Na contramão daqueles que investem em assistentes virtuais e na automatização de quase todas as funções da casa, como acender as luzes e a televisão, existem os que aproveitam os momentos de descanso e lazer para tentar se desconectar completamente. Entre eles, há ainda os que buscam o equilíbrio, aproveitando as facilidades da tecnologia sem se entregar ao uso desenfreado.
Para atingir a moderação existe um ponto central: o autocontrole. Gilberto Godoy, psicólogo da Clínica Brasília de Psicologia, explica que o conceito é a capacidade que desenvolvemos de entender o quanto de cada elemento, situação ou alimento, por exemplo, é bom para nós e em que ponto se torna um malefício.
Ao usar a tecnologia, não é difícil se encantar com as vantagens. "É muito útil, facilita a vida das pessoas, permite lazer e trabalho, agiliza muitos processos. Foi criada como algo que pode nos ajudar, mas como tudo na vida, em excesso, se torna um problema", diz Gilberto.
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A falta do autocontrole pode fazer com que a pessoa exagere e se deixe levar sem reservas em condições facilitadoras e prazerosas. No uso da tecnologia, isso acarreta alguns problemas, que se tornam cada dia mais comuns nos consultórios.
Entre eles, Gilberto destaca a ansiedade. "O uso excessivo do smartphone e do WhatsApp tem causado essa alteração psicofisiológica. A sensação de tensão e angústia, esperando que algo aconteça a qualquer momento, modifica a fisiologia do organismo, alterando as funções dos neurotransmissores", explica.
Em seu estado normal, a mente e o corpo estão em equilíbrio orgânico, a chamada homeostase, um estado de relaxamento. Apesar de ter funções muito importantes no funcionamento do organismo, a tensão em excesso compromete a saúde, causando desgaste emocional e comprometendo a fome e o sono, que podem evoluir para uma série de problemas como depressão e burnout.
Levando em consideração esses aspectos, é importante não demonizar a tecnologia e o uso dos smartphones, grandes facilitadores, principalmente no período de isolamento social, mas ao mesmo tempo, é necessário compreender e tentar diminuir os efeitos do uso excessivo.
Vício consciente
A gastrônoma Juliana Reis Almeida, 22 anos, revela que usa o smartphone para "praticamente tudo". Para a jovem, o celular é a ferramenta pela qual se conecta com os amigos, inclusive para marcar encontros presenciais, como se desloca pela cidade, usando o GPS, e como organiza trabalhos e viagens.
"As outras etapas da minha vida acabam passando pelo celular, inclusive aquelas em que eu fico sem ele. Tenho uma proximidade muito grande com a tecnologia, uso o celular em toda possibilidade em que ele me cabe", revela.
No entanto, mesmo passando grande parte do tempo com o smartphone na mão, Juliana não acredita que sua relação com a tecnologia tenha muitos aspectos negativos, salvo algumas situações desconfortáveis.
Entre elas, atrasos em encontros com amigos e outros compromissos. Quando entra no Tik Tok, rede de vídeos rápidos, Juliana perde a noção do tempo e o que seriam apenas cinco minutos viram 20. O déficit de atenção dificulta ainda mais o processo e Juliana confessa: "quando entro nesse mundo, me perco e é difícil sair".
A gastrônoma afirma estar consciente dos pequenos problemas que seu envolvimento com o celular pode causar, mas acredita que o período que vive, de troca de emprego, facilita que ela passe mais tempo no celular. Quando está na cozinha, por exemplo, ela nem olha para o aparelho e só pega na hora de sair.
O mesmo acontece quando está jogando vôlei. Fã de esportes, encontra o equilíbrio nesses momentos, nos quais nem se lembra da existência do telefone e foca em exercitar o corpo e relaxar a mente, entrando em outra dimensão.
Além do Tik Tok, Juliana é heavy user do Instagram, onde costuma publicar fotos e vídeos e se perder vendo as publicações dos amigos. Os alertas de tempo disponíveis nos aplicativos não funcionam para ela, que afirma que somente ignora o aviso e continua na timeline.
"Tenho um dia tão corrido, intenso e cheio de coisas para resolver. Quando posso relaxar, pegar o celular, não quero me limitar. É uma das minhas formas de lazer também e como encontro esse equilíbrio em outros momentos, nos quais é zero celular, me permito curtir sem preocupação", destaca.
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Com a casa toda automatizada, Juliana acrescenta ainda os benefícios que a relação com a tecnologia trouxe para sua mãe, que é aposentada. Através das redes sociais, ela se conecta com os amigos e durante a pandemia, foi isso que aliviou a solidão. Juntas, as duas ainda aproveitavam a internet para planejar as inúmeras viagens que fariam assim que as fronteiras estivessem reabertas.
Em busca de equilíbrio
Há cerca de quatro meses, os relatórios do tempo de uso do celular incomodaram o estudante Wander Marçal Dias, 26 anos. Usando o telefone para algumas funções do estágio e passando muito tempo no WhatsApp e no Instagram, ele não gostou de perceber quantas horas por dia estava perdendo encarando a tela.
"Sempre fui um usuário mais contido, não tenho jogos ou coisas assim, mas a pandemia me fez usar mais as redes e acho que acabei me acostumando demais a conversar por ali. Desde que notei esse excesso, me esforcei para diminuir", conta.
Para começar, Wander deletou o aplicativo do Facebook no celular, colocou um temporizador de 45 minutos no Instagram e deixou de seguir contas e perfis de pessoas que não conhecia e de empresas.
"Seguindo restaurantes, tinha dias que eu ficava com vontade de comer sem estar com fome, me dava uma certa ansiedade e também selecionei melhor os conhecidos que sigo, silenciei alguns e hoje minha timeline só mostra meus amigos e coisas que realmente quero ver", acrescenta.
Outras medidas tomadas pelo estudante são bloquear publicidades e nunca navegar pela lupa da rede social, que mostra conteúdos de contas diversas, além de vídeos em alta. As outras redes nunca chamaram muito a atenção de Wander e depois das mudanças, ele notou diversas vantagens.
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As horas do dia parecem ter aumentado, ele tem mais tempo e disposição para sair e ver os amigos, ir à academia e até para se concentrar no trabalho e nos estudos. "Quando saímos da tela pequenininha, temos mais tempo para viver e conseguimos aproveitar coisas diferentes".
Wander enxerga uma série de vantagens no uso do smartphone, entre eles, estar sempre informado do que acontece ao seu redor, mas pondera sobre o excesso de notícias negativas. Para ele, é importante não estar alienado, mas se permitir momentos para desligar tudo.
Assistir séries e filmes, jogar vôlei e ler livros físicos são algumas das situações em que o jovem se permite esquecer de tudo que está acontecendo e se concentrar no momento, "desligando" o cérebro.
Ele confessa que em alguns momentos se incomoda com o vício dos amigos, que nem percebem que estão no celular durante conversas ou momentos de interação presencial.
"A tecnologia pode afastar ou aproximar. Durante a pandemia foi muito bom, permitiu a união e ajudava a matar a saudade, mas é importante saber deixar de lado na hora de curtir as pessoas e estar junto no presencial", completa.
Uma vida sem smartphone
O advogado e delegado aposentado Heitor Lacerda Junior, 60, garante não precisar de um celular mais moderno do que o seu LG A39. "Eu não tenho smartphone, nunca tive e não pretendo ter", determina.
Além do LG A39, Heitor tem alguns outros aparelhos mais antigos de prontidão, caso o principal pare de funcionar. Mesmo não tendo nada contra a tecnologia em si, o advogado não enxerga necessidade de estar conectado 24h por dia.
A tentativa de ter um número cadastrado no WhatsApp existiu, para que ele pudesse acessar o aplicativo pelo computador, mas a exigência de um smartphone o desestimulou. Os amigos conseguem chegar até ele através de ligações e SMSs, em casos mais imediatos, alguns tentam mandar mensagem no WhatsApp da esposa de Heitor.
As escolhas de uma vida mais distante da tecnologia se baseiam no cuidado de não se tornar dependente de dispositivos que podem trazer malefícios e sem os quais é possível viver bem.
Comunicações em excesso, como bom dia, orações encaminhadas e cumprimentos de aniversário de pessoas distantes, soam como exagero e como falsa intimidade. "Essas relações forçadas não tem profundidade e as amizades vividas na realidade acabam ficando enfraquecidas. Isso não agrega na qualidade de vida".
Se reunir com os amigos e ter conversas cara a cara são a preferência de Heitor, mas ele confessa ficar de fora de um assunto ou outro entre os círculos sociais por não participar dos grupos de conversa on-line.
Entre as desvantagens que enxerga no uso excessivo do celular, Heitor destaca as lesões por movimento repetitivo, a ansiedade por notificações e até mesmo a distorção de realidade causada por padrões irreais apresentados nas redes sociais.
E são essas preocupações que motivaram Heitor e a mulher a monitorar o tempo que os filhos passam on-line. Sem redes sociais, os adolescentes têm smartphones e WhatsApp, mas não podem levar os aparelhos para o colégio, por exemplo.
"A escola é o momento de se concentrarem nos estudos e eles sabem a importância disso. Para que possam falar conosco em caso de necessidade, eles usam um dos celulares mais antigos", conta.
A ideia é educar os filhos para que eles possam ter uma relação saudável com a tecnologia conforme crescem e se tornam responsáveis pelas próprias escolhas. Por algumas horas por dia, eles têm liberdade para usar os smartphones e a família costuma usar a internet para pesquisar sobre cidades e lugares que desejam visitar.
"Não é uma imposição e muito menos a vontade de criá-los em uma ilha. É uma questão de orientar enquanto eles são jovens, até que alcancem maturidade e tenham autocontrole para usar sem se tornarem reféns das redes", acrescenta.
Heitor completa que enxerga a internet como um mundo com muitas portas, que podem nos levar a lugares e conhecimentos se for usada de maneira inteligente, mas que é importante viver fora dela também.
Como — e por que — desligar o cérebro?
Neurocirurgião, médico do Hospital Israelita Albert Einstein e pesquisador da disciplina de Neurocirurgia da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Marcelo Valadares conta que é frequente ignorar os sinais de alerta de exaustão do cérebro.
E quanto mais esses avisos são deixados de lado, mais a saúde, como um todo, fica exposta. "É importante lembrar que corpo e mente trabalham juntos o tempo todo para garantir nosso bem-estar. Se há algo errado com o cérebro, o corpo sente o impacto diretamente", explica.
A estafa mental, entre outros problemas, pode levar à baixa imunidade. Outras consequências são condições aparentemente inexplicáveis, como dores de cabeça, hipertensão e, até mesmo, problemas gastrointestinais, como gastrites ou úlceras. O paciente também pode sofrer com distúrbios do sono, dificuldade para concentração e irritabilidade.
Quando atinge a exaustão, o sistema nervoso central reduz a atividade de diversas regiões do cérebro, como indicou uma pesquisa da Universidade de Singapura, causando não apenas a sonolência, mas também a lentidão no pensamento.
O sono de qualidade surge como uma das maneiras mais eficazes de manter o cérebro em equilíbrio. Enquanto dormimos, em vez de "desligar", nosso cérebro inicia um dos seus momentos de maior atividade.
Com a consciência ausente, os neurônios processam e arquivam as informações recebidas durante o dia. Além disso, os pesquisadores acreditam que boa parte da "limpeza" de resíduos de atividade cerebral ocorra durante o sono.
O uso de dispositivos eletrônicos com telas, como celulares, computadores e televisão, por exemplo, pode ser prejudicial quando existe o uso excessivo. Esse exagero pode interferir não só no repouso do cérebro ou na qualidade do sono, mas também na realização de tarefas cotidianas.
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