Cidade nossa

O valentão aposentado

A vida nos dá de presente alguns irmãos. Não precisa exame de sangue, investigação de genoma, papiloscopia, nada disso para fazer um tipo de família. Irmãs também. Meninas que ultrapassam aquele interesse que os meninos enxergam logo à primeira vista; se bem que, nesses casos, há exceções — muitas, até.

Um dos meus irmãos de fé é um bom sujeito, mas queria ser um homem mau, igual aquele da música de Louis Armstrong na versão que Roberto Carlos cantou, ainda no tempo do calhambeque. Mas com um final melhorzinho, já que não quer morrer. Ele até capricha na carranca, mas nunca consegue ir além da caricatura.

Não tem o phisique du role do valentão. Ao contrário, não é muito alto nem parrudo, não anda gingando nem arrastando tamanco. Pior: não tem topete — a natureza cuidou de deixá-lo calvo. Também não tem cara de mau, mas fala alto; se soubesse cantar, a voz de baixo-barítono não faria feio no papel de Wotan, no ciclo do anel da ópera A Walkíria, de Wagner.

Foi um valentão temido nos bares de Brasília nos já longínquos anos 1980; andava sempre com um comparsa, do mesmo tamanho, e esquentado como ele. Faziam alvoroço. O único momento de candura é quando estava dançando, metido numa malha coladinha no corpo, na companhia de Fernando Azevedo.

Bastava descalçar as sapatilhas, no entanto, para reencontrar a alma. E a dupla saía pela cidade, procurando confusão, talvez numa tentativa de drenar a testosterona. Terminavam as noites, invariavelmente, no baixo meretrício do Conic, procurando endurecer e, quem sabe, alguma ternura.

A lembrança mais vívida da época foi uma blenorragia na garganta, que o transformou numa semicelebridade entre os médicos da cidade, que só haviam visto coisa parecida nos livros da faculdade.

Os calendários foram mudando, nosso amigo amansou. Os dias de valentia tinham ficado para trás. "O tempo não só cura, mas reconcilia", escreveu Vitor Hugo, a quem ele nunca precisou ler para se inspirar.

Casou-se, teve filho, parou de arrumar confusão. Deixou o balé e foi cuidar da vida até que, dias atrás, houve a recaída, num boteco do Lago Norte. Por um motivo fútil, daqueles que ninguém lembra mais, se enfureceu. Até aquele momento estava tudo bem, com cerveja gelada, espetinhos de carne, queijo e linguiça, conversa boa, mas bastou uma fagulha para que os ânimos explodissem.

O sujeito que ninguém conhecia brincou e o nosso amigo aceitou a provocação. Tomado pela adormecida fúria adolescente, respondeu aos gritos e engoliu a cerveja que jazia no copo; o outro retrucou. O sangue subiu e ele levantou-se vigorosamente da cadeira para dar início ao combate corporal, já que a turma do deixa-disso não apareceu ou estava muito embriagada.

Do jeito que subiu desceu. A idade cobrou sua conta e os ligamentos do joelho se romperam, ele estatelou-se no chão e foi erguido com dificuldade — andou cultivando uma respeitável pança nos tempos de armistício. Foi operado e passa bem. Agora, faz planos de virar columbófilo — quer criar pombos brancos para mostrar ao mundo que está em paz.