Questionamentos como "você escreve para quê?" e "quem és, no momento da escrita?" trazem à tona reflexões sobre a prática que tem sido utilizada, cada vez mais, de maneira terapêutica, visto que pode ser uma forma eficaz de organizar os pensamentos, colocar para fora o que não é possível dizer e, por que não, criar universos e personagens que movimentam a criatividade, aliviando o estresse e a ansiedade.
A escrita, quando utilizada como método de autocuidado e autoconhecimento, envolve a função expressiva da linguagem, que ativa instâncias do inconsciente e permite acessar as memórias e compreender melhor os sentimentos. Para o psicólogo e professor Paulo Nascentes, redigir conteúdos de forma rápida e intuitiva, sem preocupações com recursos gramaticais, pode auxiliar, sim, no enfrentamento de experiências ruins.
Além disso, é uma ferramenta acessível e disponível, que busca a liberdade de expressão autoral, não julga, não condena nem estabelece regras. "Após a produção do texto, realizamos associações e ampliamos o que foi escrito. Assim, voltamos o olhar para as situações traumáticas, dando sentido às experiências com o fim de, apesar da dor, seguir dentro de um propósito", completa a terapeuta sistêmica Ellys Alves.
A cientista social, escritora e terapeuta de escrita expressiva Lella Malta (@lellamalta) entende muito bem sobre o assunto. Com seus diários, teve, desde cedo, a escrita como uma aliada e, na escola e na internet, vencia com frequência concursos culturais de melhores histórias. Foi na juventude, entretanto, que percebeu que a escrita, além de ser um divertimento, poderia ajudá-la a entender a própria ansiedade, permitindo-a conhecer as raízes do problema.
O resultado desse processo terapêutico foi a produção da obra Prazer, Paniquenta: desventuras tragicômicas de uma ansiosa, texto autobiográfico que apresenta os desafios enfrentados por todos aqueles que convivem com o transtorno. O feedback dos leitores foi tão positivo que a fez perceber que era possível ajudar outras pessoas também.
Começou a se capacitar e formou-se em psicanálise, com especialização em psicologia positiva. Hoje, atende mulheres que buscam na escrita uma forma de acolhimento e autoconhecimento, com exercícios personalizados, abrangendo temas como empoderamento, maternidade, carreira e luto.
O fato de restringir o seu público a mulheres não é arbitrário. "Vivemos um apagamento da escrita de mulheres por muito tempo, então, motivá-las a escrever mais e capacitá-las para, quem sabe, poderem publicar um livro é um ato de enfrentamento a essas injustiças", ressalta Lella. Nesse contexto, fortalecimento e união também são palavras de peso. Primeiro, porque a escrita permite a elas serem protagonistas das suas histórias; segundo, porque cria comunidades de apoio, no qual uma ajuda a outra e vice-versa.
Na pandemia, a necessidade de tratar feridas emocionais aumentou significativamente. "Encontrar-se com a realidade da inexistência, na qual a pessoa não existe mais e, em algum momento, eu também posso não existir é muito doloroso. A escrita ajuda a tentar seguir", revela a terapeuta. Um dos exercícios propostos nessas situações solicita ao aluno que escreva uma carta para alguém que já se foi. É, na verdade, uma escrita para si mesmo, que visa colocar para fora a dor contida.
"A mulher, quando pode contar a sua história, se transforma"
Existe algo mais poderoso do que permitir-se sonhar e criar? No papel, é possível ser o que quiser, dado que a escrita terapêutica abrange também textos de ficção. Portanto, cada manuscrito lido por outros, carrega um pouco de si. Além de escritora e terapeuta, Lella é preparadora literária de manuscritos produzidos por mulheres. Oferece em seus cursos de capacitação desde aulas de gramática até marketing digital para escritoras, acumulando alunas do mundo inteiro.
O curioso é que a maior parte das pessoas que a encontram — e se encontram — por meio da escrita terapêutica publicam manuscritos posteriormente. É o caso da escritora Daphne Zabo que, a princípio, formou-se em direito e em letras, desejando tornar-se tradutora juramentada e, ao conhecer Lella pelas oficinas de mentoria literária, mudou de destino profissional.
O acesso à escrita terapêutica ocorreu em meio a mudanças de vida e a um processo de depressão. Redescobriu-se. "A escrita foi um passo para eu aprender a gostar mais de mim", relata Daphne.
Para quem pretende começar na escrita curativa, seguem as dicas: crie um hábito diário, quase como escovar os dentes. Escreva todos os dias, um parágrafo ou 10 páginas, o que quiser. Escrever sobre si sem qualquer tipo de amarra. Encontre-se. Comece. Escreva.
Sala de aula é palco para a escrita
Na escola, a preocupação com provas e vestibulares impossibilita aos alunos a produção de gêneros textuais que desviem da dissertação, transformando a escrita de redações em algo monótono e, muitas vezes, automático. Nas universidades, a situação não é diferente, e a elaboração de artigos e monografias torna-se um desafio, resultando em textos truncados e sem criatividade. E engana-se quem pensa que não é possível ser criativo em composições escolares e acadêmicas.
Mas, afinal, como chegar a isso? A escrita curativa pode ser uma saída, que apresenta, inclusive, muitos benefícios pessoais. É o que propõe Juliana Dias, professora e pesquisadora da Universidade de Brasília (UnB), que fundou, em 2018, o grupo de estudos Gecria — Educação Crítica e Autoria Criativa (@autoriacriativa), ligado à academia, à Secretaria de Educação e à comunidade. O projeto oferece aulas e oficinas de escrita curativa e criativa.
Juliana, que já trabalhava com os temas de educação, consciência crítica, leitura e escrita, conheceu, em 2015, a professora e escritora Ana Vieira Pereira e inspirou-se a retomar a escrita de textos literários, abandonados depois da adolescência. Levou o entusiasmo para a sala de aula, apresentando dinâmicas de escrita criativa em matérias iniciais do curso de letras. O resultado? Os estudantes melhoraram significativamente a produção de textos acadêmicos depois que desenvolveram a própria autoria por meio de exercícios guiados.
“O retorno dos alunos é inspirador; primeiro divertido e, depois, emocionante. Estratégias de desbloqueios são fundamentais no início e eles se encantam com as propostas. Além de quererem escrever mais, desejam compartilhar as produções com os colegas. Nisso, há a identificação com o texto do outro, criando cumplicidade, vínculo e mudança identitária”, revela a professora. Isso mostra que a escrita pode ser também um espaço de encontro e partilha. “Em comunidade, é possível mudar práticas e metodologias”, completa.
Na pandemia, as oficinas foram mantidas remotamente, com encontros destinados à produção de textos de ficção, cartas, autobiografias, entre outros. Os frutos dessas criações estão reunidos no livro lançado na última sexta-feira, chamado Autoria Criativa: por uma pedagogia da escrita criativa. No site e no Instagram do projeto, é possível conferir as oficinas realizadas pelo grupo, que são abertas à comunidade.
*Estagiária sob a supervisão de Sibele Negromonte
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