A Lei Maria da Penha entende a violência psicológica como qualquer conduta que cause dano emocional e diminuição da autoestima da mulher, que prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise controlar suas ações e comportamentos, por meio de ameaças, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem e ridicularização.
Muitas vezes naturalizada na rotina e camuflada nos sentimentos, esse tipo de violência é considerado uma das formas mais comuns de agressão contra a mulher no casamento. "Eu não conseguia achar que você fosse um tirano contumaz, pois fomos felizes muitas vezes", diz trecho do livro Há muitas formas de se fazer macarrão e outras brutalidades, de Georgina Martins.
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Escritora e professora universitária, a carioca, doutora em literatura brasileira e colunista da revista Ciência Hoje detalha, por meio de relato pessoal, com um pouco de ficção, as nuances da violência psicológica que sofreu no casamento. Georgina expõe uma vida doméstica que gira em torno de uma série de agressões vividas por um casal que, pouco a pouco, vai revelando seu relacionamento abusivo ao público.
"Tudo acionado, não pela força física de um homem, mas pelas sutilezas de sua condição de intelectual. Devotado às artes e à gastronomia, por exemplo, impõe à convivência familiar uma rotina de obediência às suas demandas, às oscilações de humor e à suposta superioridade moral", conta.
Para a Revista do Correio, ela relatou que realmente não é simples entender como alguém que te faz bem pode, ao mesmo tempo, te fazer tão mal. A admiração pela pessoa dificulta ainda mais o processo, acrescenta a escritora. "É difícil de enxergar que alguém tão culto, intelectual e estudado poderia estar fazendo aquilo, falando daquele jeito, olhando daquela forma…"
Dúvidas consomem a mente e você já não sabe mais em quem acreditar. "Eu acabei me anulando pelas demandas dele." Culpa, medo e amor, a combinação perfeita para uma dependência emocional. "Fica cada vez mais difícil colocar um fim no relacionamento, você sente que precisa dele, mesmo tendo consciência que está fazendo mal. Gritos, ameaças, proibições, todos eles, infelizmente, sempre envolvidos por muitos sentimentos."
A autora conta que passava todo seu tempo tentando resgatar a sensação dos cinco minutos em que eles estavam bem, que a alegria da reconciliação a mantinha dentro daquele relacionamento. Era sempre reconfortante a sensação que "fazer as pazes" trazia. Os poucos minutos que eram bons davam a falsa sensação de que nada de errado estava acontecendo ali. Ela sabia que as coisas não estavam certas, mas, ao mesmo tempo, não conseguia se desapegar da relação.
Na obra, é possível identificar a evolução da violência. As ações vão sendo desnaturalizadas com o decorrer da história, a repetição das agressões vai sobressaindo à rotina e, mesmo sendo um relato pessoal, diz muito sobre todas as mulheres que passam por essa mesma situação. O agressor pode até mudar de nome mas a narrativa sempre se repete.
Ações sutis
Uma agressão psicológica, muitas vezes, é sutil, vem disfarçada de pequenos insultos e discussões rotineiras, relações sexuais forçadas, controle do ciclo social. "Nem sempre é tão fácil de identificar desde o início e, com o passar do tempo, fica ainda mais difícil de cortar esse mal pela raiz", explica a psicoterapeuta Lélia Lemes.
Dentro do consultório, ela relata que as queixas, muitas vezes, vêm em diálogos naturais, comentários sobre a relação, pequenas percepções do dia a dia, que, quando observados racionalmente, de fora, são classificados como abuso. "Ele não me deixa sair com as minhas amiga", "eu tive que parar de trabalhar depois que a gente começou a namorar," são alguns dos relatos comuns.
Quando esses sinais de agressão começam a ser identificados pelo profissional, ele precisa fazer a vítima tomar consciência da situação. Antes de orientar a paciente a sair dessa relação, um grande trabalho de amparo precisa ser realizado. A dependência financeira precisa ser superada, a família e as autoridades contatadas, o tratamento psicoterapêutico focado na reestruturação iniciado.
Buscando evitar um possível retorno da vítima à situação de abuso, há uma série de medidas que precisam ser tomadas antes da separação de fato. A terapeuta acrescenta que, para o resgate da autoestima e da confiança da vítima, ela precisa dar continuidade a esse tratamento, pois ele será fundamental para o auto suporte durante o processo de retorno à sociedade, ao mercado de trabalho e às atividades rotineiras básicas as quais ela foi afastada durante esse período.
"Ter força para lidar com essa situação não é uma tarefa simples. A psicoterapia é primordial nesse processo de ressignificação da existência, ela vai ajudar diretamente na cura de todos os medos, incertezas, emoções e angústias", acredita Lélia.
Além do tratamento psicológico, existem métodos que podem ser adicionados a esse processo. Enquanto as dores estão sendo trabalhadas, grupos de apoio, trabalhos espirituais, terapias alternativas também podem auxiliar nesse processo de ruptura.
Para Georgina, a arte foi uma forma de terapia. Ela relata que, como escritora, essa foi a melhor forma de se libertar. Mesmo que a produção do livro não tenha sido um processo fácil, colocar as ideias no papel foi essencial para ela conseguir passar por aquela dor. Além disso, a obra, escrita após a morte do ex-marido, proporcionou uma troca essencial com outras mulheres. Partilhando o que a machucou, ela promoveu uma identificação do público — e toda a sensibilização pela sua dor, segundo ela, foi recompensante.
Denunciar é preciso
Desde 29 de julho de 2021, violência psicológica contra a mulher é considerada agressão e, dentro de um casamento, é uma das mais comuns. Dividindo o ranking com as violências moral e física, a denúncia ocorre da mesma forma para os três tipos de agressão e pode ser feita pela própria vítima ou por qualquer pessoa, por meio dos canais disponíveis. A Polícia Civil disponibiliza o 197 para denúncias, cujo anonimato é garantido.
Também é possível promover a denúncia por meio do Disque 180, canal vinculado à Secretaria Nacional de Política para as Mulheres. "Para o registro de ocorrência policial, a vítima pode procurar qualquer delegacia de bairro, as DEAMs, (Delegacia Especial de Atendimento à Mulher) ou promover o registro pela delegacia eletrônica", informa Adriana Romana, delegada chefe da Deam 2.
"Como se vê, é um crime de ação múltipla, e são várias as condutas que podem configurar a violência psicológica, mas há um fator especial: apenas a mulher pode ser vítima dessa violência." É importante que a vítima consiga identificar as violências na hora da denúncia.
O agressor precisa, de alguma forma, ter afetado seu desenvolvimento ou controlado suas ações, comportamentos, crenças. Além disso, é necessário que exista um dano emocional que tenha gerado um prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação.
Após a identificação do crime e a adoção de medidas legais, a vítima pode buscar atenção na Rede de Enfrentamento à Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher.
Normalmente, é muito mais fácil identificar um relacionamento abusivo quando você está fora dele, por isso compartilhar os casos é tão importante — a identificação com a história ajuda muitas mulheres a saírem dessa situação.
Georgina lembra que todo mundo queria tirá-la daquela situação: filhos, amigos e familiares se sensibilizaram pela situação anos antes dela, que foi a última a conseguir identificar os problemas do relacionamento. Apenas depois do divórcio a ficha foi caindo — e nem isso foi suficiente. Só quando escreveu o livro conseguiu racionalizar tudo e entender que passou por um caso de agressão.
A literatura fez por ela o que deveria ter sido feito anos antes, por isso ela ressalta a importância de sempre colocar para fora o que está acontecendo. "Tirar os sentimentos entalados na garganta é parte essencial do processo de superação. Não há uma receita de como passar por isso, mas colocar para fora o que machuca se transforma em um processo terapêutico", fala a escritora.
Para Georgina, ninguém está sozinho, contar com uma rede de apoio nesses momentos é essencial. "Mesmo que se afastar das pessoas seja a reação mais natural, você não pode deixar isso acontecer! Se abrir e pedir ajuda para quem possa ver a situação com outros olhos é essencial."
Um relacionamento abusivo implica em vários fatores da vida, a criação dos filhos fica comprometida, anos de terapia, muitas vezes, não são suficientes para apagar traumas que essa relação trouxe para as crianças. A delegada Adriana Romana informa que o Estatuto da Criança e do Adolescente, assim como a Constituição Federal, garante a toda criança e adolescente o direito a uma vida sem violência, a um desenvolvimento pleno.
É dever da família proporcionar um lar sem violência para que essas crianças cresçam bem. Em casas em que o pai pratica essas agressões contra a mulher, todos acabam sofrendo. Georgina conta que seus filhos optaram por não ler a obra para que esses traumas não fossem acessados. Afinal, o abuso psicológico perpassa o casamento, ele afeta a família em geral.
*Estagiária sob a supervisão de Sibele Negromonte
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