O Caminho de Santiago não é apenas um caminho. Há percursos diferentes para se chegar a Santiago de Compostela. Há também intenções, objetivos, motivos diferentes para vencer quase uma meia maratona por dia sem ser atleta. Mas, ao final, a conquista é um sentimento compartilhado: o de uma graça alcançada.
Santiago de Compostela é a capital da região da Galícia, no noroeste da Espanha, ponto final das rotas de peregrinos que saem de lugares diferentes para chegar ao local do suposto sepultamento do apóstolo São Tiago, cujos restos mortais — dizem — estão na Catedral de Santiago de Compostela.
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Embarquei rumo a Santiago de Compostela há muitos anos, quando, numa outra viagem, uma peregrinação na Itália, prometi a mim mesma que faria o caminho. Foi daquelas cartas de intenções que mantemos guardadas para quando o coração achar que é o momento de abrir. O plano seguiu comigo e o chamado foi ficando mais forte ano a ano. A pandemia foi traiçoeira e adiou meus planos. Não só os meus.
A empresária baiana e socióloga Maria Carmem Oliveira Gomes, de 62 anos, também deveria ter vindo em 2020 e não embarcou por conta do coronavírus. Agora, está por aqui: "A pandemia interrompeu nossos sonhos. Mas era um encontro inadiável comigo e não poderia faltar", diz.
Também não pude faltar. No dia 9 de maio, embarquei em Brasília com destino a Portugal, para fazer um dos trajetos mais conhecidos: o Caminho Português Central, que passa por Porto, Vilarinho, Barcelos, Ponte de Lima, Valença, Tui, Pontevedra y Padrón. São mais de 240km de jornada até Santiago.
Utilizado desde a Idade Média, é o segundo caminho em número de peregrinos, apenas superado pelo Caminho Francês. Um peregrino goiano chamado Tom Jorge, que encontrei pelas estradas, chama este de caminho "Nutella", por ser, teoricamente, mais fácil que os demais.
Aos 51 anos, funcionário do Judiciário e pai de uma filha, ele faz o trajeto com os amigos Onofre, também de Goiânia, e Hugo, de São Paulo. Antes dessa rota, Tom já fez o caminho "raiz", mais procurado e também difícil, em 2018, quando seu casamento teve um ponto final. É o percurso de Saint Pied de Port, na França, até Compostela.
Há ainda o Caminho da Costa, que também parte de Portugal, além de muitos outros trajetos do caminho, considerado Patrimônio Cultural da Humanidade. Peregrinos de todo o mundo fazem as rotas, seja a pé, de bicicleta ou a cavalo. Na verdade, a grande graça é cada um vencer o percurso (com variações, a depender da escolha) da forma como quiser — no seu tempo.
Independentemente da rota e do meio, todas levam a Santiago e todas guardam consigo a experiência de vencer longas distâncias — as físicas e as imaginárias. Um desejo de autoconhecimento e talvez de expurgo dos pesos acumulados ao longo da vida, combinado a um certo ímpeto pela aventura: esse é o convite.
É preciso, sim, um pouco de coragem também para vencer tantos quilômetros, cansaço, intempéries, medos. Quando começo a escrever essas linhas para compartilhar um pouco da minha travessia, acabo de passar a fronteira entre Portugal e Espanha. A Galícia nos recebeu com uma bela tarde de sol, depois de dois dias intensos de chuvas, inclusive na subida da montanha Las Brujas, área temida pelos peregrinos "Nutella" feito eu.
Las Brujas é deslumbrante e de difícil acesso, com grau de dificuldade 1 pelo site Gronze, espécie de oráculo virtual para os que desejam se aventurar na travessia. Se você a vence ileso, já se sente um pouco mais confiante para cumprir o resto da caminhada.
Linguagem universal
Ponchos molhados, chão escorregadio em diversos trechos, média diária de 21km. A cada passo, uma experiência diferente, que pode ser sentida no corpo e na alma. Aqui e ali, peregrinos trocam histórias, sensações, impressões e há disposição para ajuda mútua. Numa língua universal, todos se saúdam com a expressão "bom caminho" ou "bueno caminho".
A receptividade do povo dos albergues, hotéis, restaurantes, bares, trabalhadores rurais se estende para moradores das regiões, que falam com a alegria "bom caminho" para os peregrinos. A jovem Jessica, de 21 anos, a avó e a mãe decidiram se juntar para abrir um café na aprazível Vilarinho. "A gente pensou em esperar um pouco para abrir o negócio, mas não podíamos esperar a primavera. Que seja próspero nosso lugar de acolhimento."
Por sinal, a palavra acolhimento se aplica bem a português e espanhol. Todos os que fazem ou trabalham no caminho se sentem de fato acolhidos. E a primavera mostra sua graça pelo trajeto. Se o colorido e o deslumbre da estação abre portas e risos na Europa, no caminho, ela escancara.
A variedade de flores, a diversidade da vegetação transformam este período no momento ideal da escolha de 10 em cada nove peregrinos. Pegamos, eu e as amigas que me acompanham, Marta Maria Costa e Carlinda Maria Oliveira, os 10% de chuva que cai na Galícia em maio, mas isso é acerto do destino para quem tem pinimba com chuva e precisava se libertar disso. Ou seja: a intensa chuva desta semana foi um batismo dos céus para mim.
Se não há tempo ruim, também não há idade ruim para encarar o trajeto até Santiago, como também não há para se fazer nenhuma viagem interior. Por aqui, se vê muitos jovens de mais 25 anos e a maioria acima de 40 anos. Muitos idosos com mais de 70, dotados de corpos e disposição melhores do que nós e do que muitos jovens.
Os símbolos
- Setas da vida
As setas amarelas criadas por um padre para orientar os peregrinos talvez seja o símbolo mais marcante e autêntico do caminho. Pintadas em muros, postes, bancos, árvores, bancos e janelas, elas servem não apenas para indicar o rumo certo. Passam uma ideia de sequência de vida, de novo ciclo, de persistência em momentos de cansaço. Faz-me lembrar um daqueles jogos de videogame na busca incessante por vidas. Criada pelo padre d'O Cebreiro, as setas são o ícone internacional e estão estampadas em camisetas, cadernos, meias, figurinhas de internet.
- A Vieira (ou concha)
O mais antigo e importante simbolo é a concha. Existem muitas lendas e explicações que dão significado a ela. Muitos peregrinos já começam com a concha pendurada na mochila, como um trunfo, uma espécie de distintivo que o identificam como parte de uma confraria. A ela é atribuída razões de ordem prática, simbólica e metafórica. Dizem que, na Idade Média, elas eram utilizadas para tomar água nas fontes do Caminho e como "prato" no momento das refeições. Além disso, naquela época, não existia Compostela, por isso os peregrinos levavam uma concha pra casa e, assim, comprovavam que tinham chegado até o túmulo do apóstolo.
- Compostela
Diploma máximo para aqueles que percorrem o caminho e preenchem o passaporte, carimbados a posto vencido: passagens por hotéis, cafés e outros estabelecimentos.
Uma metáfora da vida
Maria Carmem Oliveira Gomes, a baiana de Juazeiro que citei lá no início da reportagem, tem 62 anos. Diz que marcou um encontro consigo mesma e precisava honrar seu compromisso. Tem marido e dois filhos. O marido disse: "Não seria melhor gastar esse dinheiro tomando vinho verde em Lisboa? Ela disse: 'O caminho é meu. O erro será meu também'".
Veio sozinha. Ela fala todos os dias com as duas irmãs, que tiram onda com o fato de Maria Carmem está indo todo dia à missa: "Aqui tu nunca ía, que milagre é esse?" E ela responde: "No caminho, as coisas ganham uma simbologia maior. Os sinos das igrejas dobram como se anunciassem nossa chegada", justifica.
Isolada na pandemia, assistindo a séries e mais séries, diz que "agora veio ouvir sua própria voz". Já tinha experimentado Machu Pichu e tem, nos planos, o Deserto do Atacama como próxima escala com destino ao autoconhecimento.
Aos poucos, ela vai traçando um paralelo do caminho com a própria vida. "No começo, eu vinha caminhando e tinha muito sentimento. Depois, ficou registrada para mim a palavra 'autocuidado', como precisamos ser cuidado conosco."
Subindo a ladeira de Las Brujas, Maria Carmen pensava em autoperdão. "O caminho é todo metafórico. Tudo é transitório e atemporal. O caminho muda o tempo todo. E você precisa saber que é um ser humano em mudança. A palavra flexibilidade vem e é necessária para quem deseja ser mais espiritualizado, se tornar um ser de luz, administrar as próprias sombras, mas ser luz. Isso é o que o caminho está me trazendo", relata.
Há um outro exercício no caminho: o desapego. Sobre ele, a baiana se lembra que perdeu uma das sandálias japonesas (Havaianas) numa ponte em Vilarinho e largou a outra na estrada. Não foi uma decisão fácil: "Nunca fiquei sem sandálias na vida. Podia faltar tudo em viagens, menos meu par de japonesa".
Com o passar dos dias, ela foi abandonando as calcinhas usadas. A mochila ficou do tamanho exato do que pretendia carregar. Ela tem um jeito próprio de vivenciar as experiências de Santiago: faz reflexões diárias e define dois temas para análises mais profundas, como autoperdão e autorreconhecimento: "A gente precisa reforçar nossa luz".
Sozinhos ou em grupos
Os peregrinos que viajam sozinhos ou em grupo atestam que os percursos são seguros e muito sossegados. "Aqui, como no Caminho Francês, não há motivo para medo", garante Hugo Prado. Andasse muitos quilômetros sem avistar ninguém. João Mário, 53 anos, viu tanto homens quanto mulheres sozinhos nas rotas, nos albergues e nos cafés. Depois da primeira semana no Caminho, a ciclista Tatiana Lira se sente segura para encarar a próxima viagem a pé e sem as sete amigas, que vieram do Porto a Compostela de bicicleta. "Vou convencer a minha mãe a vir sozinha também". Ela acha que aos 70 não tem mais fôlego. Eu garanto que ela vai conseguir.
O exercício do desapego
Em direção à luz, eu, Marta e Carlinda também vamos ficando mais leves. Sabíamos o que levar depois de lermos até a exaustão sobre o Caminho, mas erramos, mesmo trazendo pouca roupa — quatro camisetas, três calças de caminhada, uma bota e uma papete, além de capa/poncho para chuva, meias e um casaco.
Mesmo com pouco, descobrimos aqui que a mochila estava cheia demais para carregar. No meio do caminho, fomos largando o que não era primordial e ficamos com o essencial. E, por fim, em função da chuva e de vontade, utilizamos, em alguns trechos, o transporte de mochila.
É libertador não levar pesos ou descobrir o que pesa literalmente nas suas coisas, o que deve ser deixado para trás. Não há melhor lugar e tempo do que o Caminho de Santiago para descobrir o que você precisa carregar nessa vida.
O caminho até Santiago é uma longa travessia a vencer. Você convive com muitas dores e sensações físicas de exaustão, frio, calor, cansaço. Mas as surpresas são inevitáveis chegam com a sensação de recompensa. Sim, há muito prazer envolvido.
Os amigos Cristina e Francisco fazem o caminho conversando animadamente. Ela, uma suíça de 72 anos e ele, um uruguaio de 76. Ficamos no mesmo albergue e cruzamos pelo caminho algumas vezes. Ninguém parecia se entender melhor do que eles.
Coincidência ou não, a maioria dos peregrinos que encontramos pelo caminho estava com a viagem represada desde a pandemia. Nós, minhas amigas e eu, já tínhamos comprado passagem, reservado alguns hotéis e comprado alguns itens do enxoval (veja quadro).
Nunca havia feito a viagem antes, apenas sabia que, em 2021, seria o Ano Jubilar Compostelano — também conhecido como Jubileu ou Ano Santo. Denomina-se Ano Santo Jubilar Compostelano ou Ano Santo Jacobeu aquele no qual o dia 25 de julho — quando se celebra o martírio de Santiago Apóstolo — acontece em um domingo.
Isso ocorre com a regularidade de 6, 5, 6 e 11 anos (exceto quando o último ano do século não é bissexto e pode haver intervalos de 7 ou 12 anos). Deste modo, a cada século, se celebram 14 Anos Santos Jacobeus.
Nesses anos, a Igreja Católica concede aos peregrinos que chegam à Catedral de Santiago de Compostela, na Espanha — por qualquer meio e desde qualquer lugar — as mesmas graças espirituais asseguradas no Jubileu do Ano Santo, tradição da Igreja Católica, que ocorre regularmente a cada 25 anos.
A graça espiritual assegurada aos peregrinos que chegam à Catedral de Santiago de Compostela nos Anos Santos Jubilares Compostelanos é a Indulgência Plenária — ou total — o que significa, em um sentido amplo, a remissão de qualquer penitência anteriormente imposta. O Ano Jubileu seria comemorado em 2021 e foi estendido para 2022 em razão da covid-19.
A data concede uma certa aura especial ao Caminho. Mas é fato que, em qualquer ocasião, essa travessia faz por nós o que a rotina atribulada do dia a dia não faz. Acredito que a graça de estar consigo é alcançada a qualquer momento, desde que a gente se permita fazer e viver o Caminho com a intensidade que ele merece.
Enquanto você lê esta matéria, ainda temos um bocadinho de chão pela frente. Mas o peso que já ficou para trás valeu cada passo. Dou notícias de Compostela.
Enxoval
Devemos selecionar o material essencial e com o mínimo peso possível e lembrar que, para todos os acessórios, encontraremos lojas e farmácias pelo caminho.
Essencial
- Mochila: entre 30 e 45 litros de capacidade, anatômica e
ajustável em altura. - Saco de dormir: ultraleve e compacto; essencial se vamos dormir em albergues.
- Cantina: a típica garrafa de montanha, ou uma garrafa de plástico rígido de pelo menos um litro.
- Bastões ou cajado: para marcar o ritmo e ter mais um ponto de apoio nos altos e baixos.
- Calçados: calçado de caminhada de cano baixo ou médio, o mais leve, confortável e adaptado. Para tomar banho e caminhar: chinelos, crocs ou similares, confortáveis e de secagem rápida.
- Roupas: camisetas; uma ou duas camisas técnicas para caminhadas (no verão, uma pode ser suficiente). Outra camiseta, camisa ou similar para descanso. Calça: uma para caminhar e outra para descansar; longo, curto ou modular, dependendo do tempo.
- Roupa íntima: duas mudas; confortável para evitar atrito; roupa interior de corrida é uma boa opção.
- Meias sem algodão. dois pares, três no máximo; sem costuras.
- Chapéu ou boné com viseira: para o frio e o vento.
- Poncho ou capa leve: seja verão, seja inverno, que cubra a mochila, e um casaco leve.
- Chapéu e cachecol ou luvas finas semelhantes.
- Roupa impermeável.
- Guarda-chuva (opcional): pequeno e leve.
Veja mais informações no site Gronze.com e confira um guia completo do Google Arts e Culture.
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