Crônica

A ética no boteco: os motivos que levam uma pessoa a beber

"Eu bebo para ficar zonzo", diz um assíduo frequentador de bares da cidade. E você bebe por quê?

Honestidade é para os fortes. Tenho um amigo que confessa sem necessidade de delação premiada que não bebe pelo sabor oferecido pelo líquido que lhe desce pela garganta, ainda que seja um vinho Barolo de safra especial, servido em taça de cristal fino e boca larga, um puro malte envelhecido em barris do mais nobre carvalho ou ainda uma aguardente fervida e cortada com carinho.

Também não bebe pelo prazer do retrogosto — aquele sabor que, das entranhas, é devolvido às papilas em forma gasosa e que amplia o regozijo dos mais sensíveis. E ele também não vê nada demais nas cerimônias que antecedem a abertura de uma garrafa de rum especial, o que pressupõe a presença de um charuto — um puro cubano de preferência.

Não é atraído também pelas combinações de sabor em que uma sequência de pratos segue ou lidera as bebidas e que provocam orgasmos que começam à mesa e vão até onde a imaginação permitir. O objetivo é outro.

— Eu bebo para ficar zonzo.

E garante que jamais refugou diante de um copo com qualquer coisa que contenha alguma gradação alcoólica. Desconcertante, mas honesto. Nunca conheceu a hesitação de um Baloubet du Rouet, aquele cavalo Sela Francesa que refugou e deixou Rodrigo Pessoa na mão, nas Olimpíadas de Sidney. Prefere o lema imortalizado por Van Damme: retroceder jamais.

Não é um ébrio, um largado que frequenta sarjetas; ao contrário, é casado há 25 anos, cuida dos filhos, pega no batente cedo, vai à missa e faz a feira. É apenas um sem-tampa; quando começa, não para.

Diz ele que a sensação do vapor subindo pelo sistema nervoso e chegando ao cérebro é próxima a do prazer sexual; é como se o corpo mostrasse a ele algumas de suas recônditas possibilidades, um autoconhecimento das reações, uma busca interior. Mas acho que tudo isso é desculpa, história para bêbado dormir.

Desde que li As portas da percepção, livro em que Aldous Huxley narra viagens psicodélicas motivadas pela mescalina, que desconfio dessas interpretações de sensações interiores feitas à luz da razão, mas acompanhadas daquela súplica infantil diante da montanha-russa: "mãe, posso ir de novo?". Papo de doidão ou não, quem sou eu para contestar. E fico ouvindo.

"Não gosto de ficar bêbado, gosto de ficar zonzo; experimentar as sensações por todo o caminho sem ficar totalmente anestesiado", explicou ele, diante de um conhaque de gengibre, desses difíceis de engolir. "Dá leveza na gente", concluiu, antes de chamar o Uber.

Mas sempre há o dia seguinte e, quando chegamos, ele já estava no boteco, com alguns copos acima do limite prudencial etílico, que é a medida padrão da razão. Perdeu o controle, não dizia coisa com coisa e mexia com todo mundo.

Unânimes, culpamos o dono do estabelecimento, que tem o dever moral de cuidar dos seus e devia ter parado com as doses ao ver o desastre anunciado. Resultado: mudamos de bar e o Faixa resumiu nossa inconformidade:

— Deixar cliente beber até cair é uma indignidade. Bodegueiro bom, cuida.