ESPECIAL

Liga reúne atletas transplantados e conscientiza sobre doação de órgãos

Para eles, falar que "esporte é vida" nunca fez tanto sentido. Contamos histórias de quem dribla dificuldades, se supera e estimula outras pessoas a fazerem mais pela saúde

Giovanna Fischborn e Carolina Marcusse*
postado em 07/08/2022 07:20
 (crédito:  Marcelo Ferreira/CB/D.A Press)
(crédito: Marcelo Ferreira/CB/D.A Press)

Muito se fala sobre a importância da atividade física para a saúde física, mental e social. Embora os benefícios sejam amplamente conhecidos, e cada vez mais estudados, muitos encontram dificuldade para inseri-la na rotina. Para aqueles que têm uma patologia séria ou doença crônica, a missão parece ainda mais distante. Mas há quem, movido pela gratidão, dê o melhor de si nas pistas, nas quadras, na água. O que seria motivo para limitar vira motivação. Aproveitando o Dia Nacional da Saúde, celebrado na última sexta-feira, reunimos, nas próximas páginas, atletas que têm muito a ensinar nesse sentido.

Simone Avelino não tinha nem 30 anos quando descobriu que estava com 40% do funcionamento dos rins. Foi durante uma crise de hipertensão, em que, dos exames que precisou fazer, o nível de creatinina acusou o problema. O diagnóstico foi de nefrite autoimune, uma inflamação renal que acomete principalmente os glomérulos, estruturas que filtram o sangue de toxinas e impurezas.

Foi uma década de tratamento conservador, controlando a doença sem hemodiálise nem transplante e se restringindo bastante. Simone seguia uma dieta especial e não conseguia sequer se exercitar. Subir alguns lances de escada era quase impossível. "Um cansaço sem igual", lembra.

Com o tempo, a insuficiência avançou e, para tratá-la, só mesmo com um transplante. Para os rins, pode-se receber um órgão saudável de uma pessoa viva ou falecida. No caso de Simone, o irmão dela foi o doador, e ela diz ter "zerado o placar" ao recebê-lo. "Eu quis viver tudo. Viajar, namorar, comer muito, praticar tudo quanto é esporte. Testei remo e canoa havaiana, musculação, treino funcional", conta.

Como quem recupera o fôlego, Simone retomou toda sua energia após o procedimento. Hoje, aos 53 anos, ela trabalha como dentista e, fora do consultório, é uma grande atleta. Duas vezes na semana bate ponto na academia às 6h da manhã. Tem uma personal para os treinos de corrida e, às quartas e sextas, faz natação.

O transplante ocorreu em 2014 e, em 2018, ela já estava participando de competições importantes como nadadora. Esteve na 9ª edição dos Jogos Latino-americanos para Transplantados, na Argentina, e nos últimos Jogos Mundiais para Transplantados, na Inglaterra. Em 2019, na 1ª edição dos Jogos Brasileiros para Transplantados, que aconteceu em Curitiba, levou dois ouros na natação.

Manter-se ativa é uma felicidade, mas também um desafio. Simone precisa de supervisão médica constante, principalmente, com o risco recente da covid-19. "Afinal, o transplante é tratamento, não cura. E até nisso o exercício ajuda. O esporte me incentiva a sair da esfera da doença e a ter uma vida mais próxima da normalidade", sente.

A próxima etapa dessa história só evidencia o quanto isso é possível. Empolgada, ela fala do esporte com gratidão. Por enquanto, está se preparando para competir nos Jogos Brasileiros, que serão em setembro, mais uma vez, em Curitiba. E 2023 promete ainda mais. Ela representará o Brasil nos Jogos Mundiais em Perth, na Austrália. Vai competir na natação e, pela primeira vez, no atletismo, nas provas de 100m e 200m rasos.

Vida que segue (com saúde)

É aí que o caminho de Simone cruza com o de Silvana Baccin, 59 anos. Ambas dividem o amor pelo esporte e, assim como Simone, Silvana ganhou esperança e qualidade de vida graças a um doador. Juntas elas integram a Liga de Atletas Transplantados do Brasil (@ligatxbr), que tem outros 18 atletas que buscam apoio para estarem nas Olimpíadas do próximo ano.

Silvana sempre foi íntima da prática esportiva. Começou no vôlei aos 9 anos e, profissionalmente, jogou dos 18 aos 25. Embora sempre muito saudável, viu o avanço do adoecimento ainda nessa faixa de idade e, consequentemente, precisou se afastar das quadras.

O motivo? Um distúrbio hereditário que a mãe dela, uma tia e alguns primos também tiveram que lidar, chamado doença renal policística. Os sintomas não costumam ser sentidos na juventude, mas perde-se a função dos rins com o tempo. Foi tão silencioso que Silvana mal notou as limitações, a não ser pelo emagrecimento e a pele mais amarelada. Quando viu, estava com 10% deles funcionando.

O transplante veio antes do esperado. "Minha mãe passou pelo mesmo procedimento com 58 anos. E eu, aos 50", compara. O órgão veio do marido, então namorado, e a decisão não foi fácil. É que pessoas que passam pela retirada de órgãos precisam ter cuidados a mais para a vida toda e Silvana se preocupava em colocá-lo em risco. Da parte do marido, não havia tantas dúvidas.

Para a atleta, o processo é dividido em três etapas: o pré-transplante, o durante e a vida depois de receber o órgão. Na primeira fase, o medo a acompanhava, porque ela já havia presenciado o que ocorrera com os familiares. Ainda assim, decidiu enfrentá-lo com muita força de vontade. Entre os preparativos, passou a se alimentar melhor. Até hoje, mantém um cardápio só com orgânicos, pouca proteína animal e muita salada.

A adaptação, que veio em seguida, diz respeito à rotina de medicamentos e aos efeitos colaterais — o organismo leva de seis meses a um ano para se acostumar com um novo órgão. Felizmente, Silvana não teve sequelas graves, mas precisou aprender a ficar sempre atenta ao próprio corpo e a marcar os horários dos remédios, algo que é preciso seguir à risca para se manter saudável após o transplante. "Dentre as gravidades e temores, foi tudo muito leve", resume.

Com três meses de cirurgia, já queria praticar atividade física e logo começou a jogar tênis, modalidade que compete agora. "Aprendi um esporte novo aos 50 e poucos e vou participar de uma Olimpíada aos 60 anos. É incrível", celebra.

O desafio foi maior também por causa desses fatores. Apesar de ter vivido uma infância de muito exercício, no passado, os movimentos eram aprendidos pelo corpo com facilidade, feitos quase no automático. Com a idade, o tempo de aprendizagem se revelou ser outro. Silvana foi no próprio ritmo e provou que, mesmo assim, dá para ir longe.

Nos jogos na Austrália, ela competirá no tênis simples e em duplas. "É muito bom que transplantados e não transplantados pratiquem um esporte. Não precisa nem competir. Um exemplo é que, para mim, o tênis é uma forma saudável de lidar também com a ansiedade", indica.

Os atletas da Liga buscam, sobretudo, conscientizar sobre a importância da doação de órgãos. "Uma pessoa abriu mão de um órgão para me devolver saúde. Da mesma forma, há casos em que uma família em luto dispôs dos órgãos de um ente amado para trazer saúde às pessoas que aguardam na fila. Isso nos ensina muito sobre gratidão", acredita Simone. A ideia é que o assunto e o desejo de doar seja mais conversado nas famílias, o que facilita o procedimento no futuro.

Atleta transplantada, sim!

A notícia de uma doença séria costuma ser desoladora. Quando a paciente é criança então, parece ainda mais trágico. Os pais de Laura Franco, 10 anos, souberam que ela tinha atresia de vias biliares quando a filha era recém-nascida. A menina passou por três cirurgias em menos de 20 dias para tentar retardar o transplante, porque não é o ideal que um bebê passe por isso. Laura estava desnutrida e não tinha condições de passar pelo procedimento. Foram quatro meses na espera por um fígado. Os médicos a definiam como uma bomba-relógio.

Laura Franco, de 10 anos, será a única criança a competir na 2ª edição dos Jogos Brasileiros para Transplantados
Laura Franco, de 10 anos, será a única criança a competir na 2ª edição dos Jogos Brasileiros para Transplantados (foto: Arquivo pessoal)

"Eu não conhecia esse universo até o dia do transplante. É curioso como ouvimos histórias e até nos emocionamos com relatos de terceiros, mas a tendência é não nos colocarmos nessa posição de um dia precisar de um órgão", conta a mãe, Deyse Franco, 54 anos. A doação de uma parte do fígado veio do irmão mais velho de Laura. A cirurgia foi difícil, mas tudo correu bem. A vida depois dela foi que exigiu muita força e maturidade para a família e para a criança, mesmo que ela tivesse menos de um ano na época.

E nada do que ela passou a impediu de alcançar grandes feitos. Laura será a única criança a competir nos Jogos Brasileiros para Transplantados, no próximo mês. Será representante no atletismo, natação e pentatlo infantil, que é um circuito de cinco provas — lançamento de pelota, lançamento de dardo, 50m rasos, salto em distância e corrida de agilidade (entre cones). A expectativa é, enquanto isso, articular patrocínio para a competição internacional de 2023.

E Deyse mostra que o exemplo faz a diferença. Para ela, Laura tomou gosto pelo esporte quando as duas fizeram uma caminhada de 3km no Rio de Janeiro, em um evento em prol da doação de órgãos, que reuniu doadores, transplantados, médicos e famílias. Desde então, o exercício passou a ser sinônimo de celebração da vida. "É onde a Laura encontra o lugar dela na sociedade. Não se sente uma criança limitada, mas, sim, incluída", afirma.

A máxima nos cuidados com a pequena atleta é tratar o processo com naturalidade. "Ela sempre se entendeu como uma criança transplantada. Digo para ela que as pessoas vão encará-la, olhar para a cicatriz que ela tem, mas é ela que tem que se mostrar para os outros sabendo que é diferente", encoraja Deyse. Mãe e filha também buscam criar uma corrente de esperança em torno do tema, ajudando famílias a perceberem sintomas e se cuidarem.

O poder dos exercícios

O médico nefrologista Luiz Roberto de Sousa Ulisses corrobora que a atividade física é fundamental para pessoas transplantadas, porque elas costumam ter quadros que já predispõem a alterações cardíacas e ósseas e precisam redobrar os cuidados com a saúde. O exercício ainda ajuda na prevenção e no controle de enfermidades como hipertensão, diabetes e obesidade, que estão relacionadas à sobrevida do órgão transplantado.

Em resumo, transplantados, doentes crônicos e pessoas sem comorbidade alguma se beneficiam quando se movimentam. "É você não viver em função de uma doença ou limitação. Outro ponto interessante é que o esporte estimula um estilo de vida mais saudável como um todo. Melhora a autoestima, inspira a ir atrás de outros cuidados e, futuramente, servir de referência para pessoas que também precisam de uma forcinha", estimula.

Mais informação

Associação Brasileira de Transplantados (ABTX)
Instagram: @abtxtransplante
Site: https://www.abtx.com.br/

Associação Brasileira de Transplante de Órgãos (ABTO)
Site: https://site.abto.org.br/

InfoSaúde-DF
Site: https://info.saude.df.gov.br/transplantes/

*Estagiária sob a supervisão de Sibele Negromonte

Notícias pelo celular

Receba direto no celular as notícias mais recentes publicadas pelo Correio Braziliense. É de graça. Clique aqui e participe da comunidade do Correio, uma das inovações lançadas pelo WhatsApp.


Dê a sua opinião

O Correio tem um espaço na edição impressa para publicar a opinião dos leitores. As mensagens devem ter, no máximo, 10 linhas e incluir nome, endereço e telefone para o e-mail sredat.df@dabr.com.br.

Os comentários não representam a opinião do jornal e são de responsabilidade do autor. As mensagens estão sujeitas a moderação prévia antes da publicação