Especial

Uma vida de inflamação

por Ailim Cabral
postado em 20/03/2022 00:01
 (crédito: VALERIE MACON)
(crédito: VALERIE MACON)

Assim como a empresária Flávia de Moraes Dutra, a advogada Tatiane Vicente Farias, 39 anos, pode ser considerada uma vítima da falácia sobre a banalização das dores menstruais. Foi somente 25 anos depois da menarca que ela recebeu o diagnóstico de endometriose e pôde ter a confirmação de que todo seu sofrimento não era normal ou inevitável. "Quando alguém descobre uma doença, costuma ficar triste, mas eu fiquei feliz. Chorei de felicidade por, finalmente, descobrir o que está acontecendo comigo antes que a depressão levasse."

Além das dores incapacitantes todo o mês, Tatiane se sentia abatida o tempo todo, com desânimo e prostração. A sensação da advogada era de que seu corpo estava sempre em estado de inflamação. Apesar de crescer com as dores de uma endometriose não diagnosticada, ela teve três filhos e passou por duas perdas gestacionais. A concepção não era um problema, mas a cada gravidez, as dores pioravam. Depois que a caçula nasceu, há três anos, o quadro mudou.

"Tudo piorou, a cólica deixou de ser somente uterina e virou uma dor abdominal generalizada, tive dores no ciático e no reto. A TPM virou uma loucura e eu passava pelo menos 15 dias do mês em função do meu ciclo", lembra. A piora e as conversas com outras mulheres fizeram Tatiane descobrir que tinha todos os sintomas do "kit endometriose". Nesse momento, começou uma saga de consultas e exames.

A advogada teve médicos que negligenciaram seu quadro e chegaram até mesmo a pedir exames equivocados. Mas depois de encontrar uma especialista e fazer os exames corretos, Tatiane se preparou para a cirurgia. Com muitas aderências e adenomiose — quando o endométrio se espalha pelas paredes do útero —, a histerectomia foi a opção mais segura e saudável. Mantendo apenas um ovário, foi necessário fazer uma raspagem do intestino, da bexiga e do ureter, uma vez que todos os órgãos tinham focos de tecido.

Tatiane conta que, logo após sair da anestesia, sentiu um enorme alívio e bem-estar. "Queria dar uma festa só por não me sentir doente. Feliz por ao menos saber contra o que estou lutando e que rumo seguir."

Depois de conviver com a dor por mais de 20 anos, Tatiane passou a lutar para a difusão do conhecimento sobre a doença. "Não quero nunca ver nenhuma mulher passando pelo que passei, não quero minha filha vivendo em dor e vou brigar por isso."

Apoiando um projeto de lei que inclua a endometriose como doença grave e incapacitante, e se envolvendo com associações e grupos de mulheres, a advogada defende que os médicos passem por reciclagens e aprendam a reconhecer os sintomas e a enxergar as dores femininas.

Tatiane acredita que os poucos estudos e a demora para encontrar soluções estão relacionados ao fato de que são as mulheres que sentem essas dores. "Acho que muita dessa negligência vem do machismo. Se fosse uma dor masculina, existiria até remédio. O sistema permite que a gente fique sentindo dor. Nenhum nível de dor é aceitável."

Vanessa Fabricio, diretora médica de oncologia da GSK, acredita que a mulher é programada a se acostumar com as dores da cólica desde cedo. Ela observa que, mais do que uma diferenciação entre homens e mulheres, a normalização da dor, aliada aos sintomas inespecíficos e ao fato de a doença ainda ser pouco conhecida, são os maiores obstáculos.

A dificuldade de acesso aos sistemas de saúde e a grande fila de espera de exames do Serviço Único de Saúde (SUS) também estão entre os empecilhos para o diagnóstico precoce. A oncologista alerta que negligenciar essas dores pode mascarar diversas doenças, entre elas o câncer de endométrio. O sangramento também costuma ser visto com naturalidade pela maioria das mulheres em idade fértil, mesmo quando acontecem fora do ciclo. "Colocamos na conta do estresse ou de qualquer coisa que possa interferir no ciclo."

A oncologista explica que, no caso do câncer de endométrio, o problema acaba sendo um pouco menor porque a maioria das pacientes desenvolve a doença após a menopausa, quando dores e sangramento são incomuns e chamam atenção.

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  •  Brasil. Brasília - DF. Revista. Especial sobre a endometriose e outras doenças femininas. Na foto Tatiane Vicente Farias
    Brasil. Brasília - DF. Revista. Especial sobre a endometriose e outras doenças femininas. Na foto Tatiane Vicente Farias Foto: Arquivo Pessoal
  • 2016. Crédito: Henrique Dip/Divulgação. Larissa Manoela, em Brasília.
    2016. Crédito: Henrique Dip/Divulgação. Larissa Manoela, em Brasília. Foto: Henrique Dip/Divulgação
  • Chloe Bennet após cirurgia para tratar endometriose
    Chloe Bennet após cirurgia para tratar endometriose Foto: Instagram/Reprodução
  • Créditos: João Cotta/TV Globo. Atriz Isabella Santoni como Karina de Malhação.
    Créditos: João Cotta/TV Globo. Atriz Isabella Santoni como Karina de Malhação. Foto: João Cotta/TV Globo

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