Lahti — Sentado na cabeceira da mesa em um ambiente reservado para o almoço no restaurante Kokka Bistrot & Bar, às margens de um belo lago, o prefeito de Lahti, uma antiga cidade industrial de 120 mil habitantes localizada 100km ao norte de Helsinque, capital da Finlândia, observa, com orgulho e brilho nos olhos, as louças distribuídas artisticamente na mesa posta. Pekka Timonen pede a palavra e apresenta o menu, assumindo o papel de maitre do estabelecimento. "Em 1980, o Vesijärvi era o lago mais poluído da Finlândia. Era até proibido nadar. Hoje, não só as águas estão limpas como o peixe que vamos comer (perca frita) foi pescado lá", gaba-se.
Lahti é uma das receitas de sucesso do programa de economia circular da Finlândia. O país escandinavo ocupa o primeiro lugar entre 193 países no ranking anual de desenvolvimento sustentável da Organização das Nações Unidas (ONU) e ostenta o município como uma espécie de espelho para o mundo. Em 2021, Lahti conquistou o prêmio de Capital Verde da Europa. O rigoroso levantamento compara as medidas de melhoria da qualidade do ar e da água, da gestão de resíduos, da produção de energia limpa, entre outras iniciativas, e elabora a classificação.
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Badalada nos esportes por revelar campeões mundiais de Fórmula 1 como Keke Rosberg (1982) e Mikka Häkkinen (1998, 1999 e 2007), a Finlândia acelera para ser a primeira nação da União Europeia a atingir a neutralidade na emissão de carbono. A projeção estabelecida para cruzar a linha de chegada e receber a bandeira quadriculada é 2035. Apressada, Lahti espera bater essa meta com 10 anos de antecedência. O plano ousado do prefeito tem como marco 2025.
Considerada a quarta cidade mais sustentável do mundo pelo indicador Corporate Knights, Lahti está na vanguarda. Trabalha há pelo menos 14 anos para se tornar referência. As metas climáticas foram firmadas em 2008. Passam pela redução em 80% das emissões de gases com efeito estufa até 2025. A pouco mais de dois anos do prazo, a cidade conseguiu diminuir em 70%, desde 1990. Uma senhora revolução se pesarmos o passado na balança. No século 20, Lahti era lembrada tão somente pelas fábricas e pela poluição causada pelos complexos industriais.
Ladrões de CO²
O Correio visitou Lahti no início do mês passado. Era começo de outono. Responsáveis por sequestrar os outros 20% de carbono, as imensas, coloridas e paradisíacas florestas hipnotizavam quem procura a sustentabilidade a olho nu. Lahti desenha as aparências. "A sustentabilidade é mais do que edifícios modernos extravagantes, telhados verdes e carros elétricos. A mudança tem de ser por dentro. Com ações, não com planos", discursa Timonen.
O prefeito se orgulha de contar que um dos parceiros da nobre causa de Lahti é um badalado conterrâneo da Fórmula 1. "O Valtteri Bottas é da nossa região. Ele colabora muito com os nossos projetos de sustentabilidade", vibra, apontando para uma foto ao lado do piloto da Alfa Romeo. Nascido ali pertinho, em Nastola, o esportista é dono do Valtteri Bottas Racepark, um miniautódromo particular na entrada da cidade para a formação de novos campeões mundiais.
Projetos como o de Bottas contribuem com a geração de empregos. Para compensar, assumem contrapartidas, como o corte da emissão de gases. "Não estamos perdendo empregos, mas, sim, atraindo. A transição verde tornou Lahti mais competitiva e um lugar melhor para se viver", diz.
Responsabilidade social
Engajamentos como a do negócio de Bottas são cada vez mais comuns na Finlândia. Ao aderir à responsabilidade social, as empresas escancaram as portas da sustentabilidade econômica. "As empresas estabelecem metas. Há uma via de mão dupla. Uma empresa sustentável consegue melhores financiamentos nos bancos. As instituições deixaram de investir em combustíveis fósseis. Zero! Se o projeto não for sustentável, a empresa pagará mais pelo crédito ou não conseguirá ter acesso completo ao dinheiro que demanda", explica o prefeito de Lahti.
Percorremos Lahti na maior parte do tempo em uma van. É possível testemunhar parte da transformação em quesitos como a mobilidade urbana. A cidade estimula transportes alternativos. Usa bicicletas e veículos elétricos. É pioneira em disponibilizar skis no inverno cada vez menos rigoroso . Embora seja referência em sustentabilidade, Lahti sente os efeitos colaterais da globalizada crise climática. O frio nórdico não é mais como nos velhos tempos.
"A temperatura, em Lahti, subiu dois graus desde os anos 1960. Nossos invernos são mais curtos e há menos neve", relata Timonen, preocupado com o futuro de um dos mais badalados eventos esportivos da região. "Organizamos todos os anos uma etapa do Mundial de Ski. Por sinal, sete campeões são da nossa região, mas começamos a ter problemas", admite, antes de mandar um recado ao planeta. "Proteger o clima é proteger uma das almas do seu país", desafia.
O mantra da economia circular é o verbo reutilizar. Sem engajamento e o comprometimento da sociedade, o processo se torna praticamente inviável. A Finlândia largou na frente há seis anos e mobiliza a população de 5,6 milhões de habitantes nesse sentido. No ano passado, o governo limitou a extração de recursos naturais a fim de convencer a população da necessidade de parceria entre os cidadãos e o Estado. Vinculada à Rússia até 1917, quando conquistou a independência, a Finlândia faz fronteira com o gigante europeu. Em meio à guerra declarada por Vladimir Putin à Ucrânia, o país escandinavo atesta a relevância do desafio da sustentabilidade.
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"A guerra e a crise energética tornam a economia circular ainda mais importante, porque faltam recursos naturais", explicou Anna-Maija Pajukallio, assessora sênior do Ministério do Ambiente da Finlândia na apresentação à imprensa durante a agenda do Correio em Helsinque. Para ela, há demanda por matéria-prima.
A sinergia da Finlândia é perceptível em diversos setores da economia. A reportagem visitou Kujala, uma empresa de gestão de resíduos localizada em Salkapierto, a 12km de Lahti. Na chegada, chama a atenção uma fila de veículos de grande e pequeno portes na guarita de acesso à firma. "Os cidadãos se dirigem até aqui para despejar madeira, metal e plástico. É gratuito. Nós gerenciamos o lixo de nove municípios", explica o diretor de desenvolvimento Kimmo Rinne.
Os moradores da região poderiam largar os entulhos nos coletores, à beira da estrada, das ruas, no quintal de casa ou nas florestas, mas consomem o precioso tempo dirigindo-se até a central de gestão dos resíduos. O segredo do sucesso é a credibilidade. Do montante de lixo despejado na Kujala — desde plástico para confecção de alcatrão a material orgânico transformado em produtos para a agricultura —, 41% são reciclados. Outros 58% viram energia. Há queima para produção de eletricidade e biogás para combustível. Tudo é reutilizado, inclusive a comida. As 80 mil toneladas de sobras de alimentos recolhidas anualmente produzem o suficiente para abastecer o consumo médio de 4.500 automóveis. Apenas 1% do lixo segue para o aterro.
A invasão dos elétricos
Por falar em combustível, a Finlândia lidera a corrida mundial pela consolidação do uso de carros elétricos. Prova disso é a Kempower, uma multinacional finlandesa localizada a 12km de Salkapierto, especializada na fabricação de postos para o recarregamento célere de automóveis.
Os resultados financeiros impressionam. Segundo o CEO da empresa, Tomi Ristimäki, o crescimento no primeiro semestre de 2022 é 268% superior ao mesmo período do ano passado. "O carregamento rápido é o futuro. Na prática, permite às pessoas comprar tempo", esclarece o executivo.
É fácil perceber o sucesso do parque industrial automotivo elétrico da Finlândia em uma simples caminhada pelo centro de Helsinque. Há vários carrões sendo carregados nos estacionamentos públicos e privados. Em 2023, metade do serviço de transporte público será elétrico. "A projeção de retorno do investimento é de cinco ou seis anos", afirma Ristimäki. Parece rápido, mas a Noruega é mais agressiva. O retorno do incentivo para aquisição de carro elétrico é de dois anos.
A Neoenergia deles...
Em uma visita à Lahti Energy Group, empresa de energia da Capital Verde da Europa, mais exemplos de sustentabilidade e engajamento na economia circular: 89% da eletricidade consumida na cidade é produzida com emissões zero entre energia nuclear, eólica, fotovoltaica e biogás. Consequentemente, a demanda desafia o sucesso.
"Está aumentando o número de clientes, em especial das indústrias e dos hotéis, que pedem contratos de emissões totalmente zero. É uma questão de passar essa imagem aos clientes", analisa Jouni Haikarainen, CEO da Lahti Energy Group.
De acordo com Hakaste, arquiteto sênior do Ministério do Ambiente da Finlândia, a construção civil também está engajada no programa de economia circular. "Os edifícios são bancos de material. Na demolição, os construtores devem fazer uma lista de materiais que podem ser reutilizados. Esse inventário entra em uma base de dados nacional", explica o executivo.
Novo consumidor
Até os shoppings e os supermercados finlandeses se adaptam para surfar na onda sustentável. É o caso da marca Redi, um centro comercial pioneiro em oferecer produtos reutilizados. O espaço é enorme e cheio de lojas para todos os gostos. Uma das sacadas da Redi chega a ser contraditória e contraria o sucesso do transporte público em Helsinque. O shopping oferece três horas gratuitas de estacionamento. Máquinas espalhadas por totens permitem, inclusive, a troca de uma latinha de refrigerante para reciclagem por desconto em um supermercado. O objeto é depositado em uma máquina e um recibo determina o percentual de abatimento na compra.
Em uma visita à sede da empresa Neste, em Helsinque, foi possível testemunhar a corrida da Finlândia para o fornecimento de combustível sustentável de aviação. A multinacional é a maior produtora de diesel renovável. "Criamos soluções para combater as alterações climáticas e acelerar a mudança para uma economia circular. Nossa ambição é tornar a refinaria de Porvoo a mais sustentável da Europa até 2030. Estamos comprometidos em alcançar uma produção neutra em carbono até 2035", apresentou Päiv Makkonen, chefe de sustentabilidade da cadeia de suprimentos da Neste. A empresa é parceira, entre outras, da companhia aérea local Finnair e da alemã Lufthansa, da holandesa KLM e da suíça Swiss.
Um pouco de Brasil...
Lojas de departamentos finlandesas como a badalada Marimekko, fundada em 1951, reforçam a sinergia em defesa do respeito ao meio ambiente e da economia circular. Roupas e utensílios domésticos da fábrica, em Helsinque, são confeccionadas a partir de insumos reutilizados. A grife, com seus tecidos estampados originais, é um dos orgulhos da indústria finlandesa.
Curiosamente, há um pouquinho de verde-amarelo nos produtos da Marimekko. Em visita à empresa Spinnova, em Helsinque, o Correio apurou que a firma é parceria da brasileira Suzano na produção de celulose. Ambas formalizaram uma joint venture para o investimento de 22 milhões de euros. O negócio atingiu a cifra de 50 milhões de euros, incluindo a infraestrutura.
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A fibra sustentável da Spinnova, criada a partir de madeira e resíduos sem o uso de produtos químicos nocivos, começou a ser disponibilizada para fábricas como a Marimekko.
"Toda marca têxtil líder em seu segmento procura maneiras de minimizar suas emissões a fim de ter uma pegada ecológica e para construir uma base de material circular para seus produtos", comemora Janne Porannen, CEO e cofundador da Spinnova. "A Suzano é líder mundial na produção de celulose de eucalipto e expandiu sua atuação para criar soluções sustentáveis e inovadoras derivadas de árvores para os desafios enfrentados pela sociedade. Na joint venture, a Spinnova fornecerá tecnologia e a Suzano, celulose microfibrilada produzida de forma sustentável", explica Fernando Bertolucci, diretor de tecnologia e inovação da marca nacional.