FEITO À MÃO

Artesanato: de norte a sul do país, artesãos valorizam tradições

Em meio às mudanças da contemporaneidade, artesãos, com coragem e dedicação, mantêm vivos conhecimentos ancestrais. Conheça algumas histórias

Uma tradição é um conhecimento passado no dia a dia de uma comunidade ou um costume familiar que vai de geração em geração. Essa é a essência do artesanato. A beleza não se materializa só no produto final — traduz também histórias, memórias e saberes.

No Brasil, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) aponta que 67% dos municípios têm o artesanato na economia local. Em meio a tantas mãos talentosas, conversamos com artesãos que mostram o que é fazer arte em um país com tantos jeitos e a importância do trabalho manual em um mundo tão rápido e fugaz.

No sul do Rio Grande do Sul, nove mulheres vêm se destacando com um artesanato pra lá de original, mas com raízes na tradição. Elas criam bolsas, carteiras, necessaires e biojoias. A matéria-prima? Redes de pesca já aposentadas pelos pescadores da região, e que seriam descartadas. Por isso o nome do grupo: Redeiras.

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As artesãs são Adriana Xavier Sabino, Diva Francisca da Rosa, Eliani Aires Ferreira, Flávia Silveira Pinto, Karine Portela Soares, Mari Ângela Motta Lima (Zuca), Vilma Palins, Viviane Ramos e Rosani Schiller. Elas vivem na Colônia Z3, a 30km de Pelotas (RS). A comunidade fica às margens da extensa Lagoa dos Patos, que tem 265 quilômetros de comprimento. Hoje, 1,5 mil famílias buscam nessas águas o sustento por meio da pesca. O local é bastante isolado em termos de sinal de telefone e internet.

Rosani, apelidada de Nica, nem sempre foi artesã das Redeiras. Em 2008, ela trabalhava no escritório regional do Sebrae e sua primeira função foi apoiar, articular e coordenar a iniciativa das artesãs. Ela lembra que uma delas buscou o apoio da instituição para entrar para um projeto nacional de investimento em artesanato de pequenas comunidades. Foi assim que Nica as conheceu. Até hoje, ela cuida dos detalhes mais burocráticos do grupo, mas se rendeu também à arte.

Hoje, Nica se dedica integralmente às atividades das Redeiras. Ela garante que a vida de todas mudou desde que o grupo se firmou. "Inicialmente, muitos maridos olhavam atravessado porque as esposas estavam em atividade. Agora, o trabalho delas é a renda de mais ou menos 20 famílias da região. As artesãs sentem-se valorizadas, por estarem ativas. É bacana porque, antes, muitas dependiam exclusivamente da pesca e, quando ela não estava em boa fase, passavam dificuldades", conta.

Etapas da criação usando rede

Os pescadores já sabem que podem doar para elas as redes que não suportam mais consertos. Como a pesca é a principal atividade por ali, os estoques costumam estar cheios. Com esse emaranhado em mãos, elas lixam a peça, retiram galhos e recortam partes sem utilidade. O que sobra é lavado com sabão em pó e amaciante. Com tudo higienizado, posicionam as redes nas coxas ou em cima de uma almofada e recortam fio por fio da rede, até tomar formato. Alguns moradores dão uma mãozinha em parte da produção. 

Fotos: Redeiras - As Redeiras reciclam redes de pesca e couro e escamas de peixe. O resultado são lindas bolsas, carteiras, nécessaire e biojoias. O modelo acima, chamado Lagoa dos Patos, é o favorito dos clientes

As Redeiras têm foco atacadista para lojistas de todo o Brasil. Também realizam vendas diretas quando participam de feiras. A cor final das peças depende do tom natural da rede reaproveitada e a intensidade do desgaste por água e sol por que passa. Assim, não há um padrão. O azul marinho, por exemplo, indica que a rede usada era mais nova, e, à medida que desbota, tende a ir para o cinza claro.

Redeiras
Instagram: @redeiras
Site: https://redeiras.com.br/

Rafael Leite
Instagram: @atelierafaelleite

Fatinha Fibras e Fios
Instagram: @fatinhafibrasefios
Telefone: (62) 3322 6197

Nova geração da renascença

Rafael Leite é natural de Poção, município de 11 mil habitantes. O encontro com a Revista ocorreu semanas atrás, quando ele saiu do agreste pernambucano para expor no 15º Salão do Artesanato Raízes Brasileiras, aqui em Brasília. O artesão de 23 anos usa a renda renascença (um tipo de renda com agulha caracterizada pelo uso do lacê) como matéria-prima para a releitura de obras de arte famosas. O trabalho chama a atenção e, durante toda a entrevista, o estande ficou repleto de curiosos.

Terezinha Nunes acompanhou o jovem na viagem. Amiga da família, faz alguns anos que ela incentivou Rafael a participar do "Mãos que Criam", realizado pela Secretaria do Trabalho, Emprego e Qualificação de Pernambuco. O projeto foi um marco no crescimento do artesão. Ele era o único aluno homem nas aulas. Além disso, recorda a insegurança — a renda está na família há décadas, inclusive como forma de sustento e ele sentia uma responsabilidade enorme. Felizmente, como ele mesmo disse, "o tempo levou a vergonha".

Reprodução/Instagram - Rafael Leite precisou vencer tabus, inclusive para desconstruir o preconceito sobre homens fazendo renda

A obra O Abaporu, de Tarsila do Amaral, inspirou o trabalho final do curso. Tendo ela como base, Rafael lançou sua própria criação, que levou três semanas para ficar pronta. O resultado fez sucesso em Pernambuco. Depois de mais algumas produções, ele teve a ideia de vender os quadros. Para se ter ideia, chegou em solo brasiliense já com algumas encomendas de clientes daqui para atender. Entre outras releituras que fez, estão obras como Mulher Rendeira, de Aldemir Martins, e A Negra e Antropofagia, ambas de Tarsila do Amaral.

Rafael sonha em manter viva a prática e o interesse das pessoas pela renascença, visto que a maioria das rendeiras são mais velhas e ainda há pouca participação dos jovens. A renda sofre também com os atravessadores, que compram o trabalho autoral desses pequenos produtores e revendem por valores altíssimos.

Entre fibras e fios

"Colhido, plantado, autêntico." É assim que Maria de Fatima Dutra Bastos, conhecida como Fatinha, define o artesanato de raiz a que se dedica. Ela é filha e neta de parteiras e tecelãs, sendo esta última uma função comum por lá. Em Olhos D'água, distrito de Alexânia (GO), Fatinha transforma palha de milho e folhas de bananeira em esculturas que retratam a iconografia folclórica e religiosa da região.

Usar o improvável para fazer arte é um gosto que vem da infância. Quando criança, ela improvisava bonequinhos de milho enquanto cuidava das galinhas e de outros animais. "Fazia por brincadeira, não pensava que pudesse ter valor comercial", recorda.

 

Reprodução/Instagram - São Francisco feito por Fatinha. As figuras religiosas refletem as tradições da região de Olhos D'Água

Em 1974, duas professoras viram o potencial do artesanato local e criaram a Feira do Troca, em Olhos D'água. Empolgada, Fatinha aproveitou a oportunidade para lançar algumas peças. Montou presépios, artes sacras e imagens religiosas. Na época, pensava em trocar as criações por uma calça jeans.

Com o tempo e o avanço da produção, passou a pesquisar o que deveria plantar para assegurar um trabalho de qualidade. Para ela, tudo começa no plantio e na escolha do milho, que, nesse caso, não é transgênico — ou seja, o milho não é geneticamente modificado. "Hoje, minha palha é meu ouro", afirma.

Por experiência, ela diz que o aspecto natural dá ao artesanato uma energia a mais, um diferencial. "Temos que mostrar o que é o Brasil. No meu caso, retratar parte do Goiás. O artesanato deve manter essa ligação, e o artesão, claro, precisa acreditar no que faz, pensando sempre em melhorar o trabalho", acredita.

A oficina de Fatinha movimenta a economia local. Centenas de moradores já passaram por lá, ajudando na produção. Ela segue perpetuando seu espírito artesão por aí. "Se passo na rua e pego uma flor, já quero fazer algo com isso. Dou um jeito de inserir nas esculturas", conta.

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