Projetar a peça, calcular os ângulos e as medidas, recortar o tecido e passá-lo na máquina. Engana-se quem pensa que a atividade de corte e costura é algo simples e que não exige estudo. Na pandemia, junto a outros trabalhos manuais, teve uma importância enorme, tanto na produção de insumos para proteção, quanto no desenvolvimento de passatempos, que podem, inclusive, estar aliados a terapias.
Cada vez mais o público jovem tem se interessado pela costura e questionado a origem do que veste. Além de fonte de renda para muitas famílias, a prática pode ser uma mão na roda para quem deseja se encontrar em determinado estilo, já que as roupas podem dizer muito sobre a nossa personalidade. Pensando nisso, a Revista do Correio conversou com pessoas que têm histórias inspiradoras sobre suas relações com as máquinas e os tecidos.
Costureira com orgulho
Quando Priscila Rodrigues, 31 anos, ganhou a primeira máquina de costura da mãe, aos 19 anos, teve certeza: era isso que desejava fazer o resto da vida, queria ser costureira. A família, entretanto, não via a decisão com bons olhos. Para eles, a jovem enfrentaria dificuldades. Ainda assim, as críticas não a desanimaram, e a graduação em relações internacionais, a qual não se identificava, ficou de lado.
Priscila, porém, não cogitava fazer costuras simples. Queria acabamentos rebuscados, peças diferentes. Com muito estudo, desmanchando e refazendo as próprias vestimentas, desenvolveu seu método de trabalho, que logo chamou a atenção e foi disseminado na internet. Em paralelo, foi aprovada nas Olimpíadas do Conhecimento, do Senai, para dar aulas de costura, e logo surgiu outra paixão: o ensino.
Suas aspirações se materializaram na abertura da escola Vestida de Sonhos, em 2018, que, segundo a jovem, apresenta uma nova percepção sobre o ofício, relacionada ao prazer de criar roupas. "Mesmo antes da pandemia, as alunas que buscavam o curso já tinham profissões consolidadas e procuravam na costura o desenvolvimento de um hobby", explica Priscila.
Questionada sobre o porquê desse resgate e apreço pelas máquinas e pelos tecidos, a costureira apresenta como hipótese a ideia de que, durante os anos 1970 e 1980, as mulheres ambicionavam se dissociar de tudo que remetesse à vida doméstica, ao que era considerado "feminino" e compulsório. Hoje, diferentemente, essa retomada ocorre aliada ao sentimento de admiração e diversão, inclusive para os homens.
"Costurar, para mim, é muito apaixonante. Traz um grande sentimento de empoderamento. Por meio da costura, eu descobri ser capaz de fazer qualquer coisa. Olhava para as minhas produções e pensava: 'nossa, eu consegui fazer essa roupa, será que consigo fazer uma instalação elétrica?'. Isso faz eu me arriscar, tentar, mesmo com medo", confessa, com satisfação. Além disso, o carinho pelas criações iniciais é enorme. "Guardo até hoje as primeiras roupas que fiz, não tenho coragem de jogá-las fora, mesmo malfeitas", completa, aos risos.
Sobre a desvalorização da profissão, Priscila é enfática: carece, pela costureira, a percepção da importância do seu trabalho, que é minucioso, exige cálculos e conhecimentos específicos. E vale lembrar que hoje é possível encontrar roupas para comprar em qualquer lugar, então, uma peça feita por essas profissionais é única e mais do que especial. Falta aos consumidores perceberem isso também.
"Eu sempre falo que a costura é como uma engenharia e só não recebe esse nome porque, quando as pessoas pensam no ofício, imaginam uma mulher idosa, pobre e analfabeta. Mas não percebem que fazer uma modelagem, por exemplo, exige planejamento e estudo", destaca.
Na pandemia, mesmo sendo uma profissão requisitada para a aquisição de máscaras e trajes de proteção, as costureiras não foram lembradas em aplausos coletivos e homenagens a profissões que se mantiveram ativas durante o isolamento.
Priscila, no entanto, faz sua parte: na internet, gosta de mostrar cada processo da confecção de uma peça. Com isso, as pessoas entendem melhor o preço e o trabalho das criações. Para a escola, os planos são aumentar o espaço das aulas e dar continuidade ao Clube Vestida de Sonhos, curso on-line com vídeos compactos para estudantes iniciantes.
Alinhavando conhecimentos
Rafaela Macedo estuda tecnologia em design de moda no Instituto Federal de Brasília (IFB) e é uma das alunas da escola Vestida de Sonhos. O interesse pela costura surgiu de forma repentina na vida da estudante, que hoje tem 25 anos. Assistindo a um documentário, viu uma jovem, como ela, replicar uma peça usada por uma famosa.
A identificação foi instantânea e Rafaela, que sempre gostou de trabalhos manuais, começou os estudos na área com um curso on-line. Nesse processo, tem como inspiração a avó, que também é costureira, e a professora, Priscila Rodrigues.
Nos anos de curso, a estudante já fez vários modelos de roupas diferentes e diz aproveitar o progresso: "Existe esse processo bem minucioso de selecionar exatamente aquilo que você quer para poder se expressar melhor, pois, mesmo que duas pessoas produzam uma blusa do mesmo modelo, as escolhas de tecidos e a construção de detalhes tornam cada peça única", enfatiza.
Para o futuro, além de continuar costurando suas próprias peças, Rafaela planeja se tornar professora de costura e modelagem para mostrar aos estudantes como construir essa relação de carinho com as roupas.
#QuemFazMinhasRoupas?
A conscientização sobre a origem do que nos cobre perpassa discussões que vão além do mundo da moda. Lutar por uma indústria que seja mais responsável, transparente, justa e sustentável é também um ato político. E, afinal, política está em tudo, como ressalta Iara Vidal (@iaravidal), 48, jornalista e pesquisadora independente dos encontros da moda com a política.
Além de ter um programa semanal no YouTube, o #ModaEPolítica, Iara é representante do Fashion Revolution em Brasília, movimento comprometido com a defesa dos direitos humanos e ambientais voltados para a cadeia de produção e consumo de moda. Recentemente, a associação lançou a campanha Moda sem Veneno, contrária à aprovação do PL 6299/2002, que visa flexibilizar o processo de aprovação de novos agrotóxicos, muitos presentes na cultura de algodão, matéria-prima de inúmeros tecidos.
"Embora o papel individual de cada pessoa seja importante, a questão não é tão simples. A escolha do consumidor faz parte de mudanças estruturais e que exigem políticas públicas. Como exigir que uma pessoa que vive em insegurança alimentar tenha consciência das roupas que compra? Tem que ligar o GPS e entender que a moda está em um contexto mais amplo", avalia.
Apesar disso, a jornalista enxerga com positividade a crescente percepção das pessoas, em especial dos mais jovens, sobre o impacto da moda na crise climática e na precarização do trabalho. Em concordância, a costureira Priscila Rodrigues lembra que, hoje, há um maior questionamento sobre a qualidade das vestimentas compradas, que, além de poderem ter uma origem incerta, duram pouco.
"Não precisamos de tantas roupas. Temos características únicas, então, por que não transmiti-las por meio da forma como a gente se veste?", finaliza Priscila. Perguntar-se qual a história de uma peça, o que você deseja transmitir por meio dela, como foi a sensação de produzi-la ou, claro, quem fez as suas roupas pode ser o início de uma relação mais saudável com a moda.
A voz da experiência
Em 2008, Hosleni Costa foi convidada por outra costureira a trabalhar em uma Kombi que ficava estacionada em uma das quadras da Asa Sul. A oportunidade serviu para que ela conseguisse acessar mais clientes.
No ano seguinte, a costureira comprou a Kombi e, ali, criou o próprio ateliê de costura. "Trabalhei lá por 13 anos e foi uma ótima experiência. Eram muitos clientes e isso gerou uma boa renda, que ajudava tanto a mim quanto às duas costureiras que eu contratei para trabalhar comigo", conta Hosleni.
Hoje, aos 54 anos, a costureira já não está mais em seu ponto tradicional de trabalho, pois uma denúncia anônima resultou na remoção da Kombi da quadra onde estava estacionada. Agora, realiza os atendimentos em domicílio para não perder a clientela fiel.
Para ela, a melhor parte de trabalhar com costura é poder desenvolver os projetos em casa, perto da família. Hosleni afirma que o processo é quase terapêutico. Mas a costureira, que já conta com mais de 30 anos de experiência, deixa para as mais novas o lembrete: "É importante cuidar também da sua saúde. Você tem que ter tempo para fazer exercícios, uma caminhada, tirar um tempo para não ficar só sentada na máquina o dia inteiro. Isso pode causar vários males".
Perto da família
O interesse de Neyde Zucolotto pelo mundo da moda vem de infância. A empresária de 39 anos já se interessava por costura aos 12, quando morava com os pais no interior e, por falta de variedade, sentia a necessidade de fazer as próprias roupas. Com o tempo, o hobby ficou esquecido entre compromissos de trabalho e estudos, mas, depois de casada e já com uma filha, Neyde decidiu voltar para faculdade e resgatar a paixão por criar roupas. Hoje é formada em design de moda e criou a própria marca, chamada Ramazu.
“Depois que eu me casei e tive filho, busquei uma profissão em que tivesse a possibilidade de ficar em casa, para ter mais conforto. E que eu também pudesse ser uma empreendedora, não dependesse de ninguém. Eu faço os meus horários, escolho os dias que vou trabalhar. E eu realmente gosto dessa área. Quando você gosta, você faz com muito mais amor”, conta Neyde Zucolotto.
Para a designer, o processo de produzir uma roupa sob medida é muito gratificante. Segundo ela, além de ter o prazer de se olhar no espelho com uma peça que você criou, existe a vantagem do custo reduzido. A empresária afirma que criando suas próprias roupas é mais fácil economizar dinheiro. E as inspirações para elaborar novos desenhos vêm do dia a dia, Neyde procura trabalhar peças clássicas, atemporais e versáteis.
Depois de inaugurar a Ramazu no ano passado, percebeu a necessidade de se especializar mais na
área. Este ano, está se dedicando aos estudos em moda, na docência.
Trama pontiaguda como extensão de si
O interesse pela moda e pela arte sempre estiveram presentes na vida do estilista Vittor Sinistra, 32, que, desde cedo, customizava suas roupas e pintava seus tênis, numa tentativa de mostrar-se presente e dizer ao mundo o que lhe interessava. Entretanto, a infância e adolescência carregadas de bullying, em especial relacionado ao seu corpo e sexualidade, minavam sua autoimagem e confiança, adoecendo-o aos poucos.
O jovem lembra, por exemplo, que quando começou, finalmente, a se permitir ter mais identidade na forma de vestir, esbarrou na indústria gordofóbica. “Parecia que a única forma de ter estilo era emagrecendo”, conta. A metamorfose aconteceu quando aprendeu a fazer as próprias roupas, atividade que mais para frente tornou-se profissão e lhe devolveu parte da autoestima, permitindo cuidar e tratar feridas do passado.
Isso porque suas criações têm como inspiração as vivências violentas da infância. São monstros que projetam sentimentos de medo, ansiedade e, principalmente, raiva. Por isso, os volumes pontiagudos que brotam da superfície do tecido, como se estivessem rasgando-o. Segundo Vittor, são uma forma de soltar essa fera raivosa, presa por tanto tempo dentro de si.
Todo o processo criativo é feito inteiramente pelo estilista, desde a idealização das peças até a publicidade da marca homônima. E a dedicação e a criatividade têm apresentado resultados: recentemente, mudou-se para São Paulo e, ainda no ano passado, foi contratado para fazer o look da atriz Lucy Ramos para o quadro Dança dos Famosos, na Globo. A novidade? Irá estrear nas passarelas da Casa de Criadores a convite do jornalista e empresário André Hidalgo.
Costura e arteterapia
Antes de se dedicar totalmente a sua marca, Vittor era funcionário público da Secretaria de Saúde do DF, atuando em áreas de políticas públicas, gestão e criação de projetos para o Centro de Atenção Psicossocial II de Taguatinga, que assiste pessoas com transtornos mentais graves e persistentes.
Lá, coordenou o grupo de trabalho para implantação do primeiro ambulatório trans da região, além de ser responsável por promover um circuito cultural para a saúde, com oficinas de costura, desenho, pintura, grafite e outras atividades para os pacientes. “É indiscutível a potência de oportunizar a arte nos processos de tratamento de saúde mental. É uma combinação muito boa. Eu via isso nos pacientes; eu via isso em mim”, orgulha-se.
Conforme enumera a arteterapeuta e enfermeira psiquiátrica Ana Cláudia Torres, os benefícios da arte para o tratamento de transtornos mentais são: a promoção da participação ativa, o sentimentos de realização, o estímulo à independência das atividades de vida diária, o despertar da criatividade, a melhora da autoestima, o favorecimento da autopercepção e compreensão do significado da doença, além da estabilização emocional.
Os trabalhos manuais — a costura, o bordado, a tecelagem — têm no exercício de desembaraçar, reunir, integrar, relacionar e cortar fios a exigência de cuidado, atenção, concentração e paciência, atributos que, quando considerados, promovem a sensação de bem-estar.
*Estagiárias sob a supervisão de Sibele Negromonte
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