Dificuldades, invisibilidade e falta de inclusão. A luta de pacientes que têm alguma doença rara no Brasil é cheia de obstáculos e inacessibilidade em vários aspectos. Medicamentos de alto custo ou o difícil diálogo com o governo são alguns desses pontos centrais. Sobretudo, o pouco interesse da sociedade no geral em abraçar essas pessoas, que passam uma vida tentando ser enxergadas.
Tamanho são os impasses que, no meio dessa jornada controversa, surgem aqueles que se interessam em estender a mão. Indivíduos que, na maioria das vezes, perdem alguém para alguma doença rara e decidem viver em prol da causa. Além deles, entidades sociais e voluntários aparecem como abrigo.
O Instituto Vidas Raras (IVR) promoveu, no primeiro sábado deste mês, um evento, no Rio de Janeiro, para falar sobre a importância desses pacientes e das batalhas que o grupo vem travando. A presidente da ONG e responsável pelo evento, Amira Awada, abordou questões essenciais para o avanço do tema no país. Além disso, no domingo, ainda ocorreu uma ação intitulada de Abrace o Raro, organizada pela PTC Therapeuctics, colocando 100 guardas-sóis coloridos com o nome da campanha, na Praia do Leme, em prol da causa.
Medicamentos
Uma das pautas conversadas foi sobre a má distribuição de remédios para pacientes com doenças raras. Muitas patologias já contam com aprovação para a manutenção desses fármacos. Entretanto, o governo, segundo Amira, não faz o manejo correto. "Quando eles não distribuem a tempo, o indivíduo pode morrer com a falta do medicamento. Além disso, pode agravar ainda mais o caso", aponta.
De acordo com a presidente, o governo compra, mas não se interessa em realizar a entrega. Isso, sobretudo, quando há a importação, de fato. Pois, para muitas doenças, existem embates judiciais para que a aquisição dos remédios seja feita, já que boa parte da produção é feita fora do país. Amira relata que, em muitos episódios, solicita diálogos para tentar obtenção dos produtos por parte do Estado. Mas, quase sempre, não há retorno.
"Diversas vezes mandamos e-mail e não somos atendidos. Tudo bem ter uma negativa. Mas a gente só queria uma resposta", lamenta Amira. Ademais, outro problema grave precisa ser discutido: o alto valor dos remédios. Geralmente, por diversos fatores, o custo exacerbado dos fármacos impossibilita que o paciente compre sem a necessidade de receber ajuda de terceiros. Por isso, segundo Amira, é primordial que o Estado auxilie nesse ponto.
Vidas em jogo
Em 2017, Jorge Luiz de Souza Neves, 66 anos, que esteve presente no evento, começou a sentir sintomas de dormência nos pés e nas mãos. Logo que os sintomas apareceram, procurou alguns médicos para realizar exames. Pensou que era algo relacionado a varizes ou até mesmo à circulação sanguínea. Porém, nenhum dos palpites foi confirmado. "Fui a um neurologista que me pediu uma eletroneuromiografia, que determinou que eu estaria com neuropatia grave bilateral dos membros periféricos. O neurologista disse que se tratava de uma doença autoimune e eu teria que conviver com ela e ir me preparando para piorar", relembra.
De imediato, o susto foi tremendo. Até porque, no trabalho como pintor, a força braçal era uma grande exigência. Na família, o irmão mais velho também estava com os mesmo sinais, semelhantes ao que sentia o falecido pai, que havia morrido aos 68 anos. Em 2020, depois de diversas consultas e diagnósticos errôneos, José conheceu uma neurologista que lhe apresentou a suspeita de amiloidose.
"Até então, eu nunca tinha ouvido falar (da doença) e ela me encaminhou a uma especialista que, após uma série de exames, inclusive o genético, que confirmou o diagnóstico. E confirmando mais dois irmãos e quatro sobrinhos. Meu irmão mais velho morreu em março de 2022", conta. A partir do diagnóstico de amiloidose hereditária associada à TTR — um tipo de mutação no gene da proteína transtirretina —, José deu início aos tratamentos com um medicamento incorporado ao Sistema Único de Saúde (SUS).
Os sintomas de diarreia, dores e choques na mão melhoraram. Mas a insuportável dormência em algumas partes do corpo, além da falta de força nas pernas e nas mãos continuava. O uso do remédio permaneceu ao longo de oito meses. Até que, por meio de judicialização, José conseguiu uma nova receita, mais eficiente, em setembro de 2021. "A melhora foi bem significativa. Passei a ter mais disposição, a diarreia passou a ser menos frequente, a caminhada ficou mais segura, o equilíbrio melhorou bastante. O ganho de qualidade de vida foi bem significativo", relata.
Até janeiro de 2023 a entrega do produto estava regular. Entretanto, a partir do início deste ano, isso mudou. José ficou dois meses sem recebê-lo. Com isso, a progressão dos efeitos da doença foi sentida com retorno da diarreia, dores e dificuldade para caminhar. Agora, inclusive, passou a sentir efeitos na visão. A falta do medicamento, segundo José, prejudicou os ganhos que havia percebido durante o novo tratamento.
"A piora dos sintomas impactaram na minha confiança em executar coisas simples, como andar em casa ou tomar banho. Não consigo nem mesmo abrir uma garrafa de água. Tudo ficou mais difícil, inclusive na família, que ficou mais preocupada. Tenho consciência de que os medicamentos, para serem desenvolvidos, demandam muitos investimentos quando são para enfermidades, principalmente, ditas raras. Acredito que, se fossem com preços acessíveis, seria mais fácil", finaliza.
Especialistas e diagnóstico precoce
Segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS) cerca de 15 milhões de brasileiros possuem alguma doença rara. Mas, de acordo com a neurologista Keila Galvão, não há nenhum banco com essas informações especificamente no Brasil ou obrigatoriedade de notificação, o que, como descreve, impossibilita mensurar corretamente o panorama no país.
Dada a dimensão da quantidade de pacientes raros a nível nacional, um outro contratempo se faz vivo e difícil de ser combatido: a escassez de especialistas. A falta de valorização do profissional de saúde no Brasil, em contexto amplo, por si só, já é de consciência pública. Nesse ponto em específico, sobre identificação, diagnóstico e tratamento de doenças raras, o problema é ainda maior.
"Do ponto de vista financeiro e científico, não há profissionais que consigam se dedicar apenas a doenças raras, porque a necessidade de manter qualidade de trabalho e investimento profissional não casa com a necessidade de ter qualidade de vida. Isso envolve toda a equipe multiprofissional", ressalta Keila Galvão.
Atrelado a esse fator, a descoberta precoce da patologia, que demora em média sete anos para ser identificada, inviabiliza-se nesse empecilho da ausência de profissionais. Com isso, sintomas e sinais que poderiam ser combatidos tornam-se evoluções graves de difícil tratamento no futuro.
Visibilidade e inclusão
Discutir o assunto e envolver a sociedade pró-ativamente é imprescindível para o avanço da questão. Além da importância de gerar interesse por parte dos novos profissionais de saúde, Amira Awada cita a população, num todo, como parte da cadeia evolutiva do tema. "A pressão social é muito significativa pra gente, principalmente na hora de levarmos para o poder público", afirma.
Pensamento este que está alinhado com o de Maria Eduarda Duarte, 21, diagnosticada com esclerose múltipla no ano passado. Para a jovem, que tem uma doença sem cura e pouco falada nacionalmente, levar informações e conhecimento facilitaria o acesso ao diagnóstico. Especialmente por pessoas que estejam com sintomas semelhantes, mas que transitam entre consultas frustradas, com o objetivo de encontrar a resposta que tanto procuram.
"Eu passei por mais de quatro neurologistas para ter o diagnóstico. Acredito que nem todo mundo sabe o que são as doenças autoimunes. É muito importante ser falado", completa. Maria Eduarda, que é estudante de nutrição, descobriu a esclerose depois de ter várias crises, formigamentos e dificuldades para andar ou falar. Seis meses depois que a filha nasceu, em 2020, teve um grande surto, que a fez ficar internada. Ela ficou sem falar e sem se movimentar.
Hoje, ela convive com a doença e se diz aliviada por tê-la descoberto. Antes, a agonia e a ansiedade prevaleciam, pois foram anos com os sintomas até o momento da revelação. "No meu caso, eu tomo uma medicação mensal, o Natalismo MAB. É o medicamento mais forte que tem para esclerose múltipla, por conta que, quando fui diagnosticada, a crise estava alta, as lesões estavam grandes. Então tinha que ser essa medicação. Eu vivo bem. Vivo minha vida normalmente", acrescenta.
Leis e acessibilidade
Em 30 de janeiro de 2014, foi publicada a Portaria 199, que instituiu a Política Nacional de Atenção Integral às Pessoas com Doenças Raras e aprovou as diretrizes para tal no âmbito do SUS, garantindo incentivos financeiros de custeio e com abrangências transversal às redes temáticas prioritárias do SUS, ou seja, envolvendo todas as necessidades sobrepostas. No entanto, não basta ter uma portaria ou uma lei aprovada, a acessibilidade para as pessoas afetadas envolve um universo de necessidades, como gestão com seriedade sem desvio de verbas, treinamento profissional de equipe multiprofissional de assistência que envolve enfermagem, fisioterapia, terapia ocupacional, nutrição, diversas especialidades médicas, advogados, que não pensem em tirar vantagens do Estado, do paciente ou de instituições. A mudança de paradigma mesmo é o desejo de quem está envolvido com o tema.
Fonte: Keila Galvão, médica neurologista
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