Nos dias de hoje, é preciso muito cuidado; viver ficou perigoso. A praga de Orwell não se limita mais à casa dos big brothers na tevê, mas a cada um de nós, o tempo todo, em todo lugar — agora mesmo, repare bem, você deve estar sendo filmado, fotografado ou vigiado. A função que antigamente era das candinhas, que ficavam nas janelas de olho em tudo, agora parece ser de todos. É o mundo de Caras, escancarado.
Cada telefone celular é uma arma fumegante. Outro dia um amigo tomou um pifão, uma carraspana épica, de esvaziar barril, daquelas de rolar no chão. Não brigou nem mexeu com a mulher dos outros, não ofendeu nada, além dos tímpanos próximos, na sua alegria por mais uma vitória do galo. Um impiedoso, à guisa de eternizar aquele momento de intensa alegria que pressagia uma monumental ressaca, filmou tudo.
Foi parar nas redes sociais.
Nada justifica uma violência ou uma ofensa, mas tudo hoje parece ser uma coisa ou outra, mesmo entre velhos camaradas. Não faz muito tempo, um conhecido se encontrou com um antigo camarada de farras e gritou, abrindo os braços: "Ô, sua bicha!" (não foi bem assim, mas esse é um jornal respeitador). Teve que enfrentar olhares reprovadores e ainda ouviu o comentário de uma senhora. "Que preconceito!"
Essa mania de um ficar cuidando da vida do outro ultrapassa em muito aquele velho ensinamento que diz que a liberdade de cada um acaba quando começa a do próximo. Parece ser mesmo só o prazer de censurar, de se colocar num nível superior.
Na adolescência de outros dias, briga na porta de colégio era praticamente uma tradição. "Te espero lá fora", era o desafio. "Cospe aqui se você for homem", selavam os valentões. E o pau comia no meio de uma roda de estudantes que gritava palavras de ordem (ou desordem, no caso) até a chegada de algum bedel para pôr ordem na zoeira. Hoje, briga de colégio vira matéria de jornal na tevê...
Também não se pode mais apelidar ninguém. Vira até caso de polícia, como na história do rapaz que chamou o colega de bolacha e virou Boletim de Ocorrência. Alguns anos atrás, os apelidos eram, aqueles sim, ofensivos; e o máximo que acontecia era um encher a cara do outro de bolacha. Sem polícia.
O vocabulário politicamente correto em voga hoje pede, mais do que delicadeza, inteligência. O mesmo amigo da carraspana, que quando está sóbrio é um gaiato, foi levar o filho ao barbeiro num dos mais tradicionais salões da Asa Sul. Calvo desde muito novo, cheio de marra, chegou falando alto e fazendo festa para desconhecidos. Ainda da calçada, gritou em direção ao salão lotado:
— E aí, autoridade, fez curso no Senac? Quanto é o cabelo?"
Certamente ele não contava com o tirocínio do barbeiro que parou o corte, olhou para o chão e apontou para os tufos de cabelo, dizendo:
— Para você, que está tão necessitado, não é nada. Pode pegar à vontade.