A escuridão se combate com luz e não com breu. A afirmação é evidente, solar, para continuar a metáfora. Décadas atrás, o Profeta Gentileza — batizado José Datrino — circulou por Brasília com sua longa barba branca, vestido num manto branco estampado com uma imagem da sagrada família e outros motivos, carregando uma placa com palavras soltas e uma única ideia na cabeça: gentileza gera gentileza.
Versos também iluminam. E direcionam, como a luz do farol. Ou talvez sejam como diz o haikai do mais novo imortal piauiense, Climério Ferreira:
"A poesia talvez não tenha
Nenhuma utilidade imediata
Por esta razão ela é imprescindível"
E se houver música na poesia, melhor ainda. E que tal um samba pra espantar o tempo feio? A proposta é de Chico Buarque que, aos 78 anos, renova a música brasileira a partir de uma canção simples, de levada eclética, e que, mais uma vez, abre a cortina do passado rumo a um futuro de mais esperança. O mesmo Chico havia feito algo parecido em 1970, quando lançou Apesar de Você, também um samba que falava de um futuro melhor.
É claro que a canção tem endereço certo, é óbvio que os defensores do indefensável se incomodam, mas como responder tamanha delicadeza? É um samba com uma sucessão de perguntas. Socraticamente, o compositor vai enfileirando sugestões na contramão de tantas ordens e contraordens, em que o ponto de interrogação vira inflexão.
Com palavrão e tudo, é um samba delicado e que parece uma coleção de haikais. "Que tal um trago? ... um samba pra alegrar o dia, pra zerar o jogo", sugere. "Tomar um banho de sal grosso, que tal? Sair do fundo do poço", segue. "Esconjurar a ignorância, que tal? Desmantelar a força bruta."
O país precisava de um momento de gentileza como este. Ainda que seja uma gentileza carregada, mas que sugere que é preciso encontrar uma saída para a secessão brasileira, essa que arma pacifistas e que faz até os mais inteligentes usar a ignorância.
Se Apesar de Você, composta quando Chico tinha 26 anos, é um samba exaltação que, por meio de metáforas, convocava à luta pela inexorável liberdade, Que Tal um Samba? persegue o caminho da sutileza — afinal, perguntar não ofende.
Em 1970, havia um compositor raivoso, ameaçador: "Apesar de você amanhã há de ser outro dia"; agora, ele aparece mais reflexivo: "Coração pegando fogo e cabeça fria, um samba com categoria, com calma".
É uma melodia mais sofisticada também, embora traga a falsa impressão de simplicidade. O arranjo explora harmonias que surpreendem, valoriza uma levada caribenha que vai, devagarinho, se aproximando do samba e ainda conta com o bandolim de Hamilton de Holanda colorindo toda a canção.
Antes de tudo, Que Tal um Samba? recupera a autoestima musical do país. Mostra que ainda há muito o que fazer com os elementos que Donga, Pixinguinha e João da Baiana moldaram no início do século passado e que pareciam perdidos no meio de tanto (apud Ariano Suassuna) funk coisa ruim. Que tal outros sambas?