem tudo sobre a vida dos filhos. Percebem os detalhes e reparam nas entrelinhas. A assistente social e empresária Tatyane De Camargo, 45 anos, concorda. Quando seu filho Ricardo começou, ainda cedo, a dar sinais de atraso no desenvolvimento, ela desconfiou. “Mãe não se engana. Sempre notei algo diferente nele, mesmo que meu marido e a pediatra dissessem que não era nada.” Mais tarde, a família descobriu que o pequeno possui uma desordem genética rara, chamada síndrome de Sotos, responsável pelo atraso neuropsicomotor.
Taty, como é conhecida, é chegada em tranquilidade. Curte a aromaterapia e adora criar cosméticos naturais, hobby que até transformou em negócio. Porém, quando as crises convulsivas do filho começaram, aos três anos, foi difícil não sentir apreensão. Devido à síndrome, ele desenvolveu epilepsia e, nos momentos de instabilidade, machucava-se excessivamente. Esse, sem dúvida, era o maior desafio para a família, já que as crises eram recorrentes e diárias, mesmo com a polimedicação.
Ricardo acumulava cortes, hematomas e cicatrizes por conta das pancadas e das quedas. Inconformada com o sofrimento do filho e após ler que muitas crianças tinham melhoras na qualidade de vida e no controle de crises com o uso da cannabis, a mãe resolveu tentar o tratamento. No início, importavam o óleo, mesmo sendo caro, e o processo, burocrático. Houve melhora, mas as crises permaneceram. Em 2019, o pequeno passou muito mal — teve mais de 100 crises convulsivas e foi parar na UTI. Por meio de uma associação de pais atípicos, tiveram acesso ao óleo integral (também chamado de “full spectrum”), que mantém todo o fitocomplexo naturalmente produzido pela planta, e optaram por usar.
“Não senti receio e não liguei para qualquer eventual julgamento. Em primeiro lugar, estavam meu filho e a expectativa e esperança de que ele melhorasse”, recorda Taty. A melhora foi rápida e significativa. Prova disso é que as incontáveis crises diárias foram reduzidas a zero. Como a família já tinha todos os documentos e laudos necessários para solicitarem o direito ao cultivo da planta em seu apartamento, decidiram judicializar. Em 2020, em uma única audiência, a juíza concedeu o salvo conduto para cultivo e extração do óleo de cannabis. Antes da vitória, a assistente social pôde contar com o apoio de outras mães que passavam pela mesma situação. Integrou, com duas colegas, o Mães Canábicas do DF.
O grupo não foi para a frente, pois, segundo ela, a vida das mães atípicas é muito corrida, mas a mobilização para que outras famílias possam ter acesso aos efeitos terapêuticos da cannabis continua. Além disso, é preciso tratar o assunto da forma mais natural possível. “Certa vez, ouvi de uma pessoa próxima que eu estava me expondo demais, que estava expondo muito o Ricardinho. Mas foi por causa da exposição de outras mães, lá no passado, que chegou a mim a informação de que meu filho poderia melhorar com a cannabis. Por isso, acho importante falar e contar um pouco da nossa jornada”, reforça.
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Personalidade forte
Taty conta que Ricardo tem uma personalidade forte e decidida. “Puxou de mim.” Hoje, com 11 anos, é considerado pela mãe uma criança feliz, amorosa e muito conversadeira. É daqueles que adoram investigar e perguntar sobre tudo, características que, para ela, revelam uma veia jornalística. Além de curioso, é bastante carinhoso e não perde a oportunidade de dar abraços e beijos em quem gosta.
“Os desafios ainda são vários, como a alfabetização e a inclusão em todos os ambientes, mas, hoje, me sinto muito feliz e realizada por ver meu filho avançando, principalmente por ter autonomia e controle do manejo do cultivo e extração para produzir o seu óleo”, diz. Com o tratamento com a cannabis, ele está muito bem. Ainda toma remédios, mas a dosagem não aumenta há tempos.
Ademais, ganhou maior independência; a fala, o cognitivo e a parte motora melhoraram consideravelmente. Agora, ele, seus pais e sua irmã mais velha, Duda, têm mais tranquilidade e qualidade de vida. Para Taty, em sua casa, maconha é remédio e qualidade de vida. Droga é o preconceito e a falta de informação. Aos risos, ela finaliza: “mãe faz tudo por seu filho, até plantar maconha na varanda do apartamento”.
Conhecer a própria história é o primeiro passo para a mudança
Nascida em Barra, município do interior da Bahia, a professora Francineia Silva, 48 anos, viveu grande parte de sua infância e adolescência na região, onde cresceu e criou laços. Filha de uma educadora da rede pública de ensino e de um eletricista concursado do Ministério da Saúde, viveu uma vida de classe média, sem muitas preocupações.
“Tive bastante brincadeira de rua, com as quais me divertia muito. Meus pais também nos deram muita leitura e incentivaram que fôssemos aos eventos culturais da cidade. Tudo que podiam, nos ofereciam. Além disso, faziam muita festa com a família. A casa estava sempre cheia. Essa foi minha infância e juventude”, relembra.
Vinda para Brasília, em 1993, desejava ter filhos. Assim, aos 36 anos, foi presenteada com a pequena Manuela, 11, e, em seguida, com Milena, 10. Logo se identificou com a maternidade, sempre preocupada em cuidar e fornecer o máximo de experiências possíveis às meninas. “Sinto fascínio imenso em ver o desenvolvimento da criança desde os primeiros passos. Cada fase é uma descoberta mais bonita do que a outra”, conta emocionada.
Racialização
Durante grande parte da vida, Francineia não havia pensado sobre questões ligadas ao racismo. Nos anos 1970/1980, o tema era incipiente e pouco debatido pela família e em outros ambientes frequentados por ela. Isso fez com que esse panorama passasse quase despercebido em meio à rotina.
“Não conseguia perceber, nem compreender muito bem porque algumas pessoas tinham acesso e outras, não. Como eu tinha acesso à educação e a várias outras coisas, não entendia. Mas ouvia falas acerca disso, principalmente do meu pai, de que ‘preto não fazia isso ou não frequentava tal lugar’”, relata.
Ao chegar à capital, ela trabalhou durante um período em um supermercado. Lá, passou a enxergar melhor esse cenário e a estudar mais sobre a origem dele. “Aos 18 anos, ainda não conseguia entender certas coisas que os clientes falavam para mim. Ou por que, quando eu desejava ter outro cargo na empresa, mesmo sendo mais experiente, outra pessoa era chamada no meu lugar. Quando me casei, vi que, com meu marido — um homem branco —, era aceita em alguns ambientes e em outros, não. Ao longo do tempo, fui me ‘empretecendo’ — tomando consciência”, descreve.
O projeto
Dessa racialização nasceu o projeto Valorização da Cultura Afro-Brasileira e Indígena, no Centro de Educação Infantil 01 (Centrinho), de São Sebastião, onde Francineia leciona. A iniciativa tem como base a Lei nº 10.639, que estabelece inclusão do ensino de história e cultura afro-brasileira no currículo oficial da rede de ensino. No entanto, essa não foi a única motivação.
Por conta da vivência de sala de aula, onde lida com alunos de 4 a 5 anos, a educadora, e uma das idealizadoras do projeto, viu a necessidade de uma iniciativa voltada à inclusão. “Percebemos que algumas crianças não aceitavam professores negros, repetiam ditados que traziam algum preconceito ou não queriam brincar com uma criança negra.”
Com muita pesquisa e envolvimento da escola inteira no projeto, a ação ganhou notoriedade. Esse reconhecimento veio na forma de um prêmio concedido pelo Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (CEERT) a instituições que promovem ações voltadas à equidade racial e de gênero.
Em vista disso, os próximos passos visam expandir o projeto, levar outras escolas da região para conhecer a proposta, durante uma aulão que ocorrerá no Centrinho. Para a educadora, a estrutura do projeto é tão complexa quanto a urgência de dar relevância à temática abordada, tendo em vista uma crescente em casos de violência racial.
“Cada vez mais, percebemos que o racismo estrutural nos permeia, e os racistas estão se mostrando. Ao mesmo tempo que há um movimento dizendo que não é só ‘mimimi’ e precisamos ter representatividade, outros querem destruir o que foi conquistado. É necessário que a sociedade abrace isso e que todas as pessoas que acreditam num mundo melhor participem, inclusive na educação”, avalia.
Engajamento materno
Além da dedicação à causa, Francineia prioriza a convivência com as filhas. Assim, grande parte do esforço é conciliar as duas rotinas, procurando dar às pequenas educação que as engaje. “Não é fácil levar a maternidade com leveza e seriedade e, juntamente, lidar com esse trabalho. Acredito que, pela questão antirracista, posso deixar algo para as minhas filhas, e deixo claro que é algo que gosto de fazer”, diz.
Ao mesmo tempo, a professora vê que essa é uma forma que mães podem mostrar aos filhos a importância dessas causas. Para ela, essa foi uma oportunidade de fazer com que as pequenas Manuela e Milena conhecessem, desde cedo, a própria história e ganhassem consciência desse aspecto de sua vivência. “Tenho filhas negras, percebo que elas precisam ter entendimento da história que carregam, toda a força que elas têm como pessoas e toda a coragem que o povo negro tem no mundo. É isso que quero passar para elas: toda essa potência e alegria de viver do povo afro-brasileiro”, explica.
A Universidade também é delas
Dar conta dos cuidados com os filhos e manter os estudos em dia certamente não é fácil. Além do cansaço físico, a carga mental também pesa. Então, ter uma rede de apoio faz toda a diferença. Pensando nisso, o Coletivo de Mães da Universidade de Brasília (CMUnB) se reuniu com o fim de garantir que mães estudantes fossem acolhidas, para que pudessem seguir com a maternidade e também continuar com a formação.
O grupo nasceu em 2016, como uma comunidade de WhatsApp. Expandiu-se e, em 2020, decidiu se organizar e formalizar demandas para exigi-las institucionalmente. Cada membro tem poder de voz e voto, com responsabilidades divididas segundo a disponibilidade de cada uma. Hoje, 186 mães fazem parte da iniciativa, na qual 20 são encarregadas da organização.
A recepção da ideia foi tão boa que, após reunião com a reitoria da universidade, o coletivo foi incluído nas discussões institucionais sobre mães. Agora, em diálogo com a Secretaria de Direitos Humanos e com a Coordenação dos Direitos da Mulher, há tratativas para institucionalizar essa participação e expandir o atendimento realizado para docentes e servidores.
O CMUnB disponibiliza diversas formas de apoio às integrantes, com oferta de cuidados às crianças das participantes e vaquinhas para adquirir itens necessários ao cuidado dos pequenos e das mães. Também estão em articulação as rodas terapêuticas, semelhantes a terapias em grupo. Os encontros devem começar em breve. Para ser atendida pelo grupo, basta procurá-la no Instagram pelo @coletivomaesunb. Lá, encontra-se o link do grupo de WhatsApp do coletivo. É só entrar e se voluntariar.
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“Eu me desenvolvo e evoluo com minha prole”
Imagine só o perrengue de, em uma rotina tão carregada de informações e estímulos, estar fadada a aprender tudo sozinha. Parece desafiador, não? Patrícia Ramiro, 46 anos, é professora da rede pública do DF e sabe bem que, para ensinar e ser ensinada, é fundamental estar de mãos dadas com o outro. Quando o conhecimento vem pelas vivências da sua prole, ela, que também é ativista, coloca-se prontamente na posição de escuta, numa relação familiar alimentada pela amizade. Patrícia, assim como canta Marcelo D2 em um famoso sucesso dos anos 2000, desenvolve-se e evolui com seus filhos.
Ativa, a professora se mobiliza no grupo Mães da Resistência e coordena a Campanha Nacional pelo Direito à Educação. Além disso, a família compartilha o que vive sobre questões relativas à transição de gênero da filha Aurora, 29, e do filho Rafael, e à representatividade, que incluem, também, a jovem Thamyres Yasmin, 13. Uma lição valiosa e primordial versa sobre a transformação que a adoção dos caçulas teve em sua vida. Porque, no caso de Patrícia, o amor de mãe veio do ventre, sim, mas não somente.
Aos 16 anos, descobriu que estava grávida do então namorado, que depois tornou-se marido e, agora, é amigo. Tinha acabado de entrar na UnB para o curso de artes cênicas e a almejada carreira de atriz precisou ser adiada. Buscou emprego, mudou os planos dentro da graduação e prestou concurso para docência. Aurora nasceu, e as duas cresceram juntas; muitas vezes, mais como amigas do que como mãe e filha. Sobre a primogênita, afirma: “Ela tem uma capacidade persuasiva, sensibilidade e amorosidade que impressionam qualquer um. Costuma ser carinhosa e empática com a dor de todos”.
Anos depois, após passar pela dolorosa perda de um bebê, Patrícia cogitou a adoção. Na época, tal processo era chamado pejorativamente de “adoção à brasileira”, no qual não era preciso seguir todos os trâmites legais exigidos atualmente. Assim, ao conhecer uma moça que desejava doar o bebê, decidiu dar mais um passo na maternidade. Acompanhou a gestação e o parto. Quando Rafael nasceu, foi direto para os seus braços. De personalidade forte, o rapaz, desde pequeno, já apresentava indícios de altas habilidades, mostrandose um exímio desenhista.
Já o processo de adoção da Thamyres foi mais longo e complexo. Quando a conheceu, ela era uma criança de dois anos e meio, criada por uma mãe em desespero e sem condições de sequer alimentar-se. A mulher ofereceu a menina à professora, que mesmo receosa, devido a um momento desgastante no casamento, acatou a possibilidade e abraçou a adoção da pequena. Foram várias idas à justiça, até que, sete anos depois, o casal recebeu a certidão. O nome dela foi mantido com a escrita da forma definida pela mãe biológica: Thamyres Yasmin. “Essa é a minha caçula.”
“Por qual nome prefere ser chamado?”
Rafael sempre teve maior afinidade com o que se convencionou, por muito tempo, classificar como “coisas de menino”. Os brinquedos, as roupas, o corte de cabelo. Na adolescência, questionado pela mãe acerca do comportamento agressivo, diferente do habitual, respondeulhe como quem, enfim, pode respirar. “Mãe, eu quero ser um menino.” A reação de Patrícia foi, imediatamente, perguntar qual seria o seu nome. “Declarei meu apoio e o abracei.” Da escola ao consultório do dentista, foi preciso intervir para que usassem o nome social dele.
Recentemente, vendo que o irmão passou pela transição, e a família se mobilizou para apoiá-lo, Aurora revelou, aos prantos, passar por situação semelhante: “Mãe, na verdade, você teve duas meninas e um menino, porque eu sou uma menina”. Mais uma vez, seu colo de mãe estava ali. Queria protegê-los de tudo e de todos. Um equívoco, percebeu. Hoje, direciona o seu papel para torná-los fortes para o mundo. “Que eles tenham suas fragilidades pessoais e que eu possa colocar à disposição as terapias, os médicos e as possibilidades. Dar oportunidade de fala e escuta sensível para construirmos um caminho para as dores que eles apresentam”, desabafa.
Munidos do amor de Patrícia, a família aprendeu a ser resistência desde cedo. Os olhares tortos dentro de restaurantes, de hotéis e em viagens para Rafael e Thamyres trouxeram sofrimento por muito tempo. “Como assim, os pais brancos e essas pessoas pretas?”. A caçula, inclusive, já insistiu para alisar o cabelo e foi preciso todo um esforço por parte da mãe para mostrar a ela a grandiosidade da raça a que pertence, no qual o seu cabelo crespo é um dos atributos. Em meio a tantos padrões de beleza, a jovem encontrou nas tranças a identificação e o conforto que procurava. A professora e ativista abraçou mais uma causa, o antirracismo.
Redes de apoio
Aurora, Rafael e Thamyres sempre participaram, com a mãe, de todos os movimentos políticos e sociais nos quais se envolveu. O objetivo é imprimir para eles a noção de que, enquanto seres humanos, é preciso exigir respeito em todos os espaços. No Mães da Resistência, a constatação de que se mobilizar em conjunto é muito melhor só aumentou. Lá, elas se fortalecem com informações, desde a oferta de emprego até o auxílio em tratamentos. Todos os dias, Patrícia está em movimento. “Conduzo as pessoas a usarem os pronomes corretamente e uso minhas redes para divulgar toda e qualquer ação. Meu legado para meus filhos é esse. Nossa configuração familiar é essa. Tenho muito orgulho de tê-los como filhos.
"Luto para honrar a existência do meu filho"
Quando a professora aposentada Leila D’Arc, 59 anos, foi chamada à escola do filho pela primeira vez, ainda na educação infantil e com a justificativa de que ele tinha comportamentos diferentes do esperado, já sentiu que os anos seguintes seriam desafiadores. Breno era uma criança carinhosa e cuidadosa, característica que incomodou, não os colegas de turma, mas os professores e os gestores.
A situação se repetiu inúmeras vezes até o ensino médio. Já o engajamento da mãe contra o preconceito cresceu proporcionalmente. E, para além dos muros da escola, ela sempre foi considerada culpada por tal “diferença” no filho, primeiro porque a orientação sexual dele não lhe preocupava e segundo pois, desde cedo, foi quem se mobilizou para defendê-lo, como é de praxe em muitos lares. “Nossa sociedade é muito cruel com as mulheres e com as mães”, acrescenta.
Já crescido, Breno começou a tocar como DJ em baladas da cidades, além de iniciar uma graduação em psicologia e um curso para tornar-se cuidador de idosos. Criativo, gostava também de produzir roupas em neon, atribuição que o fez ficar conhecido nas boates LGBTs como Been Neon e Alemão. “Ele era luz e tinha um sorriso maravilhoso. Sempre me pergunto quando ele perdeu essa alegria”, recorda.
Em 2020, aos 23 anos, o jovem partiu. “Meu filho se foi, mas eu continuo aqui e luto para honrar a sua existência, que não é somente individual, mas também, coletiva. Sua luz segue existindo.” Leila, que já era sindicalista, percebeu que era hora de se mobilizar por mais uma causa. Assim, em 2021, ingressou no movimento Mães da Resistência, do qual tornou-se coordenadora, aqui no DF, e secretária-geral.
A organização, nacional e presente em mais 16 estados, inclui familiares de pessoas LGBTQIAPN+ que lutam pelos direitos dos seus filhos. Lá, Leila e as demais ativistas acolhem e orientam outras mães, além de oferecerem apoio psicológico. O objetivo é conscientizar as famílias sobre a importância de fortalecer a luta por essas existências, tão ameaçadas pela intolerância. Ademais, o grupo é ativo em manifestações, em reivindicações no Congresso e em mutirões de retificação de nomes. Recentemente, lançou o curso Movimentos Sociais: da afetividade à efetividade e, ainda este ano, marcará presença na tradicional Parada do Orgulho, em São Paulo.
Todo dia, um novo dia
Quando Breno se foi, Leila precisou lidar com mais um estigma, o do suicídio. Muitos familiares e conhecidos, na tentativa de a consolar, faziam comentários inconvenientes e até desrespeitosos sobre a sexualidade do filho, atitudes que multiplicavam sua dor. “Como pode, uma sociedade adoecida, cobrar que todos estejam bem o tempo inteiro?”, perguntava-se, refletindo sobre os julgamentos que sua família recebia.
O suporte para, aos poucos, se fortalecer, veio da filha e dos netos, que asseguravam à avó que tudo ficaria bem. Foi na organização coletiva de mães, porém, que a ativista encontrou uma forma de dar continuidade ao legado do filho. Naquele espaço, sentiu-se abraçada. Foi salva, como destacou. Sobre a saudade de Breno, explica que tudo o que vem de bom também dói, porque ele não está. Mas, ao mesmo tempo, celebra sua memória à medida que acolhe os outros. “No movimento, aprendemos que quando nasce um filho LGBTQIAPN+, nasce uma mãe da resistência”, emociona-se.
Mulheres fortalecidas
Os motivos que levam muitas mães a se engajarem em projetos e causas são bastante individuais e podem ou não ser atravessados pela maternidade. Parece óbvio, mas é importante sempre reforçar que cada mulher, antes de ser mãe, tem sua história de vida — seu corpo, suas experiências, suas ideias e suas crenças —, que pode influenciar tal mobilização. Às vezes, as demandas são compartilhadas entre elas e os filhos, abrindo, inclusive, a possibilidade de fortalecimento dessa relação.
Ademais, a psicóloga perinatal Stephanie Veloso lembra que muitas mulheres encontram em seus posicionamentos uma maneira de ultrapassar momentos difíceis. Ou seja, elas compreendem que não conseguem mudar a situação, mas têm a liberdade de escolher como irão se posicionar diante dos acontecimentos. E, dessa forma, podem dar outros significados para as experiências e se fortalecerem à medida que buscam um sentido.
E é possível encontrar sentido mesmo em meio ao sofrimento, como ocorre no caso de mães enlutadas. O engajamento e a luta de mulheres após a perda de seus filhos são uma das possibilidades, dado que o contato e a união com outras mães promovem momentos de trocas, socialização e afeto. “Essa atitude não tem potencial apenas de reafirmar o amor por eles, mas também de ser uma forma de encontrar razão para continuar seguindo”, explica a especialista.
*Estagiários sob a supervisão de Sibele Negromonte