eSports

Jogos eletrônicos transformam a realidade de jovens da periferia do Rio

Projeto carioca, o AfroGames capacita jovens das favelas para atuarem no universo do eSports e estará presente no 1º Congresso Internacional de Capacitação de Gestores do Esporte, em Brasília

Letícia Mouhamad*
postado em 22/08/2022 17:33 / atualizado em 22/08/2022 17:33
Time profissional de LoL do AfroGames -  (crédito: Reprodução: AfroGames/Instagram)
Time profissional de LoL do AfroGames - (crédito: Reprodução: AfroGames/Instagram)

Tornar-se um atleta profissional de eSports, apesar de ser um sonho para muitos jovens, não é tarefa fácil, considerando a alta competitividade e a constante necessidade de capacitação. Imagine, agora, para aqueles que pouco tiveram contato com um computador, vivem em um local de escassas oportunidades e lidam diariamente com os rastros da violência urbana. As dificuldades certamente são multiplicadas.

Foi a partir desse choque de realidade que o empresário Ricardo Chantilly, em parceria com William Reis, do Grupo Cultural AfroReggae, idealizou e fundou o AfroGames, em 2019, na comunidade Vigário Geral, Zona Norte do Rio de Janeiro. Entre os objetivos do projeto estão: usar o eSport como ferramenta de transformação e impacto social; capacitar jovens, para que tenham mais habilidade nos jogos e se tornem potenciais profissionais; desenvolver a cultura gamer, para motivá-los a atuarem nas áreas de caster, streamer, produtores de trilha sonora e programadores de jogos; e incluir a juventude da favela na indústria bilionária dos games.

Chantilly, que até então se dedicava ao mundo da música, da cultura e do entretenimento, representando bandas como Jota Quest e O Rappa, olhou para os games em 2017, quando começou a marcar presença em campeonatos nacionais e internacionais. Neles, percebia que eram pouquíssimos os atletas negros e de baixa renda. Com uma equipe dedicada e alunos dispostos a aprender, conseguiu formar o primeiro time profissional de League of Legends quatro anos depois, destacando-se como o primeiro centro de formação de atletas de eSports em favelas do mundo.

Além dos ensinamentos sobre LoL, o centro de treinamento do AfroGames conta com aulas de Free Fire, de Wild Rift, de Valorant e de Fortnite. E não para por aí. Aulas de inglês, de programação e de trilha sonora para jogos também fazem parte da programação. Para os estudantes que se destacam profissionalmente como esportistas ou criadores de conteúdo, o projeto oferece, ainda, uma bolsa-atleta, acompanhamento psicológico, treinador e preparador físico. Nas redes, já é possível conferir dois jogos desenvolvidos pela equipe — A Lenda do Guará e Ominira — disponíveis na Play Store e App Store.

Ricardo Chantilly é um dos idealizadores e diretores do AfroGames, ao lado de William Reis
Ricardo Chantilly é um dos idealizadores e diretores do AfroGames, ao lado de William Reis (foto: Fred Pontes)

Mas engana-se quem pensa que foi fácil. Inicialmente, a ideia não foi recebida com seriedade pela comunidade e pelos familiares dos alunos interessados. “Como assim estudar e viver de jogos?”, questionavam-se. Foi preciso, então, muito convencimento por parte da produção. “E valeu a pena, viu?”, reforça Chantilly. Prova disso é que, atualmente, há fila de espera para os cursos, daí a importância de expandi-los, como têm feito. Em julho, inauguraram duas unidades no Complexo da Maré e, em outubro, abrirão mais uma em Niterói, no Morro do Estado, totalizando 500 vagas.

Ademais, a dificuldade para conseguir patrocínio das marcas e, consequentemente, captação de recursos segue como um desafio. No início da pandemia, a principal anunciante retirou-se do projeto. “É uma luta conseguir patrocínio. As marcas adoram falar sobre igualdade social, mas, na hora de colocar a mão na massa, são poucas que se prontificam. Para se ter uma noção, nem mesmo um desconto no valor de computadores de grandes marcas eu consigo”, revolta-se. Atualmente, a principal patrocinadora da iniciativa é a Ambev.

Cidadania digital

Apesar dos perrengues, todo o esforço é compensado pelas conquistas dos jovens, que, além de transformarem a própria vida, mudam a de suas famílias. Das inúmeras histórias marcantes, Chantilly recorda-se de duas. A primeira é de Thais Xavier, desenvolvedora de jogos responsável pelo game Ominira, que recebeu uma quantia considerável de dinheiro na elaboração deste projeto. O anúncio da vitória foi recebido com espanto e desconfiança pela família. “Calma, não ganhei esse dinheiro no jogo do bicho”, disse ao pai, que ao entender do que se tratava (e a importância disso) caiu em prantos.

Outra memória marcante é de um rapaz que saiu do tráfico de drogas e, hoje, é professor no AfroGames. A princípio sem interesse pelas aulas, o jovem foi convencido a participar do curso de LoL e, por conta da sua função na comunidade, andava armado e era conhecido pelos demais estudantes pelo cheiro de maconha que o acompanhava. Como aluno de destaque, teve direito a receber um salário mínimo e tornou-se atleta, largando a boca de fumo de vez. Por sua competência, teve mais uma conquista: foi convidado a dar aulas pelo projeto no Complexo da Maré.

“Eu quero agradecer a vocês por meu filho estar vivo. Todos os amigos dele morreram e, se ele continuasse naquela vida, provavelmente não estaria aqui também”, disse a mãe do jovem aos responsáveis pela iniciativa. Daí um dos motivos de Chantilly alegar que a transformação promovida pelas capacitações também é pessoal — e grandiosa. “Quando falamos de jogo, estamos falando de tecnologia, não apenas de redes sociais, como a maioria conhece. Muitos chegam desnutridos digitalmente e, aqui, aprendem sobre estratégia, matemática, inglês, lógica e trabalho em conjunto”, ressalta.

Thaís Xavier em formatura de conclusão do curso
Thaís Xavier em formatura de conclusão do curso (foto: Reprodução: AfroGames/Instagram)

Os cursos têm duração de um ano e vão do iniciante ao avançado. Ao final, os estudantes recebem diplomas e participam da formatura. E os meses seguintes reservam novidades: em dezembro, o AfroGames fará uma feira de tecnologia em Vigário, com o apoio da prefeitura; e, mais para frente, o grupo lançará o projeto Epicentro do Kaô, que promoverá cursos de profissionalização no audiovisual, com o fim de capacitar os jovens para serem produtores e editores. Além disso, em novembro, será inaugurado um estúdio profissional de música, com equipamentos de última geração, que ajudará a abrir as portas para os artistas locais.

Esta semana, Chantilly será um dos palestrantes do 1º Congresso Internacional de Capacitação de Gestores do Esporte, que acontece em Brasília, no Centro de Convenções Ulysses Guimarães. Lá, divulgará e contará sobre a iniciativa no universo do eSport, visando inspirar e motivar sua expansão, inclusive pelos governos. Gratuito e de formato híbrido (presencial e on-line), o evento ocorre de 22 a 25 de agosto e é promovido pelo Instituto Brasil Adentro, com o apoio do Ministério da Cidadania. Os inscritos poderão assistir a painéis e palestras, além de participar de cursos relevantes no que tange à gestão esportiva. As inscrições podem ser feitas pelo site www.cicge.com. Para inscrever-se nos cursos do AfroGames, basta acessar as redes sociais do projeto. 

*Estagiária sob a supervisão de Sibele Negromonte 

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  • Ricardo Chantilly é um dos idealizadores e diretores do AfroGames, ao lado de William Reis
    Ricardo Chantilly é um dos idealizadores e diretores do AfroGames, ao lado de William Reis Foto: Fred Pontes
  • Thaís Xavier em formatura de conclusão do curso
    Thaís Xavier em formatura de conclusão do curso Foto: Reprodução: AfroGames/Instagram
  • Divulgação do jogo A Lenda do Guaraná, produzida por estudantes do projeto
    Divulgação do jogo A Lenda do Guaraná, produzida por estudantes do projeto Foto: Reprodução: AfroGames/Instagram
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