"Essa dor é normal, toda mulher passa por isso." Não é exagero dizer que essa frase tem sido repetida há décadas para cada menina que experimenta a chegada da menarca, a primeira menstruação. Repetida por avós, mães, amigas e profissionais da saúde, acaba se tornando uma verdade quase absoluta no universo feminino.
Porém, ela não reflete a realidade. Algumas mulheres sofrem de dismenorreia, as famosas cólicas menstruais, que não necessariamente indicam doenças estruturais, orgânicas ou outros problemas de saúde. Nelas, a contração do útero na expulsão da menstruação é o suficiente para causar incômodos de maior ou menor intensidade. Isso, no entanto, não significa que devem se conformar em sentir dor. Existem técnicas e medicamentos voltados para a melhora da qualidade de vida da mulher e é importante conhecer e se valer deles.
Em cerca de 10% da população feminina brasileira, segundo a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), o desconforto é um sintoma da endometriose. Tumores ginecológicos, cânceres de ovário, endométrio ou no colo do útero e miomas também podem ficar escondidos quando desconsideramos e normalizamos alterações em nosso organismo.
"Não é toda dor que é um câncer ou uma doença. Mas tudo que foge da sua rotina merece ser investigado", tranquiliza e recomenda a diretora médica de oncologia da GSK, Vanessa Fabrício.
Lágrimas de alívio
A empresária Flávia de Moraes Dutra, 35 anos, chorou de alegria ao receber o diagnóstico de endometriose. "Foi supercontraditório, mas saber que minha vida normal não era horrível, que existia algo errado ali e eu não precisava mais viver sofrendo foi um alívio", lembra.
Aos 12 anos, ela menstruou e tem a memória de sentir dor desde sempre. Flávia chegava a desmaiar na escola e foi somente aos 14, quando começou a tomar anticoncepcionais, que experimentou um certo alívio. Anos mais tarde, incomodada com todo o tempo em que ingeriu hormônios, depois de estudar sobre os efeitos dos anticoncepcionais e descobrir um quadro depressivo, resolveu parar com a pílula.
Naquela época, os efeitos mascarados da endometriose voltaram com tudo e a dor se tornou insuportável. "Eu só pensava que não era possível aquilo ser normal. Fui buscar, estudar. Entrei em grupos de Facebook, li coisas horrorosas e tristes e me identifiquei com aquelas histórias."
Aos 28 anos, Flávia foi a uma consulta e pediu que a médica fizesse o encaminhamento para a ressonância com preparo intestinal. Frustrada com o fato de a profissional sequer entender o que ela sentia, pegou o pedido e foi em busca de especialistas. "Foi metade da minha vida assim e sem saber o porquê. E é muito solitário, as pessoas não entendem algumas limitações e acham que é mentira ou exagero. Agora, entendo essas minúcias do que é ser mulher e vejo essa crueldade", lamenta.
A alimentação foi o ponto-chave para Flávia. A dieta anti-inflamatória foi um grande avanço na qualidade de vida. O tratamento clínico, voltado para o uso de medicamentos, exercícios físicos, sono de qualidade e nutrição adequada, deve ser sempre a primeira opção, como afirma Patrick Bellelis, ginecologista especialista em endometriose.
O objetivo, quando as lesões não estão afetando a função de outros órgãos ou causando obstruções, não é diminuí-las, mas melhorar a qualidade de vida da paciente e impedir o crescimento e a formação de novos focos. Quando o tratamento não funciona, é a hora de avaliar a possibilidade da cirurgia.
Eventualmente, esse foi o estágio em que Flávia chegou. Sem conseguir a remissão, a empresária está refazendo os exames para se submeter à cirurgia. O objetivo é "limpar" o organismo dos três focos, um deles grande e que se aproxima do reto, e continuar o tratamento clínico para diminuir as chances de crescimento de novos tecidos.
Saiba Mais
O apagamento feminino
Flávia acredita que a normalização da dor da mulher e os poucos estudos sobre a doença têm raízes no machismo e nos tabus que sempre envolveram o corpo feminino. "A própria menstruação era um tabu enorme. Sem falar sobre, não entendemos como nosso corpo funciona, e temos menos controle e escolhas."
A empresária também aponta a questão econômica como mais um dificultador. Mulheres de classes mais baixas têm menos acesso à saúde e também à informação. "A informação é tudo, é um processo de cura global, na qual toda mulher precisa entender seu espaço, seu lugar e seu corpo."
Encontrar profissionais que entendam bem a doença e o cuidado com o diagnóstico também não é fácil. A baixa oferta e a necessidade de equipamentos mais modernos para exames elevam os preços. Na visão de Flávia, até mesmo seguir o tratamento clínico encontra obstáculos financeiros. "Como dizer para alguém que passa seis horas por dia dentro de um ônibus que ela precisa dormir bem, se alimentar no horário correto, escolher alimentos orgânicos? É muito cruel."
Por dentro da endometriose
O endométrio é uma camada dentro do útero onde um embrião fecundado será gestado. Ele é descartado com o sangue da menstruação quando não ocorre a fertilização. A endometriose acontece quando parte desse tecido não é eliminada e migra para fora do útero. As causas ainda não são claras e a doença não tem cura. Neste mês, a campanha Março Amarelo chama atenção para a doença, que afeta uma grande parcela da população feminina. A informação é uma das grandes armas nessa luta, fique atenta:
- Se você tem cólicas menstruais, é importante fazer investigação para descartar qualquer doença.
- Dor e sangramento ao evacuar ou urinar, dor durante a relação sexual e dificuldade para engravidar também são sinais clássicos da endometriose.
- Caso nenhuma causa seja detectada em exames rotineiros e as dores persistirem, combinadas ao desconforto em outras regiões, como abdômen e região anal, é importante descartar outras causas e investigar outro órgãos.
- Se todas as outras causas forem descartadas, os sintomas podem indicar endometriose.
- Os exames mais eficazes para a identificação da endometriose são a ressonância magnética da pelve com preparo intestinal e a ecografia especializada no mapeamento de endometriose.
Uma vida de inflamação
Assim como a empresária Flávia de Moraes Dutra, a advogada Tatiane Vicente Farias, 39 anos, pode ser considerada uma vítima da falácia sobre a banalização das dores menstruais. Foi somente 25 anos depois da menarca que ela recebeu o diagnóstico de endometriose e pôde ter a confirmação de que todo seu sofrimento não era normal ou inevitável. "Quando alguém descobre uma doença, costuma ficar triste, mas eu fiquei feliz. Chorei de felicidade por, finalmente, descobrir o que está acontecendo comigo antes que a depressão levasse."
Além das dores incapacitantes todo o mês, Tatiane se sentia abatida o tempo todo, com desânimo e prostração. A sensação da advogada era de que seu corpo estava sempre em estado de inflamação. Apesar de crescer com as dores de uma endometriose não diagnosticada, ela teve três filhos e passou por duas perdas gestacionais. A concepção não era um problema, mas a cada gravidez, as dores pioravam. Depois que a caçula nasceu, há três anos, o quadro mudou.
"Tudo piorou, a cólica deixou de ser somente uterina e virou uma dor abdominal generalizada, tive dores no ciático e no reto. A TPM virou uma loucura e eu passava pelo menos 15 dias do mês em função do meu ciclo", lembra. A piora e as conversas com outras mulheres fizeram Tatiane descobrir que tinha todos os sintomas do "kit endometriose". Nesse momento, começou uma saga de consultas e exames.
A advogada teve médicos que negligenciaram seu quadro e chegaram até mesmo a pedir exames equivocados. Mas depois de encontrar uma especialista e fazer os exames corretos, Tatiane se preparou para a cirurgia. Com muitas aderências e adenomiose — quando o endométrio se espalha pelas paredes do útero —, a histerectomia foi a opção mais segura e saudável. Mantendo apenas um ovário, foi necessário fazer uma raspagem do intestino, da bexiga e do ureter, uma vez que todos os órgãos tinham focos de tecido.
Tatiane conta que, logo após sair da anestesia, sentiu um enorme alívio e bem-estar. "Queria dar uma festa só por não me sentir doente. Feliz por ao menos saber contra o que estou lutando e que rumo seguir."
Depois de conviver com a dor por mais de 20 anos, Tatiane passou a lutar para a difusão do conhecimento sobre a doença. "Não quero nunca ver nenhuma mulher passando pelo que passei, não quero minha filha vivendo em dor e vou brigar por isso."
Apoiando um projeto de lei que inclua a endometriose como doença grave e incapacitante, e se envolvendo com associações e grupos de mulheres, a advogada defende que os médicos passem por reciclagens e aprendam a reconhecer os sintomas e a enxergar as dores femininas.
Tatiane acredita que os poucos estudos e a demora para encontrar soluções estão relacionados ao fato de que são as mulheres que sentem essas dores. "Acho que muita dessa negligência vem do machismo. Se fosse uma dor masculina, existiria até remédio. O sistema permite que a gente fique sentindo dor. Nenhum nível de dor é aceitável."
Vanessa Fabricio, diretora médica de oncologia da GSK, acredita que a mulher é programada a se acostumar com as dores da cólica desde cedo. Ela observa que, mais do que uma diferenciação entre homens e mulheres, a normalização da dor, aliada aos sintomas inespecíficos e ao fato de a doença ainda ser pouco conhecida, são os maiores obstáculos.
A dificuldade de acesso aos sistemas de saúde e a grande fila de espera de exames do Serviço Único de Saúde (SUS) também estão entre os empecilhos para o diagnóstico precoce. A oncologista alerta que negligenciar essas dores pode mascarar diversas doenças, entre elas o câncer de endométrio. O sangramento também costuma ser visto com naturalidade pela maioria das mulheres em idade fértil, mesmo quando acontecem fora do ciclo. "Colocamos na conta do estresse ou de qualquer coisa que possa interferir no ciclo."
A oncologista explica que, no caso do câncer de endométrio, o problema acaba sendo um pouco menor porque a maioria das pacientes desenvolve a doença após a menopausa, quando dores e sangramento são incomuns e chamam atenção.
O poder da informação
O ginecologista Luciano Pompei, assim como outros especialistas, acredita que entre os grande dificultadores do diagnóstico precoce tanto da endometriose quanto de outras doenças que podem causar dor pélvica, está a normalização da dor.
O médico defende que todos os colegas devam ser treinados a não desvalorizar a cólica menstrual e a investigar se existem doenças associadas. As dores pélvicas podem ser sinais de mais de 60 doenças, entre elas miomas, pólipos, endometriose, miomas uterinos, cistos de ovário, infecções crônicas da trompa, doenças inflamatórias pélvicas e até mesmo condições ortopédicas.
Com relação ao diagnóstico da endometriose, grande desafio atualmente, ele comenta que há 20 anos não existiam exames como os atuais e que, cada vez mais, sociedades médicas se dedicam a diminuir o tempo de identificação da doença, que gira em torno de sete a 10 anos.
A ginecologista Letícia Piccolo, pondera ainda sobre os casos de endometriose que não apresentam dor e acredita ser necessária uma mudança no sistema de saúde como um todo, uma vez que muitos dos médicos não pedem determinados exames com mais frequência por serem desencorajados pelos planos de saúde.
Nessas situações, Letícia recomenda que as mulheres leiam, informem-se e conheçam o próprio corpo. Ela defende uma mudança na medicina, mas sabe que o processo é demorado e acredita que as mulheres não podem continuar pagando por isso com saúde e infertilidade.
"O empoderamento aqui é fundamental. Assumirmos esse processo, estudando e compreendo nossos ciclos, muco cervical e hormônios. Assim, podemos exigir exames e investigações completas ao suspeitar de algo", acredita.
Uma história repetida 10 milhões de vezes
Para a médica veterinária Raquel Meneses de Souza Silva, 33 anos, a menarca chegou aos 9 anos e as dores, aos 12. Indo constantemente ao pronto-socorro e desmaiando, desde menina ouvia que cólica não era nada demais.
Ginecologistas chegaram a recomendar “chazinhos” para uma dor que, mais tarde, exigiu o uso de substâncias como a morfina. Aos 17, houve a primeira menção à endometriose, que incapacitava Raquel mesmo com o uso de pílula.
Aos 20 anos, ela fez uma videolaparoscopia e foram descobertos mais de 20 focos de endometriose, que foram removidos cirurgicamente. “O que era chamado de dorzinha normal eram mais de todos esses tecidos. Não é normal ter dor.”
Logo após o procedimento, Raquel teve uma embolia pulmonar e, ao descobrir alterações trombofílicas, foi proibida de ingerir hormônios. “Sem hormônios e com os focos crescendo constantemente, não tenho tratamento. Vivo em dor e uso métodos como acupuntura para alívio, além de seguir um tratamento clínico e uma dieta anti-inflamatória”, conta a veterinária.
Porém, apesar dos esforços de Raquel e da cirurgia feita removendo todas as lesões, três meses depois, novos focos começaram a crescer. A dor mensal e incapacitante já custou um emprego. Depois da demissão e sofrendo bastante, ela procurou especialistas e teve experiências muito negativas. Sentindo-se só e incompreendida, ela revela que até teve pensamentos suicidas.
Sem saber mais a quem recorrer, ela entrou em um grupo do Facebook com várias portadoras da doença por todo o Brasil. Ali, vendo as dicas e indicações médicas compartilhadas, percebeu a necessidade de iniciativa semelhante em Brasília e assim, em parceria com uma amiga, ela criou o Endometriose — Brasília.
Ali surgiu não só um banco de dados com médicos, tratamentos, dietas, convênios e laboratórios, mas também uma rede de apoio e suporte emocional. “Saber que você não é a única que passa por isso e ter alguém que te entende, é um alívio enorme. A gente confirma que não está louca.”
Famosas que falam sobre a doença
Apesar de pouco debatida, a endometriose tem algumas pacientes famosas que buscam conscientizar sobre o tema. Confira:
Larissa Manoela — No ano passado, a atriz revelou ser portadora da doença e promoveu, em parceria com um médico, uma live para conscientizar suas seguidoras.
Isabella Santoni — “Se você tem muita cólica, não é normal. Passei anos da minha vida achando que era normal ter as cólicas que eu tinha”, disse a atriz após revelar o diagnóstico.
Chloe Bennet — A atriz publicou uma foto em seu perfil no Instagram depois de passar por uma cirurgia para tratar a doença. “A vergonha que cerca problemas de saúde femininos costuma fortalecer as vozes nas nossas cabeças que dizem que nós estamos ‘exagerando’ e ‘não deveríamos levar isso tão a sério”, escreveu.
Lena Dunham — A atriz e criadora da série Girsl fala sobre a condição em seu perfil no Instagram e compartilha com o público suas cirurgias e procedimentos com naturalidade.