O mês de setembro é dedicado à campanha brasileira de prevenção ao suicídio, iniciada em 2015, o Setembro Amarelo. O objetivo é reduzir o estigma em torna do assunto e evidenciar a importância de buscar ajuda. Além disso, a ação visa esclarecer questões relacionadas ao distúrbios emocionais, manifestados de inúmeras maneiras no corpo, inclusive na pele.
Esses problemas podem desencadear doenças como a dermatite atópica, a psoríase, a urticária e o, pouco conhecido, mas tão comum, transtorno de escoriação, descrito há pouco tempo no DSM — 5 (Manual de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, da Associação Americana de Psiquiatria). O skin picking, como também é chamado, caracteriza-se pelo ato de machucar a pele — beliscar, arranhar, coçar, esfregar, morder — em resposta, muitas vezes, a sentimentos de estresse agudo, ansiedade ou tédio.
A prática autolesiva ocorre em locais de mais fácil acesso pelas mãos, como o rosto, o braço, o antebraço, as pernas e a barriga, e provoca a sensação de alívio no indivíduo que, por vezes, pode não sentir dor alguma. "Não necessariamente há uma tensão, já que algumas pessoas, na verdade, têm dificuldades no controle do impulso e praticam esses atos sem perceber. Porém, o mais frequente é: existe um sofrimento psíquico que leva a pessoa a 'cutucar' a pele, gerando certo conforto e tornando-se algo inconsciente ao longo dos anos", explica o médico psiquiatra Fábio Henrique Mendonça.
Essa condição pode ocorrer em qualquer fase da vida e, apesar de não existirem dados suficientes que apontem para um período em que as escoriações se intensificam, especialistas indicam ser um problema bastante recorrente na adolescência. Isso porque é neste momento que surgem maiores ondulações na pele, em especial no rosto, derivadas da acne. O psiquiatra e professor da Universidade de Brasília (UnB) Raphael Boechat lembra ser bastante raro que o transtorno inicie-se já em idades mais avançadas.
Condição pouco conhecida
Boechat frisa que o diagnóstico do transtorno de escoriações ainda é muito recente, visto que nem mesmo é classificado isoladamente na Classificação Internacional de Doenças (CID), da Organização Mundial da Saúde (OMS). No documento, a condição está inclusa no transtorno de controle de impulsos. Por essa razão, há escassez de dados e de informações mais precisas a respeito do problema. "É sabido, porém, que a condição psiquiátrica adjacente, como a depressão e a ansiedade, agrava os sintomas. Por isso a importância de identificar as doenças associadas e tratá-las corretamente", pontua.
Também por conta desse desconhecimento, muitas pessoas que lidam com esse problema não o ligam a um transtorno mental, mas, sim, a adversidades habituais, como o estresse, a irritação e o nervosismo. Além disso, existe o fator do julgamento por parte dos indivíduos que não entendem se tratar de um distúrbio, gerando questionamentos e comentários com certo ar de estranheza, como o famoso "por que você se machuca dessa forma?". Isso explica o sentimento de constrangimento por quem lida com as escoriações, e isolar-se para esconder as feridas é uma atitude comum.
O psiquiatra da infância e adolescência do Hospital Universitário de Brasília (HUB) André Salles esclarece que, por se tratar de uma compulsão, em especial quando se dá cronicamente, é muito difícil mudar o comportamento por vontade própria. De fato, o indivíduo precisa procurar ajuda profissional para receber o diagnóstico adequado e o tratamento mais indicado. "Saber identificar as dificuldades psíquicas, as situações de estresse e como lidar com essas tensões é um dos caminhos para lidar com o problema", finaliza.
Por dentro do transtorno
Existem hipóteses que associam as causas do transtorno de escoriação à ansiedade, já que as feridas são a materialização desse ou de outros problemas mentais, como a depressão e o transtorno de personalidade borderline. Além disso, a condição pode estar ligada ao abuso de substâncias químicas.
Segundo Salles, as principais consequências são as complicações médicas decorrentes das lesões: dano ao tecido cutâneo, infecção de repetição, que exigem tratamento com antibióticos, e cicatrizes, que podem chegar a ser hipertróficas ou mesmo queloides. O sofrimento psicológico, oriundo da baixa autoestima, também é um fator de destaque e, por fim, o prejuízo social e profissional, dado que muitas pessoas relatam evitar eventos sociais ou de entretenimento, até mesmo sair em público, por sentirem-se envergonhadas dos machucados.
Boechat aponta como possíveis tratamentos o uso de medicamentos para combater as doenças associadas ao transtorno, como a compulsão, e para ajudar a reduzir esses atos involuntários, além da psicoterapia. Não existem remédios específicos para as escoriações, com exceção daqueles de utilização tópica, para cuidar mais diretamente das feridas.
Palavra do especialista
Pode ser considerado uma categoria do Transtorno Obsessivo Compulsivo? Qual relação há entre essas duas condições?
Apesar de o transtorno de escoriação estar enquadrado no capítulo de transtornos obsessivos-compulsivos (TOC) do DSM, existem diferenças entre ambos: enquanto no TOC, o comportamento compulsivo é motivado por um pensamento obsessivo; no transtorno de escoriação, não necessariamente o paciente tem o pensamento obsessivo, existindo apenas o comportamento compulsivo, isto é, a dificuldade em conter os impulsos. Este, quando não existe o fator da obsessão, é muito mais, a meu ver, um transtorno de controle de impulsos do que um transtorno obsessivo-compulsivo puro.
Quais diferenças há entre o transtorno de escoriações, a automutilação e a tricotilomania?
Nos três casos, há o objetivo de aliviar um sofrimento interno, como se houvesse um desvio da dor psíquica para a dor física. No transtorno de escoriações, as lesões, normalmente, são causadas com as próprias unhas e em locais de fácil acesso pelas mãos. Além disso, as atitudes tendem a ser inconscientes. Na automutilação, o indivíduo utiliza objetos para se machucar — canivetes, facas, bisturis —, e trata-se de atos conscientes. Já na tricotilomania, considerada um transtorno de controle de impulsos, a prática se concentra em arrancar os cabelos, gerando a sensação de prazer no indivíduo, uma vez que também é motivada por outros problemas, como a ansiedade. Realizada ora de forma consciente, ora de maneira inconsciente, essa condição pode ter consequências graves: algumas pessoas ficam carecas por conta dessas atitudes.
Quais conselhos e orientações de cunho mais prático o senhor daria a alguém que está lidando com esse problema?
Primeiro ponto: o indivíduo que machuca a pele cria naquele local uma porta de entrada para microrganismos, bactérias e fungos e, contato com regiões contaminadas, muito provavelmente, irá infeccionar. Segundo ponto: as lesões podem trazer inúmeros incômodos estéticos, fato que ocasiona a diminuição da autoestima e o isolamento social. Dessa forma, é necessário procurar ajuda especializada. Enquanto um bom dermatologista cuidará das feridas para impedir que elas infeccionem, o psiquiatra e o psicólogo tratarão da dificuldade de controle do impulso e, especialmente, do problema inicial que levou ao transtorno de escoriações. Por exemplo, lidar com a ansiedade pode evitar que o paciente se lesione.
Atitudes de curto prazo que busquem ocupar as mãos com certas atividades, para evitar os machucados, são uma ajuda paliativa, mas não são a solução nem substituem o atendimento especializado, o tratamento do transtorno de base e a psicoterapia.
Fábio Henrique Mendonça é psiquiatra e especialista em eletroconvulsoterapia. Atua no Instituto Castro e Santos na Clínica Nortlife.
Busque ajuda
Se você estiver com sérios problemas e chegar a considerar o suicídio, pode procurar ajuda entrando em contato com o Centro de Valorização à Vida (CVV). Trata-se de um projeto que fornece apoio emocional e prevenção do suicídio. Por meio de telefone, e-mail e chat 24 horas, todos os dias da semana, eles atendem de forma voluntária e gratuita todos que precisam conversar. O serviço é totalmente sigiloso.
* Estagiária sob a supervisão de Sibele Negromonte
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