Maria Carmem Oliveira Gomes, a baiana de Juazeiro que citei lá no início da reportagem, tem 62 anos. Diz que marcou um encontro consigo mesma e precisava honrar seu compromisso. Tem marido e dois filhos. O marido disse: "Não seria melhor gastar esse dinheiro tomando vinho verde em Lisboa? Ela disse: 'O caminho é meu. O erro será meu também'" (veja vídeo).
Veio sozinha. Ela fala todos os dias com as duas irmãs, que tiram onda com o fato de Maria Carmem está indo todo dia à missa: "Aqui tu nunca ía, que milagre é esse?" E ela responde: "No caminho, as coisas ganham uma simbologia maior. Os sinos das igrejas dobram como se anunciassem nossa chegada", justifica.
Isolada na pandemia, assistindo a séries e mais séries, diz que "agora veio ouvir sua própria voz". Já tinha experimentado Machu Pichu e tem, nos planos, o Deserto do Atacama como próxima escala com destino ao autoconhecimento.
Aos poucos, ela vai traçando um paralelo do caminho com a própria vida. "No começo, eu vinha caminhando e tinha muito sentimento. Depois, ficou registrada para mim a palavra 'autocuidado', como precisamos ser cuidado conosco."
Subindo a ladeira de Las Brujas, Maria Carmen pensava em autoperdão. "O caminho é todo metafórico. Tudo é transitório e atemporal. O caminho muda o tempo todo. E você precisa saber que é um ser humano em mudança. A palavra flexibilidade vem e é necessária para quem deseja ser mais espiritualizado, se tornar um ser de luz, administrar as próprias sombras, mas ser luz. Isso é o que o caminho está me trazendo", relata.
Há um outro exercício no caminho: o desapego. Sobre ele, a baiana se lembra que perdeu uma das sandálias japonesas (Havaianas) numa ponte em Vilarinho e largou a outra na estrada. Não foi uma decisão fácil: "Nunca fiquei sem sandálias na vida. Podia faltar tudo em viagens, menos meu par de japonesa".
Com o passar dos dias, ela foi abandonando as calcinhas usadas. A mochila ficou do tamanho exato do que pretendia carregar. Ela tem um jeito próprio de vivenciar as experiências de Santiago: faz reflexões diárias e define dois temas para análises mais profundas, como autoperdão e autorreconhecimento: "A gente precisa reforçar nossa luz".
Sozinhos ou em grupos
Os peregrinos que viajam sozinhos ou em grupo atestam que os percursos são seguros e muito sossegados. "Aqui, como no Caminho Francês, não há motivo para medo", garante Hugo Prado. Andasse muitos quilômetros sem avistar ninguém. João Mário, 53 anos, viu tanto homens quanto mulheres sozinhos nas rotas, nos albergues e nos cafés. Depois da primeira semana no Caminho, a ciclista Tatiana Lira se sente segura para encarar a próxima viagem a pé e sem as sete amigas, que vieram do Porto a Compostela de bicicleta. "Vou convencer a minha mãe a vir sozinha também". Ela acha que aos 70 não tem mais fôlego. Eu garanto que ela vai conseguir.
O exercício do desapego
Em direção à luz, eu, Marta e Carlinda também vamos ficando mais leves. Sabíamos o que levar depois de lermos até a exaustão sobre o Caminho, mas erramos, mesmo trazendo pouca roupa — quatro camisetas, três calças de caminhada, uma bota e uma papete, além de capa/poncho para chuva, meias e um casaco.
Mesmo com pouco, descobrimos aqui que a mochila estava cheia demais para carregar. No meio do caminho, fomos largando o que não era primordial e ficamos com o essencial. E, por fim, em função da chuva e de vontade, utilizamos, em alguns trechos, o transporte de mochila.
É libertador não levar pesos ou descobrir o que pesa literalmente nas suas coisas, o que deve ser deixado para trás. Não há melhor lugar e tempo do que o Caminho de Santiago para descobrir o que você precisa carregar nessa vida.
O caminho até Santiago é uma longa travessia a vencer. Você convive com muitas dores e sensações físicas de exaustão, frio, calor, cansaço. Mas as surpresas são inevitáveis chegam com a sensação de recompensa. Sim, há muito prazer envolvido.
Os amigos Cristina e Francisco fazem o caminho conversando animadamente. Ela, uma suíça de 72 anos e ele, um uruguaio de 76. Ficamos no mesmo albergue e cruzamos pelo caminho algumas vezes. Ninguém parecia se entender melhor do que eles.
Coincidência ou não, a maioria dos peregrinos que encontramos pelo caminho estava com a viagem represada desde a pandemia. Nós, minhas amigas e eu, já tínhamos comprado passagem, reservado alguns hotéis e comprado alguns itens do enxoval (veja quadro).
Nunca havia feito a viagem antes, apenas sabia que, em 2021, seria o Ano Jubilar Compostelano — também conhecido como Jubileu ou Ano Santo. Denomina-se Ano Santo Jubilar Compostelano ou Ano Santo Jacobeu aquele no qual o dia 25 de julho — quando se celebra o martírio de Santiago Apóstolo — acontece em um domingo.
Isso ocorre com a regularidade de 6, 5, 6 e 11 anos (exceto quando o último ano do século não é bissexto e pode haver intervalos de 7 ou 12 anos). Deste modo, a cada século, se celebram 14 Anos Santos Jacobeus.
Nesses anos, a Igreja Católica concede aos peregrinos que chegam à Catedral de Santiago de Compostela, na Espanha — por qualquer meio e desde qualquer lugar — as mesmas graças espirituais asseguradas no Jubileu do Ano Santo, tradição da Igreja Católica, que ocorre regularmente a cada 25 anos.
A graça espiritual assegurada aos peregrinos que chegam à Catedral de Santiago de Compostela nos Anos Santos Jubilares Compostelanos é a Indulgência Plenária — ou total — o que significa, em um sentido amplo, a remissão de qualquer penitência anteriormente imposta. O Ano Jubileu seria comemorado em 2021 e foi estendido para 2022 em razão da covid-19.
A data concede uma certa aura especial ao Caminho. Mas é fato que, em qualquer ocasião, essa travessia faz por nós o que a rotina atribulada do dia a dia não faz. Acredito que a graça de estar consigo é alcançada a qualquer momento, desde que a gente se permita fazer e viver o Caminho com a intensidade que ele merece.
Enquanto você lê esta matéria, ainda temos um bocadinho de chão pela frente. Mas o peso que já ficou para trás valeu cada passo. Dou notícias de Compostela.
enxoval
Devemos selecionar o material essencial e com o mínimo peso possível e lembrar que, para todos os acessórios, encontraremos lojas e farmácias pelo caminho.
Essencial
Mochila: entre 30 e 45 litros de capacidade, anatômica e
ajustável em altura.
Saco de dormir: ultraleve e compacto; essencial se vamos dormir em albergues.
Cantina: a típica garrafa de montanha, ou uma garrafa
de plástico rígido de pelo
menos um litro.
Bastões ou cajado: para marcar o ritmo e ter mais um ponto de apoio nos altos e baixos.
Calçados: calçado de caminhada de cano baixo ou médio, o mais leve, confortável e adaptado. Para tomar banho e caminhar: chinelos, crocs ou similares, confortáveis e de secagem rápida.
Roupas: camisetas; uma ou duas camisas técnicas para caminhadas (no verão, uma pode ser suficiente). Outra camiseta, camisa ou similar para descanso. Calça: uma para caminhar e outra para descansar; longo, curto ou modular, dependendo do tempo.
Roupa íntima: duas mudas; confortável para evitar atrito;
roupa interior de corrida
é uma boa opção.
Meias sem algodão. dois pares,
três no máximo; sem costuras.
Chapéu ou boné com viseira:
para o frio e o vento.
Poncho ou capa leve: seja verão, seja inverno, que cubra a mochila,
e um casaco leve.
Chapéu e cachecol ou luvas finas semelhantes.
Roupa impermeável.
Guarda-chuva (opcional):
pequeno e leve.
Veja as informações completas no site: Gronze.com
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