Especial

Sem blefes

O crescimento do pôquer, hoje reconhecido como um jogo de habilidade e não mais de azar, tem ganhado cada vez mais praticantes e foi impulsionado pela necessidade de lockdown e pelo home office, prevalecendo o seu formato on-line. Calcula-se que, no Brasil, sejam quase 8 milhões de praticantes, entre os mais de 100 milhões no mundo. Entre as características estão habilidades como raciocínio lógico, probabilidade, astúcia, concentração, inteligência, equilíbrio emocional e coragem. Já o objetivo está em ler e processar as informações que são fornecidas a cada partida, vencendo aquele ou aquela que tirar todas as fichas dos outros jogadores.

O interesse pelo jogo também encontra lugar no passatempo de muitas mulheres, como da servidora pública do Ministério da Economia Caroline Leite, 36 anos, que começou a praticar o pôquer em 2008 e, depois de um intervalo, retomou o hobby durante a pandemia, de forma on-line e em grupos de amigos. Hoje, joga todos os dias pela internet e, presencialmente, duas vezes ao mês. "A emoção está no fato de ser um jogo que mistura inteligência, ousadia, cálculos, probabilidades e até mesmo uma parte psicológica. É incrível", derrete-se.

O HomeGamers Poker Club, uma das plataformas pela qual Caroline realiza as disputas e participa de torneios, desenvolveu o projeto Ladies Only, dedicado exclusivamente a jogadoras recreativas e que visa estimular a prática social de pôquer entre mulheres. A iniciativa oferece jogos gratuitos e específicos, apenas para competidoras que os têm como diversão. Estimular a socialização de mulheres nesse contexto é a principal finalidade, como destaca André Andrade, um dos sócios do clube. As partidas ocorrem todos os dias e, por serem on-line, reúnem jogadoras do Brasil inteiro e do exterior.

Ainda que a servidora pública considere o ambiente do pôquer predominantemente masculino, reconhece que essa disparidade tem diminuído e recorda situações em que percebeu atitudes machistas de maneira mais velada: "De forma presencial, já me senti mais criticada que homens pelas jogadas". No início, especialmente, sentia-se intimidada, porém, o tempo fez com que ficasse mais à vontade e confiante. Além disso, Caroline frisa que nunca se deixou abalar por comentários desagradáveis.

E, para as mulheres que têm interesse pelo jogo e pretendem começar a praticar, ela deixa o recado: "Venham, vamos dominar o universo do pôquer juntas!"

A vez delas nos
esportes eletrônico

A gamer e streamer Vanessa Lúcia, 25 anos, conhecida na internet como "VanieBunny", tem, atualmente, 34 mil seguidores na plataforma Twitch, da qual é parceira, e foi convidada, recentemente, pela Amazon para jogar o game Lost Ark, representando a América Latina. O acontecimento foi significativo porque, além de se sentir reconhecida pelo seu trabalho, a jovem é a única mulher do grupo, servindo de inspiração para quem a acompanha, já que, apesar de elas serem maioria nesse setor, a representatividade em campeonatos e na própria produção dos jogos ainda é muito pequena.

Vanie, que também é formada em administração, conta que o amor pelos games a acompanha desde cedo. "Joguei meu primeiro game multiplayer on-line aos sete anos de idade e não parei mais. Jogar sempre foi meu maior hobby", recorda. Quando, em junho de 2019, ganhou um headset e uma webcam de presente de aniversário, resolveu se arriscar no mundo das streams. Na pandemia, como dedicou mais tempo a isso, começou a ganhar notoriedade, e a atividade tornou-se também uma profissão.

A rotina é intensa: diariamente, são, em média, nove horas de stream e, dependendo do ânimo, até 16. Fora dos games, o tempo é dedicado a responder e-mails profissionais, buscar parcerias com empresas e planejar transmissões futuras. Engana-se quem pensa que as telas saem de cena nos momentos de descanso: ficar em chamada com amigos jogando ou assistindo filmes é a sua distração. Eram eles, inclusive, que sempre a apoiavam nas streams, diferentemente dos pais que, no início, achavam que as transmissões atrapalhariam sua vida acadêmica e profissional na administração. Ao verem, porém, que o canal estava crescendo e se tornando algo mais preciso, o suporte veio de forma incondicional. Hoje, a mãe não perde nenhuma live e é seu braço direito na organização do "backstage".

Apesar do sucesso e da paixão pelo que faz, Vanessa relata que as dificuldades encontradas relacionam-se, em grande parte, ao machismo e aos tabus que rondam a vida das streamers, como o de que mulheres não são gamers de verdade — são pouquíssimas as que estão na lista dos streamers mais assistidos, tanto no Brasil quanto em outros países. "Diariamente, passo por situações desconfortáveis de assédio nas streams. Infelizmente, temos que conviver com isso e lidar da melhor forma possível, o que é muito difícil e desgastante, ainda mais por ser algo que é exposto para todos", desabafa. A ajuda de moderadores e o uso de recursos automatizados evitam parte desses comportamentos no chat, mas ainda não são suficientes para banir e punir corretamente tais atitudes.

Atualmente, existem organizações e iniciativas que visam acolher e inserir mais mulheres no meio profissional gamer, mas, segundo Vanie, estas não recebem tanto destaque quanto outros projetos deste meio. Assim, ela decidiu desenvolver um curso de capacitação profissional de streaming apenas para mulheres: "Eu tenho vontade de mudar essa história, por isso, além de sempre apoiar as mulheres deste ambiente, estou fechando com uma grande empresa para oferecer um curso de capacitação, ainda este ano", comemora. Para ela, mesmo que o caminho seja complicado e, às vezes, dolorido, com garra, é possível conquistar o seu lugar e inspirar outras meninas.

Palavra de especialista

Como os espaços de trabalho considerados "masculinos" intimidam a entrada das mulheres nesse meio?

Na verdade, os espaços não as inibem, mas, sim, os homens que intimidam suas entradas nesse meio, com seus comportamentos de descredenciar o saber delas no que se refere aos conhecimentos de uma área que consideram pertencer somente a eles. Essas atitudes podem se manifestar das seguintes formas: banalizando o conhecimento da mulher; questionando-a muito mais acerca de um determinado fazer do que questionariam um homem e colocando o que chamamos fenômeno 'casca de banana' em seu cotidiano, que se trata de criar pequenas armadilhas para a mulher se enrolar no trabalho e apresentar um resultado pior que o dos colegas homens. O questionar demasiadamente, em especial, é o que mais mina a autoestima da mulher e a confiança em seu próprio trabalho, podendo induzi-la de fato ao erro.

Quando já estabelecidas, as mulheres costumam sentir a necessidade maior de mostrar o seu potencial, para "comprovar" que aquele espaço pode, sim, ser ocupado por elas?

As mulheres têm a necessidade de mostrar o seu potencial, pois são demandadas por isso; as cobranças diferem. Então, se elas não comprovam inúmeras vezes que sabem fazer o que estão fazendo, são descredenciadas. Em resumo, mesmo que ela obtenha mais resultados, caso não mostre isso, não será percebida como alguém que dá conta. Ninguém quer estar sob vigilância constante, essa é uma demanda do meio.

Quais impactos emocionais são observados em mulheres que convivem em ambientes de trabalho tóxicos e desiguais?

Ansiedade, estresse, desgaste e, no fim, desgosto. Manejar essas situações o tempo inteiro é ansiógeno. Ter que comprovar a própria eficiência muito mais vezes também leva ao estresse. Sentir desgaste é pensar 'precisava ser difícil assim?' e perceber-se com desgosto é estar desacreditada profissionalmente. Por isso, muitas mulheres abandonam suas áreas de origem.

Como as empresas, os funcionários e a própria família podem motivar e auxiliar as mulheres a adentrar e conquistar essas posições profissionais que, a princípio, não foram pensadas para elas?

Primeiro, acolher essa mulher, sabendo que ela irá, sim, enfrentar situações difíceis, e não dizer que ela deve ser forte, guerreira e precisa dar conta, porque isso termina diminuindo um sofrimento que é real, já que o ambiente, de fato, é muito desgastante. Segundo, validar seus sentimentos e suas emoções. Terceiro, para as mulheres que estarão nessas áreas, é necessário unir-se, criar grupos de apoio e de conversas, para poderem falar das suas dificuldades, mas sempre numa perspectiva de validação das emoções. Repetir "você dá conta", sem acolher as angústias que ela está passando, é ineficiente; não se trata de contar para a mulher que ela é forte, ela sabe que é. Outra demanda muito importante é que as empresas treinem os colegas homens para receberem essas mulheres. Não basta conscientizá-las de que podem ocupar o espaço, é preciso informar aos homens que eles têm de recebê-las adequadamente.

Carla Antloga é pesquisadora em trabalho feminino e professora do Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília

 

Marcelo Ferreira/CB/D.A Press - Caroline Leite conta que já percebeu atitudes machistas durante uma partida de pôquer
Marcelo Ferreira/CB/D.A Press - 22/02/2022 Crédito: Marcelo Ferreira/CB/D.A Press. Brasil. Brasilia - DF - Dia Internacional da Mulher, mulheres que se destacam em áreas de atuação dominadas por homens. Caroline Leite, adora jogar poker.