Não é novidade que os animais são eficazes em inúmeras atividades realizadas por humanos, seja contribuindo para a economia, na produção de alimentos, como leite e mel, seja para suprir necessidades do tutor, como faz o cão-guia. Mas, para além disso, há aqueles que amparam pessoas com transtornos psiquiátricos, nas chamadas intervenções assistidas por animais, que têm sido utilizadas como complemento a tratamentos convencionais.
E engana-se quem pensa que se trata de um método recente — a psiquiatra brasileira Nise da Silveira já incluía cães e gatos nas terapias com pacientes esquizofrênicos. É preciso atenção, entretanto, às terminologias, já que os pets podem cumprir essas funções tanto para um grupo, como ocorre na Fazendinha Interação, quanto a uma pessoa específica, como relata a professora Isadora Laguna.
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Veja, nesta reportagem, histórias de pessoas que mudaram de vida ao incluir os animais em suas rotinas, provando que, além de companheiros, eles podem ser aliados diretos na promoção de saúde mental.
Entre cães, ovelhas, galinhas e coelhos
O jovem Arthur Quaresma, 12 anos, acorda todos os dias animado para brincar com a golden retriever Aba, da Fazendinha Interação, sua companheira fiel. "Bom dia? Nada disso, a primeira palavra dele pela manhã é Aba", ressalta a mãe, Ana Cláudia Quaresma, técnica em saúde bucal. O pré-adolescente, que é autista, teve uma melhora significativa em sua condição quando passou a conviver mais frequentemente com os animais da instituição. Se antes agia com hostilidade a frustrações, hoje se mostra mais calmo e aberto ao tratamento.
O diagnóstico veio aos 3 anos de idade e, desde 2020, ele é acompanhado pelo grupo Interação. A relação com os bichos foi tão positiva que Ana Cláudia até adotou uma cachorrinha para lhe fazer companhia em casa, tanto que, quando Arthur entra em crise, o que o acalma é brincar com a peluda. Entre os outros benefícios relatados estão a comunicação mais eficaz e a maior organização dos afazeres.
Para a pequena Sofia Dias, 4 anos, o contato com a natureza e os animais também é proveitoso. Ela se comunica de forma assertiva, reconhece as emoções e está em estimulação para aumentar o repertório desta expressão e de suas opiniões. Além disso, realiza a sequência lógica de fatos, necessitando apenas de estimulação para o uso de conectivos.
"Estamos trabalhando a noção temporal dos dias da semana e a ampliação do repertório de tolerância a frustração e tempo de espera. Trabalhamos, especialmente, com reforçadores sociais", explica a fonoaudióloga e coordenadora técnica geral Luana Borges. A profissional lembra que, em casos assim, os sons que os animais produzem (figura de linguagem conhecida como onomatopeia) estimulam a fala das crianças.
Lívia Fernandes, terapeuta ocupacional, especialista em autismo e uma das diretoras do grupo Interação, conta que a Fazendinha foi idealizada com a finalidade de apresentar mais elementos naturais às crianças e ser um plus no tratamento convencional em clínicas. O próprio contato com outras crianças já mostra resultados positivos, para além daqueles adquiridos em terapias individuais.
Vale lembrar que os pequenos que frequentam a instituição não abandonaram os demais tratamentos. Trata-se de um complemento. O contato com os animais e a natureza é facilitador do processo de linguagem, é antiestressante, acalma crises, promove leveza, aumenta a afetividade e proporciona o senso de cuidado; faz com que as crianças se sintam mais à vontade.
"Vemos muitos pais dizendo que vão adotar um cachorro para que o amor que o filho recebe aqui esteja presente em casa também", complementa Lívia. No cotidiano, por exemplo, os pequenos precisam lembrar de dar a comida do cão no horário correto, permitindo exercer o senso de responsabilidade. O grupo Interação é, há 10 anos, referência no tratamento de crianças com autismo e tem ampliado seu trabalho para outros estados.
Tudo é bem pensado
Cada parte da Fazendinha cumpre determinada função no tratamento das crianças. Para aquelas que apresentam desordens sensoriais, por exemplo, é possível promover a estimulação apresentando texturas diferentes nos pelos das ovelhas, desde a mais áspera até a mais fofa. Já com os patos filhotes, trabalha-se a noção de cuidado. Há quem só aceite a terapia por conta do contato com os bichos.
Diego Lima, adestrador e terapeuta da instituição, explica que, apesar de existirem raças específicas predominantes em algumas funções, esta não é uma questão determinante. O que faz diferença, na verdade, é iniciar o treinamento nos primeiros meses de vida dos animais e levantar o temperamento dos seus pais. "Os cães devem ser previsíveis, já que nem sempre as crianças serão. De toda forma, é preciso que nesta relação haja algo motivador para o pet; ele precisa ser recompensado de alguma maneira, com petiscos, carinhos ou brincadeiras", pontua.
Para os pequenos, há um reforçador social na reciprocidade dos animais, fato que os estimula a buscar mais pelos pets. O olhar no olho, dar comandos, seguir regras e ter organização em um ambiente social mais movimentado são alguns ganhos dessa relação, segundo o psicólogo clínico infantil, especialista em autismo e coordenador técnico da Fazendinha, Genilson Barbosa. Para os animais, há o sentimento de acolhimento. "Animais mudam a vida de uma criança, principalmente uma com autismo", conclui Ana Claúdia Quaresma.
Amizade que ajuda a curar
Foi em uma consulta ao veterinário que o professor aposentado e advogado Walter Isaac considerou tornar o malamute Thor em um cão de suporte emocional e coterapeuta. Bastante dócil, foi indicado pela profissional, que avaliou seu comportamento, e o considerou ideal para o trabalho. Proposta aceita, o tutor precisou também de uma avaliação psiquiátrica, que foi positiva. Pronto, estava tudo certo para o cão atuar em Terapias Assistidas por Animais, tornando-se o primeiro animal para TAA certificado de Brasília.
Thor já atuou no Hospital Materno Infantil de Brasília, em uma UTI pediátrica, e foi indicado para o CRISDOWN (Centro de Referência de Crianças com Síndrome de Down), no Hospital Regional da Asa Norte. Na primeira experiência, ocorrida no Natal, as crianças internadas puderam brincar e acariciar o cão, apresentando melhoras em seu humor. O peludo, aliás, tem acesso a praticamente todos os locais públicos.
A experiência mais emocionante para Walter, entretanto, ocorreu na relação de Thor com uma criança autista. "Um pai confessou, com tristeza, que há dois anos tentava fazer com que a filha o olhasse nos olhos. Pedi, a partir do comando 'cuida', que Thor se colocasse à frente da pequena, que conseguiu vê-lo. Quando o pai foi para o lado do cão, a menina, finalmente, o olhou com profundidade. Ficamos, os dois, em lágrimas", relembra.
Para o tutor, há algo positivo também no cuidado de pessoas com depressão, ansiedade ou estresse. "Quando eu mesmo estou ansioso, ele já fica ao meu lado. Os cães percebem muita coisa no nosso emocional e é fantástico quando conseguimos ver essas possibilidades", completa. Inicialmente, não havia o objetivo de transformar Thor em um animal de suporte emocional, mas, com tantos ganhos pessoais e gerais, a satisfação não poderia ser maior.
Quanto ao treinamento, o professor explica que não existe preparação específica, mas, sim, comandos que serão úteis em tal atuação. A capacitação é para que o cachorro seja a própria terapia. Para realizar essas atividades, é preciso que o tutor esteja com a indicação médica em mãos, enquanto o cão deve estar sinalizado, com uma bandana ou um peitoral, que indique sua funcionalidade.
O peludo foi homenageado, em 2019, pela Secretaria de Justiça e Cidadania, no Palácio do Buriti, durante o encerramento da Campanha Setembro Amarelo de Prevenção ao Suicídio de Crianças e Adolescentes. Todo o trabalho de Thor e Walter é voluntário e as pessoas que quiserem saber mais sobre suas ações podem entrar em contato pelo Instagram (@lordthorbsb).
Uma via de mão dupla
Para a bióloga e mestre em psicologia social Sofia Bethlem, os animais domésticos, no geral, atuam de forma muito positiva no estado emocional dos humanos. O próprio toque do carinho tem poder calmante, no qual a respiração se torna mais controlada e há distração das preocupações.
Ademais, não necessariamente um cão agitado não pode ser utilizado em terapias. Há, por exemplo, pessoas que precisam gastar energia e fazer exercícios; nesses casos, pode ser interessante adotar um pet mais ativo. A ideia é sempre atentar-se à finalidade da pessoa que receberá esse tipo de terapia. "Não podemos simplesmente pegar um animal, incluí-lo em qualquer ambiente e achar que o trabalho terapêutico será eficiente. É preciso avaliar as necessidades e prever os efeitos dessa relação", pondera.
Em concordância, a médica veterinária comportamentalista e adestradora Nayara Brea, esclarece que se o cão de suporte emocional não for selecionado e treinado para a função de apoiar o assistido em diversos contextos e situações, certamente não haverá benefícios para ele. É necessário que os profissionais de saúde, ao indicarem um cão para esta função, sugiram também um profissional de comportamento canino para a seleção e o treinamento do pet.
Pensando nisso, a veterinária, que também atua em atendimentos comportamentais e intervenção assistida por cães há cinco anos, idealizou o Entre Animais, que visa melhorar a relação interespécie (humanos e animais) e intraespécie (indivíduos da mesma espécie). O trabalho se dá por consultas comportamentais para cães e gatos com problemas de comportamento e também para intervenções assistidas por cães.
E quanto aos gatos? Nayara explica que, do ponto de vista comportamental, os felinos são uma espécie semi social, de domesticação recente, quando comparados aos cães. Alguns gostam de interações frequentes com seres humanos, mas de forma não intrusiva e de curta duração. Então, essa relação é benéfica, desde que seja respeitada a natureza da espécie felina e a individualidade de cada gato. Adestrando-os, é possível que também possam exercer suporte emocional, sobretudo no contexto domiciliar.
"Vale lembrar que nem todos os cães gostam de contato físico com o ser humano por muito tempo e nem conseguem estabelecer uma conexão/vínculo rápido. Por isso, nem todos conseguem exercer a função de suporte emocional", reforça a adestradora. De toda maneira, a relação especial dos cães com os humanos independe dessa função e vem sendo amplamente estudada, demonstrando ser benéfica para a espécie canina com a produção de hormônios relacionados ao bem-estar e a ativação de áreas cerebrais importantes.
As categorias de interação com animais
As intervenções assistidas por animais, especificamente por cães, podem ser classificadas da seguinte forma:
- Cão coterapeuta: promove apoio físico, emocional e/ou psicológico a várias pessoas. Depende de um treinamento básico ou avançado;
- Cão de assistência: promove apoio físico, emocional e/ou psicológico a uma pessoa em específico. Depende de um treinamento avançado;
- Cão de suporte emocional: o apoio emocional é direcionado a uma pessoa especificamente e é necessário que um psiquiatra ateste a necessidade de ter o animal.
Fonte: Handbook on animal assisted therapy, Fine, H. A. Com adaptações EntreAnimais.
Laço mais que especial
A gaúcha Isadora Laguna sempre teve a presença de cachorros em sua vida, mas, quando se mudou para Brasília, precisou de um tempo para se adaptar e a ideia de adotar um peludo acabou adiada. No início de 2020, resolveu, com o marido, incluir Alfie em suas vidas — decisão que não estava atrelada a uma questão de saúde mental. O amigo de quatro patas viria de toda maneira.
Com o avanço da pandemia, a professora sentiu que seria importante retornar à terapia, devido às fortes crises de ansiedade, que há tempos haviam sido diagnosticadas por uma psiquiatra. Em consultas, a médica identificou que o cão cumpria um papel bastante importante na vida da jovem e sugeriu que ele se tornasse seu cão de suporte emocional.
Até os três meses de Alfie, Isadora teve a tarefa de treiná-lo com comandos básicos — sentar, esperar, dar a patinha. Depois desse período, o auxílio do peludo foi tirá-la de casa, já que estava bastante isolada, também, pelo medo imenso de se expor ao vírus. Como o cão naturalmente precisava passear, essa foi uma atividade que a incentivou a ir para a rua e se movimentar, prática essencial para quem está se recuperando de problemas emocionais.
Além disso, estabelecer uma rotina com o cachorro foi muito positivo no tratamento do transtorno misto ansioso e depressivo. "Por mim, eu precisava fazer isso por ele. Mas, no fim, foi muito positivo para mim também. A gente tem a ideia do cachorro de suporte emocional como aqueles de serviço, como os cães-guia, mas, na verdade, não se exige dele um treinamento específico. Ele precisa ter facilidade de socializar, além de responder ao dono", explica.
Com o tempo, a professora começou a ensiná-lo a responder às suas crises. Quando ela chorava, por exemplo, ele se mostrava presente e ficava ao lado dela. Caso não conseguisse tirá-la dessa situação, Alfie recorria ao marido de Isadora, como forma de alertá-lo para o problema. Ela frisa, entretanto, que esse treinamento foi o que fez sentido para a família na época; cada cão responderá de uma forma, a depender do tutor e da situação.
"Graças a ele, eu consegui socializar, criar laços de amizade, sair de casa, para levá-lo ao parque", conta. Hoje, com sua tutora bem melhor, Alfie não tem mais essa carga de responsabilidade. "Ele é o cachorro feliz que tem que ser, sabendo que cumpriu um papel tão importante para nossa família. Cada cão que passa na nossa vida é muito especial, mas quando a gente cria essa relação é algo muito especial."
Meu amigo cavalo
Alem dos cães, os cavalos podem exercer papéis importantes no tratamento de transtornos mentais. Quem confirma isso é Amanda Pedra, fonoaudióloga e vice-coordenadora do projeto Comunicar com Equoterapia. A ideia surgiu a partir da hipótese de que as crianças autistas que praticavam equoterapia tinham uma melhora na comunicação e na linguagem. Como existem poucos estudos nacionais e internacionais sobre o assunto, foi ela quem deu o pontapé de desenvolver essa pesquisa. A iniciativa é ancorada no Programa de Intervenção para Distúrbios de Linguagem com o apoio de cavalos, do qual também é coautora.
O público abarca crianças com autismo de 2 até 10 anos de idade, período crítico no desenvolvimento da linguagem. Neste contexto, a equoterapia funciona com o agente principal, que é o cavalo, o mediador, pessoa que estará ao lado do cavalo e o terapeuta principal. Há, ainda, o lateral, que vai do outro lado do cavalo, e o praticante, criança que atua na atividade. O ambiente é enriquecedor, por ser ao ar livre e com muito verde. "Com o céu aberto, a gente monta a criança no cavalo e faz a terapia na maior parte do tempo andando mesmo, com os terapeutas ao lado", pontua.
Há também os trabalhos de solo, em que a criança pode dar banho e comida ao animal. Hoje, o projeto está presente em cinco localidades, além do Distrito Federal: Tocantins, Rio Grande do Norte, Alagoas e São Paulo. Em cada estado, os pequenos fizeram 24 sessões de equoterapia, sendo avaliados antes, no meio e agora, no final. Entre os resultados, percebeu-se um aumento no número de palavras e no de palavras por frase. O protocolo padronizado dessas sessões, cada uma com atividades pré-definidas, se transformará em um livro, disponibilizado posteriormente a outros centros.
Conforme ressalta Amanda, a relação entre humano e cavalo afeta também o comportamento, modificando a percepção de mundo e de si mesmo por meio da interação. Isso se dá devido ao movimento rítmico do animal, que desenvolve e ativa áreas cerebrais essenciais para obter-se uma comunicação efetiva.
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*Estagiária sob a supervisão de Sibele Negromonte