Quem teve a sorte de conviver com os avós, certamente, escutou histórias do passado que, repletas de mistérios, contavam sobre as dificuldades e os prazeres de outros tempos. E, se há 50 anos, a realidade já era tão diferente — nas relações, no trabalho e no modo de pensar —, imagine há um século!
No Brasil, os 90 somam 898.723 pessoas, o que corresponde a 0,42% da população nacional, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). O grupo ainda é pequeno no país, por isso, as estatísticas não separam os centenários dos nonagenários.
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Os que chegaram aos cobiçados 100 anos integram um segmento restrito de quem já viveu mais do que a maioria. Eles, contudo, parecem não se importar em seguir uma estratégia rebuscada. Assim mostraram os entrevistados com quem a Revista teve o prazer — para poucos — de conversar. Dona Olívia, seu Chiquito, dona Maru, seu Severiano e dona Lourdes aceitaram compartilhar suas narrativas, que, juntas, somam mais de 500 anos!
Onde há animação, há dona Olívia
"Cabelos longos, pretos e bem cuidados, daqueles que chamavam a atenção." Assim, a simpática Olívia Dutra, no auge dos 100 anos, descreve o que mais gostava em si quando jovem. Vaidosa, não dispensa elogios, tanto que, nos momentos de nostalgia, confirma com firmeza: "Eu era bonita, viu?". E para alguém com personalidade forte, nada mais justo que a cor vermelha para representá-la, tanto nas roupas quanto na canção preferida, A dama de vermelho.
Escutar música, aliás, é um dos seus passatempos favoritos no Lar dos Velhinhos Maria Madalena, onde vive há 17 anos. Lá, recebe a atenção de profissionais diversos, incluindo psicólogos, assistentes sociais e terapeutas ocupacionais. Nas atividades recreativas, pegou gosto pelos trabalhos manuais e, mesmo quando não participa diretamente das interações com os demais moradores, está sempre por perto. "Vovó" é como pede que os profissionais do instituto e, curiosamente, os outros idosos lhe chamem.
Natural de Uberaba, em Minas Gerais, passou por Anápolis até se fixar na capital federal. Da mãe, que faleceu cedo, pouco se recorda; com o pai, porém, criou vínculos mais fortes. Foi seu Alfredo o responsável por lhe ensinar a capinar lotes na roça, trabalho intercalado com os serviços de doméstica, feitos, posteriormente, na antiga Cidade Livre. Hoje, contabiliza três filhos, oito netos e seis bisnetos. Sua primogênita, a dona de casa Marlene de Sousa, 69 anos, é presença constante no espaço e motivo de alegria para dona Olívia.
É Marlene quem confirma as atitudes à frente do tempo da mãe, que, diferentemente das mulheres da época, era liberal e "fora da caixa". Isso porque chegou a estudar, gostava de sair, se divertir e não enxergava no matrimônio a única possibilidade de dedicar seu tempo e energia.
Quando a dona de casa cresceu e planejou se casar, escutou da genitora que isso não era necessário. "Casar? Para quê? Me dê apenas um neto para cuidar e ficarei feliz", recorda-se. Ela, inclusive, lhe ajudou a cuidar dos filhos, privilegiados quando o assunto é carinho de vó.
Questionada sobre quem foi o amor da sua vida, a centenária cita o primeiro marido, Ricardino, viúvo na época em que se conheceram e pai da primogênita. A paixão, infelizmente, era tão intensa quanto os conflitos no lar, constantes e responsáveis por fazerem a relação durar pouco, apenas sete meses. Anos depois, casou-se novamente e teve dois rapazes.
Ainda hoje, sua psicóloga, Tatiane Dias, que a acompanha há oito anos, define o perfil da idosa como genioso, por querer tudo do seu jeito e, por vezes, ser teimosa, característica amenizada com o tempo. Nesse ínterim, a profissional lembra-se, por exemplo, que certa vez, quando a refeição do instituto não lhe agradou, Olívia cismou que não comeria e declarou greve de fome. Pouco depois, descobriu-se que ela se alimentava escondida. "Eu era danada", reconhece.
Para todos que já a conheceram, fica a lição da simpatia e da força de viver — na pandemia, contraiu o vírus da covid-19 e se recuperou rapidamente. "Ela gosta de atenção, de visitas e de bagunça", declara, aos risos, Tatiane. As madeixas, agora brancas, continuam belas e combinam com seu riso descontraído, capaz de contagiar a todos.
O envelhecer no Brasil
Otávio de Toledo Nóbrega, professor da Universidade de Brasília (UnB) especialista em longevidade, afirma que o envelhecimento demográfico não é novidade. Institutos de pesquisa fazem projeções há décadas, tanto em nível global quanto nacional, mostrando que, sim, estamos envelhecendo. O que chama a atenção é a proporção de idosos. "Estima-se que, entre 2040 e 2045, essa será a parcela mais abundante no Brasil."
Isto é, se dividirmos os brasileiros em crianças, jovens adultos, adultos (a partir dos 40) e idosos (60 anos ou mais), os mais velhos corresponderão ao segmento etário mais populoso. "Biologicamente falando, talvez, sejamos a única espécie animal de maioria idosa", avalia.
Esse movimento vem acompanhado de uma diminuição da taxa de fecundidade — que funciona como um conceito de reposição —, de modo que o crescimento populacional deve estagnar no futuro. "No Brasil, assim como no restante do mundo, está projetado um clímax. A previsão, aqui, é chegarmos aos 230 milhões de habitantes, mas, então, estacionar", explica.
Projeções
Outro dado é que mais pessoas estão vivendo até os 100 anos. A Divisão de População da Organização das Nações Unidas (ONU) levantou que, no mundo, em 2021, mais de 621 mil pessoas passaram do centésimo ano de vida. Em 1990, eram 92 mil.
Ainda assim, chegar aos 100 é desafiador. Segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), o brasileiro vive, em média, até os 72 anos — por causa da pandemia, a curva retrocedeu quatro anos e varia, claro, conforme região e acesso a serviços de saúde.
Otávio explica que se espera a recuperação da expectativa de vida nos próximos anos. "Existe uma esperança popular de que a ciência possa estender a vida. Realmente, tem se buscado, com medicamentos chamados senolíticos, reprogramar nossas células para serem mais eficientes. Ainda assim, há uma compreensão geral na área de que o limite para a longevidade esteja próximo dos 120 anos. O importante mesmo é viver bem", resume.
Aliás, falar em "mais avós do que netos" traz desafios. Entre eles, o especialista destaca a necessidade de sensibilidade administrativa na condução de serviços sociais. Elenca a importância de medidas previdenciárias, ajustes no sistema de saúde — ainda muito focado em doenças infecciosas — e avanço no entendimento de patologias típicas do envelhecimento, como a demência. Há ainda a necessidade de mudar o preconceito contra o idoso. "O etarismo é não contratá-lo, entendê-lo como sempre doente e não produtivo, quando pode, na verdade, ser habilidoso intelectualmente e ter mais destreza do que muitos jovens", pondera.
Digno de celebração
Francisco Lucas Porto nasceu em 4 de outubro, dia de São Francisco de Assis. Seu nome foi escolhido, então, como homenagem a um dos santos mais admirados da comunidade católica. Outro fato curioso é que ele descende de Joaquina do Pompeu, figura marcante do agronegócio mineiro do século 19.
Chiquito, como gosta de ser chamado, é de Tiros, Minas Gerais, município com população estimada, hoje, em 7 mil habitantes. Na região, em São Gonçalo do Abaeté, ele e a esposa, Nadir, criaram, com muita dedicação, oito filhos. Chiquito já trabalhou na roça, em armazém, em uma farmácia, já foi comerciante e marceneiro — até hoje, faz os reparos de casa. De 1922 para cá, já viu de tudo.
"Antigamente, tudo era mato. Lembro de quando chegou o primeiro carro na região, que um fazendeiro local havia comprado. Assustados com o barulho do motor, minha mãe e eu corremos para dentro de casa, a gente pensou que o mundo estava acabando. Nem posso dizer que vi o automóvel, só ouvi", diverte-se.
As filhas Lourdes Porto, 72 anos, Vânia Brixi, 62, e Vera Porto, 57, recordam-se de outra história do pai. "Ele conta que trabalhava no bar que o vovô Pedro (sogro dele) frequentava. Uma vez, eles marcaram uma caçada e, justamente na ocasião, ele perguntou ao nosso avô se poderia casar com nossa mãe, era tradição na época. Surpreendentemente, a resposta foi positiva."
Chiquito é chegado em um jogo de buraco. Torcedor do Cruzeiro, adora ler jornal e, como dá para imaginar, contar bons causos. É bom em socializar. O gosto por trabalhos manuais e a cultura do interior fazem ele preferir viver em Minas, mesmo com a maioria dos filhos instalada em terras candangas. Todo ano, vem para cá visitá-los, além dos 20 netos e nove bisnetos — é muita gente!
Churrasco
Os 100 anos chegaram há pouco mais de um mês e a alegria foi tanta que a comemoração teve que ser em três etapas. Teve bolo dois dias antes e duas semanas depois, num churrasco que reuniu 90 pessoas. No grupo de WhatsApp da vizinhança onde aconteceu a festa, a filha mais nova, Vera, precisou avisar que "a rua ia ficar cheia porque a família é grande". Sinal do carinho dos familiares pelo patriarca.
"E ele fez questão de passear entre as mesas e cumprimentar cada um. Deixou para almoçar mais tarde e disse que ia até tomar uma cervejinha, mas, nesse ponto, é muito contido", conta Vânia. Uma das qualidades que se destaca em Chiquito é a disciplina nos cuidados com a saúde. Ele respeita as orientações dos médicos, principalmente ligadas à alimentação. Se há algo que não pode comer, se mantém moderado.
Chegar aos 100 anos sendo homem é, inclusive, mais difícil. No Brasil, há o dobro de mulheres com mais de 90 anos em relação a homens. Elas são 608.342 e eles, 290.381. Seu Chiquito alcançou o feito. "E com muito bom humor", reforçam as filhas. A longevidade da família segue chamando a atenção. Francisco é o mais velho de quatro irmãos, sendo que a mais próxima dele está com 95 anos.
Ainda sobre a relação gênero-tempo de vida, Otávio de Toledo Nóbrega, professor da UnB especializado em geriatria, destaca que, independentemente do país, condição social e época, dados mostram que as mulheres sempre viveram mais do que os homens. Há, segundo ele, algumas teses em torno do tema. Os hormônios sexuais femininos tornariam as mulheres menos propensas a uma série de doenças, por exemplo. "Parece também que elas são mais robustas no sentido de resistir às doenças ao longo da vida. Tanto é que, dos supercentenários (a partir dos 110 anos), estima-se que 90% sejam mulheres", acrescenta o professor.
Espírito de líder
Dançar, para Maria Lopes dos Anjos, a Maru, é o melhor exercício para sentir-se bem e com saúde. E quando o assunto é manter-se ativa, a idosa de 104 anos tem propriedade para falar. Aos 102, ainda era cliente fiel do verdurão do bairro; aos 103, ia à dermatologista em busca de cremes para cuidar da pele e dos cabelos. Sempre disposta a aprender, fez cursos diversos na igreja, de confeitaria à pintura; enquanto a costura, passatempo antigo, continua presente no seu cotidiano.
A trajetória de tantos aprendizados começou em Colinas, no Maranhão, onde estudou, trabalhou, casou-se e criou os 11 filhos. Sim, estudou e trabalhou. Em um contexto inimaginável para as mulheres da época, Maru rompeu a bolha dos costumes para aprender — e ensinar — muito.
Isso porque os pais, fazendeiros, fizeram questão de contratar professores particulares para darem aulas à família. O questionar, tão incentivado na educação, teve efeito: diferentemente das irmãs, em casamentos arranjados, ela brigou para viver com quem realmente gostava. Deu certo.
Com o marido, trabalhou em um comércio que vendia de tudo um pouco e, em casa, acompanhou de perto o desenvolvimento dos filhos. A servidora pública aposentada Neuma Lopes, 61 anos, lembra que a mãe tinha prazer em sentar com ela e os irmãos para estudar. Ao mesmo tempo em que ensinava, aprendia um tanto. Atenta aos acontecimentos do mundo, não dispensava a leitura de um jornal ou de uma revista, além de adorar conversar sobre política.
Perfeccionista e organizada, Maru é conhecida por ter um espírito de líder. Exigia muito dos mais jovens, principalmente no que tange aos estudos. Às filhas, dizia para valorizarem o aprendizado e não dependerem de homens. Lição aprendida. Em 1972, quando uma das irmãs mais velhas de Neuma veio estudar na incipiente Universidade de Brasília, o restante da família lhe acompanhou, aos poucos, para a capital, em busca de melhores oportunidades de emprego. Fixaram-se no Guará, cidade pela qual nutre grande carinho e ainda mora.
Aqui, a família cresceu, e muito. São 47 netos, 52 bisnetos e oito tataranetos. Com 70 anos, mais uma novidade: separou-se do marido, por "não gostar de briga nem confusão". Foi, então, morar com a filha caçula, apesar de sempre manter contato com o ex-parceiro, do qual ainda se recorda com frequência.
Sempre muito devota, apegou-se à fé quando perdeu três filhos nos últimos anos. "Mamãe nunca se entregou à tristeza. Quando meus irmãos faleceram, rapidamente, buscou alguma atividade se ocupar; era ela quem dava força aos demais", conta Neuma. Ao ser questionada sobre o segredo para chegar ao cobiçado centenário, a idosa ri e declara: "Só Deus sabe". Com sua bengala, anda para onde quer, quando quer.
A vitalidade é resultado das aulas de fisioterapia, indispensáveis por ela, no Amora Residencial Sênior, onde vive há cerca de um ano. O lar, com capacidade para acolher até 21 idosos, tem uma estrutura curiosa, que lembra o aconchego de casa para os mais apegados. A opção em colocá-la na instituição veio da dificuldade da família em controlar sua agilidade, inclusive, nas madrugadas, que, por vezes, resultou em quedas e dores de cabeça.
Antes resistente a sair da casa da filha, hoje, Maru aprecia o clima tranquilo do lar, onde, claro, mantém-se muito ativa. As visitas dos filhos e netos são constantes e momentos de alegria para ela. Força e sabedoria são, para todos, sinônimos quando o assunto é dona Maria e, para os mais jovens, a centenária deixa o recado: "Trabalhem! Pois, sem trabalhar, ninguém vive".
Centenárias para acompanhar
Iris Apfel
A estadunidense é sinônimo de ruptura de padrões. Os óculos arredondados e o visual maximalista fazem dela um ícone da moda e do estilo aos 101 anos.
Instagram: @iris.apfel
Epifânia ou "vó Pifa"
Moradora de Sobradinho, é exemplo vivo de que nunca é tarde para alcançar seus sonhos. Uma das metas mais recentes dela é entrar para o Guinness Book como a pessoa mais velha do mundo a ser tatuada.
Instagram: @vopifa
A um mês do centésimo aniversário
Cafezinho da tarde feito, Maria de Lourdes Tostes de Aquino Leite estava pronta para sentar com a Revista para uma conversa — e com muito prazer. O assunto: seus 99 anos. Torna-se oficialmente centenária no primeiro dia de dezembro. O número é só uma formalidade, porque dona Lourdes considera os 100 já feitos. E o sorriso que dá ao rememorar o passado deixa transparecer que foi um século muito bem vivido. "Tudo valeu a pena, sabe? Todo trabalho e esforço. A gente tem que aproveitar a vida."
Natural de Manhumirim, interior mineiro, cresceu no tempo em que o plantio de café despontava na região. Quando criança, estudou em colégio interno — mas aprontava. Aos 20 e poucos anos, trabalhou no comércio com o pai. Achava engraçado que a loja tinha de tudo um pouco, de comida a perfume. Ela acompanhou o auge do rádio e viu o advento da televisão. Nisso, passou anos como radioamadora.
As demais histórias e o tom de quem as conta, lúcida, logo mostram que Lourdes não exerceu papéis tradicionais para a época. Casou-se aos 30, já "velha". Antes disso, aproveitou muito, "sem nada que me prendesse", diz. Gostava de viajar para a praia. Recorda-se de idas ao Rio de Janeiro e a Guarapari, no Espírito Santo. Sobre essa segunda ocasião, conta que ela e uma das irmãs prepararam pastéis para vender, como forma de fazer dinheiro durante a Segunda Guerra. O sucesso foi tanto que, com o valor, deu para ir ao litoral capixaba.
Muitas vezes, tinha vontade de deixar a "cidade pequeníssima". E assim o fez em 1959, quando surgiu uma oportunidade de trabalho para o marido, Alcides Aquino Leite, que era dentista. Na capital antes de Brasília ser Brasília, morou, primeiro, no Núcleo Bandeirante. "Era só terra. A gente cobria a cama com um lençol durante o dia e, depois, tirava com todo o cuidado para não espalhar sujeira", lembra.
Em 1961, a família se mudou para a Asa Sul, onde dona Lourdes reside até hoje. "Uma escolha feliz, porque meus filhos puderam ter uma boa educação", resume a vinda para o Planalto Central. Pouco convencional para as mulheres na década de 1960, ela trabalhou fora de casa, foi servidora no Ministério da Justiça. Com os seis filhos já grandes, também voltou a estudar. "Comecei o curso de direito, mas era difícil fazer faculdade à noite. As ruas eram muito escuras", conta.
A filha Ana Lúcia Tostes de Aquino Leite, 65 anos, acompanha a conversa. Quando pergunta o que a mãe achava de bordar e fazer crochê, Lourdes é enfática: "Muito chato." Para se virar, a matriarca precisou aprimorar as habilidades na cozinha, coisa que não era lá muito fã. "Mas faço uma comida muito boa, uma empadinha maravilhosa", garante.
O período de pandemia forçou mudanças no dia a dia de Lourdes. Ana Lúcia conta que reuniões com filhos, netos e bisnetos precisaram ser suspensas. A saudade das duas é ter todos juntos de novo, "sentados no portão da casa, onde nos reuníamos", torce Lourdes. Até hoje, ela não foi infectada pelo novo coronavírus. Por isso, não falta também gratidão pela saúde.
Mesmo com a visão comprometida, gosta de escutar tevê e passear pela quadra quando dá. A programação para o dia 1° ainda não está acertada, mas os 100 anos, tão simbólicos, já são celebrados por Lourdes, pela família e por quem mais a ama.
Maior lição para a família: união
No auge da pandemia, todas às segundas-feiras, os Vieiras tinham um compromisso marcado no Google Meet: o culto da família. Realizado presencialmente há 40 anos, não poderia parar com o isolamento, afinal, a união deve permanecer, principalmente, nos momentos difíceis. Seu Severiano que o diga. O idoso era o primeiro a chegar aos encontros, mediados pela filha adepta de tecnologias.
Agora, com mais segurança, retornou às visitas nas casas dos filhos e ao culto presencial, que jamais perde. Na igreja, é conhecido pela tranquilidade e bom humor e foi lá que comemorou seus 104 anos, no último dia 8 de novembro, em uma grande festa, com direito a homenagens e à presença de todos os familiares: nove filhos, 19 netos e 24 bisnetos. Quem é de fora dá à Viano, como é conhecido, no máximo 80 anos.
É tão ativo que sua agenda é cheia; para onde lhe chamam, ele vai. Homem independente. Ano passado, por exemplo, foi à praia com todos os filhos, curtir sombra e água fresca. Recentemente, recebeu até proposta de casamento de outra idosa da igreja, mas recusou. "Muito velha para mim", brinca. Em casa, não perde o jogo do Vasco e as novelas bíblicas, além de uma boa música evangélica.
Da infância, sente saudades e recorda-se dos brinquedos que improvisava com barro e manga. Quando jovem, no sertão de Vila Açudina, na Bahia, onde nasceu, era festeiro, "herença do pai", conta. Foi lá onde conheceu dona Isolina, sua parceira de vida — foram casados por 77 anos —, falecida há quase dois anos.
A ideia de buscar melhores condições de vida em outro estado, inclusive, partiu dela, que sempre dava a palavra final. A aposentada e advogada Irene Vieira, 63 anos, filha do casal, recorda-se que a mãe dizia às moças: "Seu marido é seu emprego. Nunca te abandona", para lhes incentivarem a trabalhar.
Foram, então, para Anápolis, onde se fixaram por um tempo. Lá, seu Viano ficou sabendo de um lugar, uma tal de Brasília, que precisava de gente para trabalhar em obras no Planalto Central. Pois bem, para a capital, mudou-se e tornou-se calafate. Daqui, mandava dinheiro para a esposa, mas não bastava. A saudade do amado motivou Isolina a vir também. Na Vila Amaury, viveram até as águas do, mais tarde Lago Paranoá, começarem a inundar o lar. Partiram para o Gama e, em 1969, chegaram ao Guará, onde permaneceram.
Nesses tantos anos, o centenário já teve câncer de próstata, AVC e quase ficou paraplégico, após levar uma forte bolada na cabeça. Tudo fichinha. Com uma saúde de ferro, recuperou-se rapidamente de todos esses problemas. Para os médicos, ele é mais saudável que muita gente; come bem, toma banho sozinho e não tem problemas para dormir. Mesmo assim, devido à idade avançada, os filhos se organizaram e criaram uma escala, na qual compartilham os cuidados do pai.
Hoje, depois de tanto trabalhar, seu Severiano só quer tranquilidade. Apesar disso, espera que os descendentes lembrem-se dele como trabalhador. Homem de fé, recordou-se que, quando assistiu na tevê aos incêndios no Pantanal, orou para chover e, veja só, choveu! Para Irene, o maior legado do pai, certamente, é o da união entre a família, mais fortalecida do que nunca e pronta para perpetuar as lições do centenário.
Para viver mais
1. Nos últimos anos, o número de pessoas que se tornaram centenárias aumentou consideravelmente. No que tange à saúde, essas estatísticas refletem mudanças de hábitos?
Sim. Com o maior acesso da população à educação, à atenção básica de saúde e à informação no geral, hábitos de vida que, comprovadamente, reduzem o risco de desenvolver doenças cardiovasculares e câncer vêm sendo disseminados. E mais pessoas estão seguindo essas diretrizes. Podemos destacar o hábito da alimentação saudável (com muitas frutas, verduras, menor consumo de carne vermelha e embutidos), prática regular de exercícios físicos, suspensão do tabagismo e do consumo de álcool. Lembrando que o maior acesso ao saneamento básico, à vacinação e à atenção básica de saúde reduziram consideravelmente também as mortes por doenças infectocontagiosas, o que ajudou muito na transição demográfica atual.
2. Por outro lado, quais hábitos, recentemente incentivados (como o uso dos cigarros eletrônicos), freiam o desejo de chegar ao cobiçado centenário?
O tabagismo é um péssimo hábito para quem quer envelhecer com saúde! Seja cigarro tradicional, de palha ou eletrônico. Todos fazem mal, aumentam o risco de doenças cardiovasculares como infarto e acidente vascular cerebral (AVC), além de vários tipos de câncer. O etilismo também aumenta o risco de alguns tipos de câncer, cirrose hepática e demência. Nosso ritmo acelerado de vida é outro ponto que, muitas vezes, nos impede de fazer exercícios físicos ou manter uma alimentação saudável. Torna-se “normal” recorrer a fast-foods, embutidos, enlatados, salgadinhos…
3. E viver muito é sinônimo de viver bem?
Infelizmente não. Com o aumento da expectativa de vida, também houve um aumento das doenças crônicas, como hipertensão arterial, diabetes mellitus, osteoartrose, osteoporose, demências (principalmente doença de Alzheimer e demência vascular) e vários tipos de câncer. Sendo assim, o idoso, muitas vezes, depende de medicamentos que também podem impactar na qualidade de vida. Podem, ainda, evoluir com perda de funcionalidade e dependência, por motivos que vão desde demência até osteoartrose grave com dor crônica.
4. A quem atinge esse marco, quais cuidados são primordiais para manter a saúde fortalecida?
Do ponto de vista dos serviços de saúde, é necessário criar políticas públicas para melhorar a prevenção das doenças crônicas e aumentar o acesso dos idosos aos serviços de saúde. Não só isso! Proporcionar momentos de socialização para os idosos, arte, cultura, lazer! Faz diferença, uma vez que o isolamento social e a depressão são muito frequentes entre os idosos e podem ser muito debilitantes.
E, para mantermos a saúde fortalecida, temos que começar o quanto antes a praticar exercícios físicos regularmente (150 minutos por semana, no mínimo), tanto aeróbicos quanto anaeróbicos, prezar por uma alimentação saudável (rica em frutas, verduras, legumes, nozes e castanhas; pobre em frituras, carne vermelha, industrializados e embutidos), aumentar a reserva cognitiva (estudar, aprender outra língua, tocar um instrumento musical, jogar xadrez), deixar de fumar, ingerir bebida alcoólica com moderação, encontrar um hobby (algo que te dê prazer), socializar, ingerir uma quantidade adequada de líquidos durante o dia, dormir bem e fazer acompanhamento médico de rotina.
Anne Freitas Cardoso (@geriatraemcasadf) é médica geriatra e professora de medicina do UniCeub. Trabalhou por 10 anos na Secretaria de Saúde do Distrito Federal e atualmente atende na Clínica Avicena.
*Estagiária sob a supervisão de Sibele Negromonte