Que moda e sociedade possuem uma relação intrínseca não é novidade, afinal, o que vestimos pode dizer muito mais sobre a nossa personalidade do que imaginamos; mostra como desejamos ser vistos. Daí, a perspectiva errônea em relacionar esse universo a futilidades. Observe, por exemplo, quantas vezes o vestir-se foi motivo ou instrumento para exigências — e mudanças — sociais. Com os sapatos não é diferente.
Elemento fundamental na história da indumentária, os calçados apresentam teor prático, de proteção, de conforto e de estabilidade para diversas ocasiões e acontecimentos históricos. Já se perguntou, por exemplo, sobre o contexto em que a plataforma ou tênis que cobre seus pés foi inventado? Nem sempre o porquê é apenas estético; na verdade, poucas vezes é.
Saiba Mais
Além disso, refletir sobre os modelos que voltaram a ser tendência também diz muito sobre a atualidade e dá indícios para o futuro. Caroline Lardoza, historiadora da moda, social media especialista em varejo e produtora de conteúdo, e Gabriela Lira, estilista e pesquisadora em moda do século 20, selecionaram os sapatos que deixaram sua marca na história.
Dos costumes
Fechado, com frente arredondada e preso por uma tira com fivela que vai de uma ponta à outra, o modelo Mary Jane surgiu no início do século passado e era destinado ao público infantil. Com a chegada dos anos 20, passou a ser usado por mulheres adultas conhecidas como melindrosas.
Grande ideal de beleza desta década, as jovens construíam sua imagem associada ao senso de juventude. Para aparentar menos idade do que de fato se tinha, lançaram mão de variados recursos, como manter o cabelo curtíssimo, com um corte semelhante ao de garotos pequenos, e usar os sapatos Mary Jane, que traziam uma estética doce e jovial.
Já o salto agulha, também conhecido como stiletto — referência ao punhal fino da Itália Renascentista — apareceu no começo dos anos 1950 em casas de alta costura como Dior, responsáveis por sua popularização. E apesar de parecer um modelo simples, demandou um planejamento bastante completo, afinal, como equilibrar todo o peso do corpo em barras muitíssimo estreitas? Com a tecnologia do pós-guerra, a ideia finalmente saiu do papel.
Ainda na década de 1950, o sapato bicolor de Coco Chanel também caiu no gosto das mulheres. Conhecido como slingback, o calçado atendeu à expectativa de criar um modelo atemporal, que combinasse com várias peças e cores e que escondesse a sujeira, por isso a ponta em preto. Hoje, existem inúmeras variações em lojas mais populares, com preços acessíveis, mas sempre associadas ao estilo elegante e clássico.
Do cinema e da música
O audiovisual, enquanto propagador de modismos, apresenta figurinos que ajudam a lançar tendências memoráveis. O icônico sapato vermelho de Dorothy em O Mágico de Oz, 1939, foi copiado por inúmeras lojas da época e disseminado na cultura americana nos anos 1940. "Alguns exemplares são produzidos e procurados ainda hoje", conta Caroline.
As plataformas, apesar de serem lembradas pela década de 1970, existem desde os anos 1930 e tiveram como maior divulgadora a cantora e atriz Carmen Miranda. Em sua biografia, publicada por Ruy Castro, menciona-se o fato de a artista ter ido pessoalmente a um sapateiro pedir para que fizesse um sapato muito mais alto que o normal. A motivação? Carmen era muito baixa e desejava aparentar mais altura. Assim, o modelo tornou-se sua marca registrada, usado em shows, filmes e em seu cotidiano.
E o que dizer das botas, que voltaram a ganhar destaque em 2022? Julia Roberts, no sucesso de bilheteria Uma Linda Mulher, de 1990, aparece com o modelo de cano altíssimo e salto agulha para protagonizar a prostituta Vivian. A popularidade foi tanta que os jornais da época chamavam a personagem de "Cinderela de botas de vinil".
Dos esportes
Os tênis estão entre os estilos de sapatos mais populares das últimas décadas, mas os modelos como conhecemos hoje são frutos do começo do século 20 e levaram anos para que fossem adotados por variados grupos. Inicialmente pensados para as práticas esportivas, seu uso em demais eventos sociais era ignorado. “Essa percepção mudou um pouco durante a década de 1930, que valorizou a moda casual, mas o boom do tênis só viria na década de 1980”, pontua Gabriela.
Os clássicos All Stars, por exemplo, foram elaborados em 1917 como uma tentativa da Converse de padronizar os sapatos para o basquete e só ganharam popularidade quando o jogador Chuck Taylor adotou-os como seu calçado favorito. Ele, inclusive, solicitou alterações que tornassem o modelo mais confortável. De forma semelhante, a linha Jordan Nike foi criada exclusivamente para o ex-atleta da NBA Michael Jordan e, em meados dos anos 80, foi sucesso de vendas para o grande público.
Neste período, homens e mulheres usavam tênis. Aliás, ter um de marca, como Nike ou Reebok, foi um verdadeiro símbolo de status quo. Um fato curioso é que as jovens adeptas do estilo YUP (Young Urban Professional) — que investiam na imagem pessoal para fortalecer a carreira — costumavam usar tênis com saias e vestidos, algo considerado bastante progressista, visto que até então mulheres em ambientes corporativos precisavam usar sapatos formais para serem aceitas.
Amor antigo pelo All Star
Para Luciene Carvalho, 45 anos, não há comparação: o tênis Converse All Star é, de longe, o seu sapato preferido. O modelo faz parte de quase 90% do seu acervo particular, que conta com linhas em extinção, edições com tiragem limitada e aquelas com um padrão vintage, que possuem mais de 20 anos de idade. A paixão pelo calçado foi tão significativa que se transformou em ocupação.
Há cinco anos, criou o brechó Saiu do Armário, para o qual se dedica integralmente. O nome é um trocadilho que indica, no sentido literal, as peças que saíram do armário e, no sentido figurado, a sua orientação sexual. A admiração pelo sapato parte também da sua história que, segundo Luciene, carrega uma nostalgia boa da juventude nos anos 80 e da época punk rock na década de 90, sendo ainda hoje um ícone atemporal que faz parte da vida de muita gente.
“É um tênis estiloso que combina com tudo: saia, vestido, calça, macacão, alfaiataria, short...tudo! É um clássico que sempre se reinventa em vários grupos sociais alternativos”, completa. Além disso, para ela, outro ponto de destaque é a sua alta durabilidade, devido ao solado vulcanizado ser ligado diretamente ao cabedal do tênis, e não colado, como a maioria dos calçados. Também por isso, “por ser uma peça ícone de resistência e autenticidade”, tornou-se querido por vários grupos.
Recentemente, a colecionadora garimpou o raro Converse All Star Chuck Taylor 70 Pride Shimmering Black Rainbow, em São Paulo, tênis que irá usar em seu casamento. “Segundo informações da pessoa que me vendeu, ele é o único no Brasil. Tem um similar da Miley Cyrus, mas custa um horror em dólares”, comemora.
O que se manteve ou voltou a ser tendência?
Segundo a estilista Gabriela Lira, o tênis e o salto agulha continuam firmes e fortes. O primeiro, em especial, está presente no guarda-roupa de praticamente todo mundo: ricos e pobres, crianças e adultos, mulheres e homens etc. “É talvez o calçado mais básico que nós temos. Mas apesar de básico, há centenas de marcas de tênis com produtos mais fashionistas, seja pela cor, estampa ou formato do tênis”, explica. Já o sapato boneca (Mary Jane) tem excelente aceitação entre as adeptas da moda japonesa alternativa.
*Estagiária sob a supervisão de Ailim Cabral