Imagine só o cenário: poeira ao horizonte, marteladas a todo vapor e trabalho pesado. Na construção de Brasília, todos esses elementos uniram-se, intensamente, aos sonhos daqueles que acreditaram no projeto de JK. Realmente, foi preciso acreditar. Afinal, buscar uma nova vida naquela imensidão de terra vermelha ia contra muito do que se pregava sobre estabilidade. Por isso, também foi preciso ser corajoso. E corajosa. Pois engana-se quem pensa que a capital foi resultado somente do suor dos homens.
As mulheres estavam lá, o tempo todo. Delas, porém, pouco se falou por muitos anos. Assim como, na mesma medida em que, aqui, conquistaram liberdade, confrontando um Brasil ainda tão conservador, tiveram suas contribuições esquecidas ou minimizadas. O contexto só começou a mudar quando outras mulheres se inquietaram com a questão e partiram em busca da história dessas pioneiras, como fez a cineasta e pesquisadora brasiliense Tânia Fontenele.
Recentemente, mais uma iniciativa: Elizabet Campos, professora e psicóloga, criou o grupo Pioneiras/Candangas, que, entre tantos objetivos, visa compartilhar suas vivências com o público mais jovem da capital. E são relatos de muita luta, dor, sonhos e esperança. Semelhante ao que canta Milton Nascimento em Maria, Maria, as mulheres pioneiras tiveram, para a nossa sorte, "a estranha mania de ter fé na vida".
Inspirada pelos 63 anos da capital e por essas trajetórias, a Revista conta as histórias das mulheres que foram essenciais para o desenvolvimento de Brasília. Pioneiras e candangas, elas compartilham lembranças marcantes de tempos que, apesar de difíceis, deixam saudades. E mais: a Universidade de Brasília, também aniversariante, é celebrada pelos olhos de quem a admira e é admirada por ela.
A satisfação de crescer de mãos dadas com a capital
Natural de Piracanjuba, em Goiás, Elizabet Campos chegou ainda menina no que viria a ser Brasília. O ano era 1959, e seus pais, Ana e Geremias, vieram, num caminhão, abrir o Restaurante do Povo, na Cidade Livre. O local era querido (e lotado) por trabalhadores e figuras ilustres, como Juscelino Kubitschek e Israel Pinheiro. "Minha mãe não podia ver o presidente chegar que já corria para fritar mandioca. Ele adorava", recorda-se, aos risos.
Da figura materna, herdou o apreço por casa cheia e o espírito empreendedor. Animada, aos 8 anos, já recebia patrocínio para cantar no programa Carrossel da alegria, da Rádio Nacional, e aos 16, alfabetizava, voluntariamente, operários que não tiveram acesso aos estudos. Desse tempo, guarda a memória viva dos incêndios frequentes nos barracos da Cidade Livre e da emoção de assistir às missas lado a lado a JK e a dona Sarah.
Foi com muita dedicação aos estudos e à vida profissional que Elizabet quebrou paradigmas e se destacou em seu meio. Ingressou na Secretaria de Educação do DF, formou-se psicóloga, fez pós-graduação, foi para o exterior se aprimorar e assumiu postos de liderança. Tornou-se, por exemplo, a primeira mulher a ocupar o cargo de secretária de Estado de Administração do Governo do DF, bem como se encarregar da função de diretora de Administração e Recursos Humanos do Branco de Brasília.
Posteriormente, a pioneira fundou o Instituto Brasileiro de Qualidade de Vida (IBQV) e, por sua sugestão, a Câmara Legislativa criou o Dia da Qualidade de Vida do DF — 23 de setembro —, hoje parte do calendário oficial de eventos da capital. "Acredito que Brasília possibilita um enriquecimento cultural, integra seus habitantes à natureza, oferece muito lazer, áreas públicas preservadas e parques para todos os gostos. O inchaço populacional, por outro lado, coloca parte dos habitantes em situação de carência, algo que precisa ser monitorado e aprimorado", explicou.
Em 2000, Elizabet recebeu o título de cidadã honorária de Brasília, como reconhecimento público pelos serviços prestados e pelo amor que dedica à capital.
Pioneiras/Candangas
Em 2022, no aniversário de Brasília, Elizabet teve a iniciativa de procurar as mulheres que, como ela, chegaram aqui no período da construção ou nos anos iniciais da cidade. Um contato aqui, uma mensagem ali, e a psicóloga conseguiu, enfim, reunir 28 pessoas, entre pioneiras e candangas. Entre os objetivos do grupo, estão: compartilhar as vivências com os jovens, em escolas e faculdades; recuperar e revitalizar o Museu Vivo da Memória Candanga; preservar a capital e, claro, recordar esses tempos e colocar o papo em dia. As reuniões ocorrem de dois em dois meses. Quem desejar obter mais informações, pode entrar em contato pelo e-mail elizabetcampos@uol.com.br.
"Brasília é um paraíso"
Aos 15 anos, Maria Helena Gomide veio para a inauguração de Brasília acompanhada do pai. Encantada, imaginou que seria incrível se, no futuro, pudesse vir morar aqui. O devaneio, veja só, tornou-se realidade pouco tempo depois, quando, em 1966, casou-se com o engenheiro Wadjô da Costa Gomide, que no ano seguinte tornou-se o último prefeito da capital.
Como primeira-dama, sentiu a alegria da nova fase, mas também a pressão dos inúmeros compromissos. Aos 21 anos e grávida do primeiro filho, sentia receio de não dar conta. Mas deu. Tanto que não apenas recepcionou autoridades de outros países, como as acompanhou por todos os passeios pela cidade. Um dos encontros mais ilustres, inclusive para Brasília, foi com a rainha Elizabeth e o príncipe Philip, em 1968.
"Lembro que ela ficou impressionada por eu estar acompanhando-os em todos os eventos, mesmo grávida, e por ser muito jovem", recorda-se. Maria Helena acredita que as pessoas ficaram muito curiosas pela notícia de que Brasília estava sendo construída no "meio do nada" e, por isso, a visita de autoridades, nesse começo, era constante.
Entre os passatempos da época, rememora o apreço pela leitura de romances e de jornais, além de gostar muito de nadar e de escutar músicas italianas e da Jovem Guarda, em especial, de Roberto Carlos. Acompanhar a missa dos aniversários da cidade, na Catedral, também era um programa que lhe emocionava. "As pessoas se orgulhavam de ver a capital solidificada; era muito bonito."
Aos 30 anos e com os quatro filhos já criados, decidiu cursar direito e se dedicar aos estudos. Trabalhou como advogada por um curto período e, depois, destinou parte do seu tempo a ações sociais. Hoje, aos 77 anos, ocupa-se com os trabalhos em sua fazenda. Quando questionada sobre o carinho pela cidade, lembra de se perguntar, mais jovem, se estaria viva para ver as pequenas mudas de plantas, daquela terra vermelha, crescidas. Acima de nós, o verde das árvores. Emocionou-se.
"As dificuldades viraram aprendizados"
Entre as pioneiras do grupo, Marilda Porto, 83 anos, é a que chegou aqui há mais tempo, em 1957, acompanhando o marido, Edson Porto, o primeiro médico a realizar atendimentos no que viria a ser Brasília. Eles se conheceram em um baile em Goiânia, e o pedido de casamento não tardou. Juntos, foram viver na Cidade Livre, próximos ao posto onde dezenas de operários recebiam assistência todos os dias.
“Eram eles mesmos, os trabalhadores, que faziam os andaimes. Muitos costumavam trabalhar de chinelo ou com chapéu de palha”, comenta. Apesar de se submeterem a condições arriscadas, Marilda reforça que todos batalhavam com muito entusiasmo, dado que o único receio era não conseguir inaugurar a capital.
E se para muitos a poeira e o barro foram um problema, para a pioneira não era sacrifício algum — em sua cidade natal, no interior de Goiás, já havia se acostumado. Daqui, nunca sentiu vontade de ir embora, e até as dificuldades, como presenciar situações delicadas no postinho, lhe trouxeram maturidade. Aos poucos, os amigos se tornaram família e, em cada lar, foram estabelecidos valores próprios.
“Olho para Brasília com muito orgulho e gratidão, pois participei da sua história, sou parte dela.” Marilda ajudou a construir a cidade e, reciprocamente, a cidade lhe acolheu.
Infância com sabor de liberdade
Quando a psicóloga Dulce Tannuri chegou a Brasília, com 2 anos, em 1960, ambas ainda eram crianças. Seu pai, que foi médico e um dos fundadores do Hospital de Base, trouxe a família, do Rio de Janeiro, para cá. Na Asa Sul, cresceu na convivência dos moradores da quadra e dos amigos do Colégio Sacré-Coeur de Marie.
“Todas as tardes, depois de estudar, descíamos para ficar embaixo do bloco, brincando com os amigos de pique-esconde, pingue-pongue; jogando bets, vôlei e futebol”, lembra-se. Os fins de semana eram reservados aos passeios no parque, no cinema e no clube, com a família. A sensação que a cidade proporcionava às crianças, no geral, era de liberdade, como confirmou a pesquisadora Tânia Fontenele, na obra Poeira e Batom no Planalto Central.
Na juventude, as festas na boate do Iate Clube e o “Congressinho”, localizado no Clube do Congresso, garantiram noites de dança e diversão aos sábados. A lanchonete Chaplin, na galeria do Cine Karim, os barzinhos do Gilberto Salomão e os bailes de carnaval alimentam a memória afetiva de Dulce por Brasília. “Eram os locais onde eu tinha certeza de que encontraria os amigos de quem eu mais gostava.”
Convivência com a "meninada" da UnB
Conceição Pinheiro saiu de Patos de Minas rumo a Brasília para acompanhar o marido, empresário de transporte de carga e transporte coletivo, que trabalhou na construção da capital e da rodovia que ligava a cidade a Belo Horizonte. Em 1959, aos 17 anos, casou-se e, na lua de mel, inaugurou o Brasília Palace Hotel, na época ainda em fase experimental. “Estavam preparando o local para receber as autoridades para a inauguração no ano seguinte”, comenta.
Orgulha-se dos cinco filhos serem formados pela UnB e, como sempre gostou de receber a “meninada” em sua casa, estreitou a relação com outras famílias da região, fortalecendo o vínculo de amizades. Aos 65 anos, decidiu cursar direito, complementando a primeira formação, em serviço social. Conceição passou por inúmeras áreas de trabalho social — há 30 anos é conselheira da Ação Social do Planalto — e até para a China já viajou para representar Brasília.
Docência na capital
A aposentada Marlene Souza ainda se recorda da empolgação da família com o projeto de JK. Em Araguari (MG), onde nasceu, a euforia com a construção de Brasília era contagiante. Quer dizer, até certo ponto. É que quando precisou passar um tempo aqui na capital, em 1961, devido ao trabalho do pai, a jovem, então com 19 anos, só conseguia pensar “Poxa, saímos de um lugar tão confortável para vir para cá, com poeira para todos os lados”.
Até quando foi convidada para trabalhar na Novacap, na seção de correspondências, fez questão de deixar claro que se tratava de um emprego temporário. “Apenas dois meses e volto para Araguari.” Arriscou-se, porém, em uma prova para o concurso de professor. Fez só por fazer. Sem expectativas. Mas, para sua surpresa, foi aprovada, e muito bem. Daí não teve jeito. O salário era bastante atrativo comparado a outros locais e seria uma nova oportunidade de vida. Aceitou.
A pioneira iniciou os trabalhos nas classes de alfabetização e não se esquece da autenticidade das crianças. “As aulas eram dinâmicas, os alunos se sentiam integrados e a cidade era sempre exaltada”, recorda-se. Posteriormente, passou para a escola da 114 sul, conhecida como um modelo, e, na 102 sul, tornou-se diretora do jardim de infância.
Depois que se aposentou, passou a dedicar mais tempo a obras sociais. Hoje, não se arrepende nem um pouco de ter se mudado para a capital. “Aqui, pude trabalhar com o que gostava e, principalmente, realizar o sonho de formar minha família, com meus quatro filhos.”
Memórias femininas e quebra de paradigmas
Vamos lá, desafio rápido: cite uma mulher importante — e reconhecida — pela formação de Brasília. Valendo! Lembrou-se? Talvez muitos mencionem dona Sarah Kubitschek, ex-primeira-dama do país e esposa do JK, mas, no geral, as referências da cidade estão atreladas aos homens, conforme nos foi ensinado ao longo do tempo.
"Juscelino, Oscar Niemeyer e Lúcio Costa, além dos operários, claro. Evidentemente foram figuras elementares, merecendo o prestígio que têm. No entanto, sempre me perguntei onde estavam as mulheres, como minha mãe, professora, que também habitaram essa terra e fizeram sua história aqui. Elas existem e precisam ter voz", explica Tânia Fontenele, cineasta brasiliense.
Motivada a contar essas histórias, a também pesquisadora desenvolveu a tese de doutorado Memórias Femininas da Construção de Brasília: narrativa a partir do filme Poeira e Batom — A humanização do monumental, resultado de anos de investigação sobre o assunto. Chama atenção o fato de a constituição da capital ter representado, para muitas mulheres, a quebra de paradigmas no que tange aos papéis de gênero até então destinados a elas.
Aqui, desempenharam funções de parteiras, cozinheiras, lavadeiras, engenheiras, professoras, prostitutas, donas de casa, dentre outras profissões. Segundo relatos de pioneiras, reunidos para a tese, a fundação da cidade trazia o símbolo do novo, do que havia de mais moderno, e, assim, o controle do qual as mulheres estavam acostumadas, em outros locais, era muito menor.
Uma estratégia comum, para conquistar tal liberdade, era tornar-se professora, visto que os concursos para docência cresciam em todo o país. Em Brasília, os salários eram compensadores e superiores a outras regiões brasileiras, atraindo pela possibilidade de independência econômica e social. Ademais, os jovens casais, ao chegarem à cidade, precisavam encontrar meios de criar seus filhos sem apoio de avós, tios e demais familiares. O jeito, então, era contar com a ajuda mútua para poderem lidar com o cenário de desafios.
De olho na programação
O filme Poeira e Batom, de Tânia Fontenele, estará em exibição no Cine Brasília, de 22 a 26 de maio, às 18h, e no dia 29 do mesmo mês, às 20h. Que tal conhecer a história das mulheres pioneiras e candangas de Brasília?
Maiores informações no site www.cultura.df.gov.br/cinebrasilia.
Pioneirismo para inspirar
Se existe um lugar que, ainda hoje, consegue representar bem os ânimos de Brasília — muitas vezes, até do Brasil —, é a Universidade de Brasília. Não importa o clima, o governo, os cortes orçamentários, tampouco as recentes ameaças de ataques. A UnB sempre está em movimento. Com espírito jovem, acolhe a todos que estiverem dispostos a desbravá-la. A UnB gosta de gente; gosta de encontros; de quem "deixa e recebe um tanto".
A professora Maria José Rossi, 86 anos, que o diga. Quando chegou a Brasília, em 1980, a universidade foi o local escolhido para atuar — por lá se manteve por 17 anos. Na época, retornou ao país pela Lei da Anistia, visto que seu marido era refugiado político e precisaram se mudar para a Bélgica. Aqui, começou a dar aulas na Faculdade de Ciências da Saúde, por ser formada em enfermagem.
Da sua chegada, recorda-se do clima de tensão que o regime militar ainda causava. "Não fale muita coisa, pois as paredes têm ouvidos", recomendava uma colega. "Algumas pessoas tinham medo de sofrer represálias da Reitoria. Mas, da minha parte, sempre estimulei os alunos a fazerem seu centro acadêmico e a ingressarem no diretório estudantil, pois essas também eram formas de lutar por liberdade", ressalta. Na docência, o que mais gostava era justamente o contato com os estudantes.
Já a escolha pela enfermagem se deu por duas razões: por gostar muito de ajudar as pessoas e por influência da família, pois sua mãe desejava ter uma filha enfermeira; uma, professora; e outra, assistente social. Do pai, escutava que negros só tinham vez se estudassem, devido ao preconceito racial. E, apesar do apreço pela profissão, nunca gostou da dependência que eram influenciados a ter dos médicos.
Tal insatisfação foi motivo para engajar-se na luta pela independência do ofício, tanto que desenvolveu um doutorado sobre a constituição da enfermagem enquanto campo profissional no Brasil. No Ministério da Educação, atuou como coordenadora da Comissão de Especialistas. Entre 1986 e 1989, foi presidente da Associação Brasileira de Enfermagem — até então, somente uma mulher negra havia assumido esse posto, e com muita dificuldade.
"Ao mesmo tempo em que me sentia estranha, por ser a única negra nesses ambientes, sentia-me, também, muito encorajada por ter sido escolhida para um cargo com tantas responsabilidades. Como uma mulher negra e nordestina, foi uma vitória", celebra. Com muito trabalho, foi possível alinhar a associação à realidade do país, a fim de tornar a enfermagem um direito de todos. A reforma sanitária e a criação do sindicato completam a lista de conquistas.
Mais de 20 anos após se aposentar, Maria José Rossi pretende retornar ao câmpus e, recentemente, foi indicada ao Conselho Comunitário da UnB para representar os aposentados. "Gosto muito desse lugar e das vivências que construí lá." A dupla, formada pela professora e pela universidade, prova que o pioneirismo, além de demarcar um momento histórico, deve inspirar. Elas inspiram.
*Estagiária sob a supervisão de Sibele Negromonte