Reconhecer a própria sexualidade ou gênero ainda é um desafio em uma sociedade hostil ao que costuma fugir do padrão. E as tentativas de podar, não só demonstrações de amor como a existência de integrantes da comunidade LGBTQIA+, estão comprovadas em dados: ao menos cinco pessoas foram vítimas de homicídio no país a cada semana em 2021, segundo o Observatório de Mortes e Violências contra LGBTI+. Muitas vezes, tal violência manifesta-se dentro de casa, ambiente de onde se espera maior proteção; daí a importância das redes de apoio que surgem ora dos grupos de amigos, ora de projetos e instituições.
Mas, afinal, como romper a reprodução de preconceitos que atravessam gerações e educar crianças confiantes e conscientes de seu papel social? As mudanças são urgentes, visto que até pouco tempo — apenas 32 anos — a homossexualidade ainda era classificada como doença pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Durante junho, celebra-se o Mês do Orgulho LGBTQIA+, em alusão à Revolta de Stonewall, resposta do grupo à intolerância praticada por policiais, ocorrida em 28 de junho de 1969, nos Estados Unidos. Pensando nisso, a Revista conversou com especialistas e famílias que, além de acolherem os filhos, engajam-se na luta contra a homofobia e são exemplos de empatia e respeito.
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"Ser você mesmo nunca deve ser motivo para pedir desculpas"
Crescer em uma família aberta a outras culturas e marcada por constantes mudanças de endereço — com pai americano e mãe brasileira — fez com que o estudante Azra Blum, 18 anos, despertasse desde cedo curiosidade sobre tudo, todos e si mesmo, sentindo-se confortável para, aos 12 anos, expressar sua identidade e sexualidade para os pais. Hoje, reconhece-se como homem transsexual e bissexual, constatação que, ainda nos primeiros sinais, não lhe causou espanto.
Recorda-se, por exemplo, de, na infância, ser menos "afeminado" que outras meninas e ter interesse por brincadeiras comumente associadas ao masculino. "Claro que essas características não podem determinar o gênero de alguém, mas, para mim, foi um tipo de 'sinal'", revela. Inicialmente, reconheceu-se como bi, depois como não binário e, em seguida, como homem trans. Não houve sentimento de vergonha ou culpa. "Eu sou isso mesmo, nada de mais."
Parte dessa segurança se deu pela reação positiva da família, em especial do pai, que a todo momento o acolheu. Com a mãe, o processo foi intrincado e permeado por resistência que, gradativamente, deu lugar a colo e compreensão, tornando-a uma das suas maiores apoiadoras e motivo de orgulho, em vista dessa transformação, para o filho.
Azra considera-se privilegiado por não ter sofrido tão intensamente situações de intolerância na escola — ambiente muitas vezes desafiador para crianças e adolescentes LGBTQIA +. Em alguns momentos, presenciou o que chama de ignorância por parte dos colegas, que teciam comentários, o sexualizando e objetificando. Perceber que esse grupo já não o aceitava motivou o jovem a encontrar outros amigos que realmente lhe apoiaram e com os quais se identificava.
Já na faculdade, o estudante cita uma ocasião em que se sentiu desconfortável com a forma como foi tratado pela professora, que não sabia como se referir a ele e o questionou sobre os pronomes com os quais se apresentava. "De certa forma, eu me senti 'tirado do armário' sem meu consentimento, já que fui o único da turma indagado sobre isso. De toda maneira, quase sempre as intenções são das melhores, mesmo que revelem pouco contato com pessoas transsexuais", explica.
Compreender que está passando por um processo de reconhecimento, muito particular para cada um, é o primeiro passo, conforme aconselha Azra. Ainda que a família e os amigos possam ser uma rede de apoio segura, somente quem vivencia esse contexto sabe o que o fará feliz. "Se os outros não te aceitarem ou te acharem estranho, é erro deles, não seu. Ser você mesmo nunca vai ser motivo para pedir desculpas. Tome coragem, jogue fora o 'desculpa' e apegue-se ao 'dane-se'".
Amor que fortalece
Informar-se sobre o processo de transição de gênero foi uma iniciativa importante para os pais de Azra, a consultora educacional Adiane Martins e o professor universitário Avram Blum. Além disso, investir tempo e energia em terapia, tanto individual quanto em família, foi uma atitude que ajudou a amadurecer as mudanças e juntar forças para compreender o filho.
Para Avram, os indícios sobre a identidade e a sexualidade do jovem foram percebidos desde cedo. "As crianças reconhecem que na sociedade existem certas expectativas para meninos e para meninas. Têm aquelas que 'aceitam' tais normas sociais, como meninas que gostam muito de usar rosa e vestir vestidos, enquanto outras não expressam tão fortemente esses traços associados à feminilidade, como foi o caso de Azra", descreve.
Quando se mudaram para Brasília, o filho, então com 10 anos, fez uma forte amizade com uma menina, com a qual queria estar sempre junto. Ali, o pai percebeu que se tratava de um sentimento maior e, aos 12 anos, os adolescentes se assumiram para as mães. Ao saber, o professor, de prontidão, demonstrou apoio e compreensão: o importante era que o filho estivesse feliz. "Tudo bem. É muito bom ter alguém que gostamos em nossa vida", recorda-se de declarar.
O próximo grande passo ocorreu ao se mudarem para os Estados Unidos. Quando os pais tiveram que assinar um documento com o filho, surgiu a questão do nome: Azra não se identificava mais como menina e o pedido para ser chamado de outra forma foi acatado pela família. Após passar por um período em que considerava ser não binário, o jovem reconheceu-se como menino, aos 17, comprovando que esse processo pode ser longo e gradativo, o que não significa que seja árduo, já que houve tempo suficiente para compreender cada nova informação.
Com acompanhamento psicológico, Adiane passou a conhecer mais sobre si e sobre o papel essencial que exerce na vida do filho. Ela lembra, ainda, que esses primeiros momentos podem ser desafiantes para o adolescente, mas, se ele souber que em casa há acolhimento, qualquer tipo de sofrimento é reduzido em altíssima proporção. "Eles precisam muito do nosso amor. Nós somos as pessoas mais próximas deles e é tão maravilhoso saberem que têm nosso apoio. Dessa forma, consegui enxergar o orgulho que tenho de ser mãe do Azra", conta.
Para os pais que estão passando por situações semelhantes, Avram recomenda: "Informe-se, conheça e converse". Procurar um espaço neutro, como o da terapia, também pode ser positivo. Além disso, dialogar com amigos ou amigas que são parte da comunidade LGBTQIA + ajuda a esclarecer algumas questões e enxergar outras perspectivas. "Em nenhum momento, eu me senti decepcionado ou achei que ele não estava alcançando as minhas expectativas. Quero que ele esteja bem, em primeiro lugar", finaliza.
Sem desculpas para equívocos
Aprender a nomenclatura adequada para se referir à comunidade LGBTQIA+ é um dos pilares para a garantia do respeito e, consequentemente, de seus direitos. Pensando nisso, preparamos um glossário com os termos que costumam gerar mais dúvidas. Afinal, informar-se é um artifício fundamental para vencer preconceitos.
- LGBTQIA+: as iniciais da sigla correspondem, respectivamente, aos seguintes vocábulos: lésbicas, gays, bissexuais, transexuais e travestis, queers, intersexuais e assexuais. O + inclui todas as outras identidades que integram o movimento, como pessoas não binárias e pansexuais.
- Gênero: é a construção social baseada nos sexos biológicos, mas que independe deles. As pessoas que se identificam com os gêneros atribuídos no nascimento são chamadas de cisgêneros, já as que não se identificam, são nomeadas transgêneros.
- Transsexual: o termo se refere a indivíduos que passam por uma transição social que pode incluir tratamentos hormonais e cirurgias que visam se assemelhar com sua identidade de gênero.
- Travesti: é uma identidade historicamente latino-americana que corresponde a pessoas designadas com gênero masculino no nascimento que se entendem como figuras femininas. Não se enquadra na divisão binária de homem e mulher.
- Queer: inicialmente utilizado de forma pejorativa, significando "estranho" e "peculiar", o termo abarca atualmente pessoas que não se identificam com os padrões de sexualidade ou gênero, isto é, não se reconhecem totalmente com identidades masculinas nem femininas.
- Intersexual: indivíduo que apresenta variações clínicas relacionadas aos cromossomos ou órgãos reprodutivos ou sexuais. Tais características não se encaixam em noções típicas de sexo feminino e sexo masculino.
- Pansexual: orientação sexual na qual os sujeitos têm atração por outras pessoas independentemente da sua identidade de gênero ou sexo biológico.
- Linguagem neutra: proposta que visa adaptar a linguagem com o fim de torná-la mais inclusiva para pessoas não binárias e intersexuais. As substituições normalmente ocorrem em artigos, pronomes e substantivos, no qual as letras O e A podem dar lugar ao e, X ou @, como em todes.
Cinco Perguntas para
Débora Ribeiro é educadora parental em disciplina positiva e psicopedagoga clínica e institucional e estudiosa do desenvolvimento infantil e de novas estratégias para a educação de filhos.
Muito se comenta sobre a intuição materna em perceber, mesmo antes do filho/a abordar o assunto, traços de uma possível orientação sexual diferente; é o famoso “mãe que é mãe sempre sabe”. Isso de fato acontece? E o que fazer ao perceber esses sinais?
Acredito que quanto maior e melhor o vínculo entre pais e filhos, mais apurada é essa "intuição". Quando você está conectada ao seu filho, o conhece melhor e pode conseguir ler algumas entrelinhas pelo comportamento e comunicação, por exemplo.
Diante desses sinais ou desconfiança, é ainda mais importante investir na conexão: abertura ao diálogo, demonstrando que há um espaço seguro para que ele(a) possa manifestar seus sentimentos, medos e dúvidas, evitar julgamentos ou juízos de valor e sermões. Antes de qualquer coisa, oferecer uma escuta atenta e aberta. Quando seu filho(a) se sentir pronto(a), saberá que encontrará em você alguém com quem pode contar e se abrir.
Existem atitudes dos pais, em especial durante a infância dos filhos, que reforçam estereótipos de gênero e até mesmo a homofobia. Acredito que o primeiro passo seja se perceber como reprodutor dessas situações e agir de forma a evitá-las. Para além disso, o que os pais podem fazer para impedir que a criança reverbere tais ideias?
Algo simples que pode ser feito desde a infância é evitar os estereótipos de gênero, como classificar brinquedos e cores como de menino ou menina. Naturalizar que ambos os sexos podem se vestir com qualquer cor e permitir que meninos brinquem de boneca e meninas de carrinho, por exemplo. Em algum momento da socialização, eles podem trazer essa diferenciação para casa e vale reforçar que ambos os sexos podem brincar e se vestir como desejarem.
Outra ideia interessante é apresentar o tema através da literatura. Os livros são excelentes recursos para a educação de filhos nos mais variados temas. Alguns títulos: A princesa e a costureira; Cachinhos de urso; Três mocinhas elegantes. O convívio com famílias e amigos LGBTQIA+ também contribui para a formação social dos pequenos e a naturalização da diversidade.
Mas, sem dúvida, a autoeducação dos pais é um pilar fundamental para impedirmos a reprodução do preconceito. Como pais, precisamos estar atentos, estudar e nos observar porque o exemplo é a principal ferramenta de educação dos filhos. Somos o primeiro referencial deles.
Quais os principais perigos de não haver essa autoeducação dos pais?
O principal é a reprodução de estereótipos e preconceitos que já vêm sendo propagados há várias gerações. Quando buscamos olhar para as nossas crenças com senso crítico, temos a oportunidade de repensar os valores que desejamos passar para os nossos filhos. Acredito que podemos deixar filhos melhores para o mundo, mas isso não é possível sem olharmos para nós mesmos.
Como a família deve orientar crianças e adolescentes que sofrem preconceito em outros ambientes, como a escola?
O primeiro passo é estabelecer um bom vínculo para que a criança ou adolescente se sinta seguro em compartilhar com os pais o que vem enfrentando e possa expressar não só os fatos e ofensas, mas também como se sente em relação a eles. Depois é importante dar ferramentas: encorajar a criança a verbalizar como se sente e que deseja ser respeitada, orientá-la a buscar ajuda de um adulto ou profissional caso não consiga lidar com a situação sozinha e reforçar que violência e novas ofensas não resolverão o problema. Os pais podem, ainda, buscar a direção da escola para entender melhor o que está acontecendo ou informá-la, caso não tenha conhecimento, e buscarem soluções em conjunto. As escolas podem promover programas e projetos de prevenção ao bullying, de modo a orientar pais, professores e alunos.
Existem meios para desconstruir preconceitos da parte dos pais com os filhos adultos?
Toda relação pode ser reconstruída. Para isso, é necessário estar aberto a se despir dos preconceitos e olhar para a essência do seu filho (a). Como fazer isso é um caminho muito individual. Pode ser através do estudo e busca por informação, abertura a ouvir o filho (a) ou até terapia.