Em 11 de março de 2020, a Organização Mundial da Saúde (OMS) caracterizou o problema da covid-19 uma pandemia. Na época, foi preciso entender o termo, usado para indicar que a doença já havia se estendido por todo o globo. Com o passar do tempo, ficamos sabendo bem o que isso significava.
E entre lutas e conquistas, todos tiveram que dar seu jeitinho. Só cada um entende como foi se adaptar a dias em que pouco se sabia sobre a enfermidade e menos ainda sobre o que um futuro com ela reservava. Foram estragos que, infelizmente, nos acostumamos a ver em números, em balanços diários; outros tantos invisíveis, sentidos por lares em situação de vulnerabilidade e no dia a dia dos pequenos negócios.
Com a vacina, a coisa começa a andar. Há de se considerar também que a pandemia ensinou, despertou sonhos e vontades e mudou o senso do agora e do depois, forçando a tirar logo os projetos que estavam no papel — veremos, mais à frente, como se deram esses insights.
Então, dois anos se passaram. E em meio a uma temporada que tenta recuperar o otimismo, nada mais justo do que contar histórias de pessoas que deram um salto significativo rumo ao desenvolvimento pessoal, se encontraram e estão cada vez mais realizadas com as escolhas que fizeram.
Elas não perderam a esperança (ah, a tão falada esperança) e mudaram o que há tempos ansiavam fazer.
"Quero que meu trabalho mude o mundo"
A história de Jéssica Cardozo, 27 anos, é do nível "da água para o vinho". O emprego em um hotel de rede internacional até ia bem. Jéssica era reconhecida e tinha perspectivas de crescimento dentro da empresa. Podia até mudar de país se seguisse na hotelaria. Em 2019, paralelamente ao trabalho, decidiu voltar aos estudos e optou pelo curso de biologia.
Então, chega a vida com a covid-19. O hotel em que ela trabalhava ficou fechado por um tempo. Alguns funcionários foram dispensados. Jéssica, que tinha estabilidade, passou a trabalhar remotamente. Mal sabia ela que esse seria o início para um despertar. Acompanhando a filha de 9 anos, Emily Santos, nas atividades on-line da escola, percebeu a importância da educação no dia a dia das famílias. E mais próxima da rotina escolar da pequena, tomou gosto pela área.
A turismóloga de formação resolveu dar uma virada na carreira: "Tinha estabilidade no meu emprego, mas me sentia frustrada. Queria fazer algo que fizesse sentido à vida. A pandemia deu essa sensação de que nada é permanente. Aí, me joguei porque queria que meu trabalho tivesse um impacto no mundo".
Em 2021, surgiu a oportunidade de trabalhar em uma escola, uma vontade que já dava as caras antes, quando decidiu estudar biologia. Assim, iniciou como analista de relacionamento, um cargo comercial, mas que diz muito sobre acolhimento. Jéssica cuida das famílias, da proposta pedagógica e admissões do colégio.
Lá, conseguiu aproveitar a experiência em atendimento ao público do emprego anterior, mas, fora isso, pode-se dizer que saltou para bem longe do terreno da hotelaria. "Agora, estou em uma posição que nunca imaginei. Quando comecei, ganhava menos do que quando trabalhava no hotel. Lembro que meu chefe ficou surpreso quando pedi para largar, mas tudo foi fazendo sentido".
E parece que Jéssica se achou mesmo. Em um ano, ela foi nomeada líder da área de relacionamento da escola e atua na administração de equipes nas duas unidades. Sente-se realizada de ajudar crianças a serem acolhidas dentro da realidade de cada uma, ver que elas estão alcançando o potencial que têm e que as famílias estão felizes.
Atualmente, tem horários flexíveis e consegue trabalhar de casa quando precisa. Dá para acompanhar melhor a rotina da filha, levar e buscar na escola, coisa que era difícil antes, e estar presente nas apresentações da escola. Elas fazem planos para viajar. E tem mais. A vida fora do trabalho melhorou. Jéssica passou a se cuidar mais, preocupar-se com atividade física, começou a meditar e virou mãe de planta — tem mais de 80 em casa!
"Antes, sentia o estresse e a cobrança. Ia trabalhar, pensava no trabalho e, quando saía, continuava pensando no trabalho. A pandemia trouxe a possibilidade de, finalmente, eu me projetar como queria." De tão interessada na carreira que está construindo, ela quer estudar, e quem sabe até mudar, no futuro, para a área de análise de dados e business intelligence, que está tendo contato no trabalho atual.
"A mudança de carreira me recolocou nos eixos"
O medo de contrair o vírus da covid-19 não foi a única preocupação nesses dois últimos anos. Para muitos, o receio de perder a estabilidade financeira, em meio a tantas incertezas, foi também motivo de apreensão. Leonardo Gomes, 25, professor de formação, que o diga. As mudanças na dinâmica escolar e a promoção que nunca ocorreu foram a gota d'água para tornar real o desejo de mudar de carreira. Somado a essa novidade, o planejamento do seu casamento foi outro acontecimento marcante.
Habituado a uma rotina movimentada e em contato direto com os estudantes, o professor de ciências da natureza e ciências biológicas sentiu de forma intensa o baque da transição do presencial para o on-line. As interrupções constantes nas aulas, tanto dos pais dos alunos, quanto da própria família, deixaram-no ansioso. Além disso, as expectativas para tornar-se professor titular caíram por terra quando, no auge dos números de desemprego, foi demitido devido ao corte de gastos.
Mesmo com as dificuldades, conseguiu outro trabalho, em um colégio mais próximo de casa e com uma equipe mais acolhedora. Entretanto, as decepções com o emprego anterior e o salário bastante inferior o desapontaram. "Toda essa situação me deixou desmotivado, pois eu havia investido muito no plano de crescer na profissão de professor. Fiz duas especializações na área de educação e estava cursando uma graduação. Tudo pensando na escola anterior. Então, foi bem frustrante", desabafa.
Nesse contexto, o apoio da família foi essencial, visto que o trabalho remoto o fez retomar momentos de lazer ao lado dos pais e dos irmãos, com almoços e brincadeiras deixados de lado no período em que estava na faculdade. Já o contato com antigos amigos o possibilitou receber conselhos e orientações para uma nova guinada: a mudança de carreira. Incentivado, dedicou-se aos estudos de programação em 2021 e, em dezembro, foi contratado como programador júnior.
"Estou aprendendo cada vez mais e me empenhando para crescer na área. O fato de ser um setor que permite home office me motivou bastante; consigo, assim, ficar mais tempo com minha família. Essa transformação permitiu, em tão pouco tempo, eu me recolocar nos eixos e dar uma desacelerada", conta. Ademais, por ser uma carreira movimentada, sempre com novidades, as possibilidades de estabilidade financeira são maiores. "Quando fui mandado embora, estava recém-casado. Não quero passar por esse susto novamente", reforça.
O casamento, inclusive, foi a maior e melhor mudança para Leonardo. A cerimônia no cartório, em 2020, apenas com as testemunhas e os pais, e o jantar com os familiares mais próximos foi a comemoração ideal para os tempos caóticos. Para incluir todo mundo, os jovens utilizaram um site de casamentos, em que os amigos puderam deixar mensagens de felicitações.
Para a esposa, a estudante Larissa Schrammel, não faltam declarações de amor, e os planos para viverem mais histórias juntos estão firmes. "Ela é a pessoa que mais me dá suporte. Amo-a e sou muito feliz por ela ter topado essa aventura comigo. De brinde, ganhei uma família gigante e vários amigos. Esse ano, adotamos um labrador, o Charlie, que bagunça a casa inteira e nos acompanha enquanto trabalhamos. Agora somos três."
"Entrei em uma rotina fitness"
Amanda Queiroz, 27 anos, começou a emagrecer em 2019 porque queria usar um vestido especial na formatura de odontologia. A decisão, claro, não girou somente em torno disso. Ela havia passado boa parte da vida um pouquinho acima do peso e queria mudar. Mas a cerimônia foi, sim, o pontapé inicial. Chegado o dia, Amanda "entrou" no vestido e, mais que isso, sentia-se bem com alguns quilos a menos. Só que o desafio, depois, passou a ser o de manter os bons resultados e evoluir o pensamento rumo a uma alimentação mais equilibrada.
E, veja só, ao contrário do que aconteceu com muita gente, foi na pandemia que ela entrou para valer na vida fit. Se considerássemos aquele comentário que rolava no início da crise, de que a pandemia revelaria o melhor e o pior de cada um, Amanda pode dizer que se viu melhorando muito em termos de saúde e autodisciplina, mesmo diante da dificuldade de se manter ativa, já que as academias estavam fechadas.
"Começou com a história do vestido decotado nas costas, mas vi que precisava mudar tudo, ou quase tudo", lembra. Para continuar se exercitando, ela marcava com a personal trainer por chamada de vídeo e, mesmo quando fazia sozinha, seguia o protocolo que a profissional orientava. O espaço em volta da piscina de casa virou área de malhação. Com o treino adaptado, fez muitos agachamentos e usou, principalmente, pesos livres.
Detalhe é que Amanda havia recém-saído de uma dieta muito restritiva, da época em que o foco era emagrecer, e precisava, então, ajustar o que comia. Nos últimos dois anos, desenvolveu controle alimentar e passou a entender melhor o que fazia bem ir para o prato.
Sobre o processo todo, Amanda diz não ter sido fácil, mas que foi, definitivamente, transformador: "Se consegui manter os hábitos saudáveis e até evoluí durante uma pandemia, com vários impasses, não tenho motivo para não fazer isso pelo resto da vida".
Mas a pandemia não foi "só" de exercícios e cuidados com a alimentação para ela. Entre os impasses a que se refere, estava a missão de começar a trabalhar, recém-formada. Em 2020, Amanda passou a atuar em uma clínica que atendia casos urgentes. Trabalhava em turnos de 24 horas. Quando acabava, encaixava o treino.
Nesses dois anos, ainda completou uma especialização. Ano passado, chegou a trabalhar em três clínicas. Hoje, com espaço na empresa principal em que atua, atende na área que sempre sonhou, como cirurgiã dentista especialista. "Sou muito grata por, em um momento de tantas dificuldades e pessoas perdendo os empregos, ter conseguido evoluir profissionalmente", resume.
“Voltei a ser filha morando com meus pais”
Mudar de casa e iniciar uma reforma, em situações normais, já pode ser motivo de dor de cabeça. Em uma crise sanitária, essas preocupações são multiplicadas. Como apresentar, por exemplo, seu apartamento à venda para desconhecidos, sem medo de ser infectado? Para Ana Amélia Maestracci, 42, esse foi um dos primeiros sufocos da pandemia. Apesar do receio, teve a sorte de receber uma boa proposta e mudou-se ainda no início de 2020.
No começo, as notícias sobre a necessidade do isolamento foram marcantes para Ana, que recorda ter cancelado a festa de aniversário de 10 anos do filho com as novas determinações para conter o vírus.
Percebeu, com isso, a gravidade da situação, juntamente com as inúmeras dúvidas de como ficaria o dia a dia da família. As crianças passaram para o ensino remoto e o marido entrou para o teletrabalho. Também em home office, a servidora pública federal sentiu uma falta enorme dos encontros presenciais, que ainda hoje são restritos, apesar da maior adequação.
Além disso, em meio a tantas tarefas, dar continuidade aos estudos para um concurso público tornou-se um desafio, visto que demandava muito tempo e energia. Por isso, mesmo não mudando de emprego, definiu novos objetivos em relação ao que fazer por um tempo, redigindo artigos jurídicos e iniciando um mestrado.
Outra novidade ocorreu em conjunto com a amiga Gabriela Acioli: a criação de um perfil no Instagram sobre atualizações e conteúdos ligados ao mundo das licitações e dos contratos, chamado Diário de
Licitações, que conta com mais de seis mil seguidores.
Com o novo apartamento em reforma, a solução foi passar seis meses na casa dos pais, com os filhos e o marido. E esse foi um dos momentos mais gratificantes em meio a tantas mudanças e desordem. A
relação entre avós e netos se fortaleceu, dado que, antes, o contato entre eles era apenas semanal, nos almoços de domingo.
“A hora mais bacana era durante o jantar. Todas as noites, ficávamos reunidos por mais de uma hora na mesa; meu pai contava histórias da sua infância e juventude e nós morríamos de rir. As conversas
envolviam todos, inclusive minha irmã mais velha, que também estava morando conosco. Eu me senti filha novamente”, recorda. Com emoção, Ana relembra que os pais desejavam agradá-la a todo momento, mesmo que ela se sentisse mais responsável por cuidar e dar atenção.
Sua vitória é digna de reconhecimento
Diante de histórias tão vibrantes, é difícil não pensar em como elas se contrastam com o período vivido.
Jéssica Cardoso, por exemplo, disse que teve que fazer muita terapia para entender que ela tinha, sim, o direito de crescer, mesmo durante a pandemia.
Essa capacidade de tirar algo positivo de momentos difíceis e aprender, chamada de capacidade de resiliência, depende muito de cada pessoa. A psicóloga Maria Rita Zoéga Soares explica que, antes da pandemia, algumas pessoas já haviam desenvolvido meios de proteção para lidar com as dificuldades da vida.
São mecanismos que nos auxiliam e nos protegem de situações desafiadoras e podem ser tanto emocionais quanto físicos. Quem se propõe a praticar exercícios e se cuidar está desenvolvendo isso. Fazer alguma atividade manual, estabelecer relações, distrair-se, ter práticas espirituais… Tudo isso leva ao autoconhecimento e também funciona como processo de terapia. E vale continuar apostando nessas práticas mesmo agora, passados dois anos, porque terá função lá na frente, diante de outros momentos complicados.
Com incertezas e percebendo que não dava para querer ter controle de tudo, o caminho, para muitos, foi
considerar as mudanças necessárias e importantes (e adiadas) de serem feitas. E agora? Que atire a primeira pedra quem não tenha considerado e desconsiderado mudar algo nesses dois anos. E, talvez, tenha feito mesmo, como nossos entrevistados.
“Embora as perdas deixadas pela pandemia tenham deixado muitas marcas, percebemos que as pessoas
passaram a valorizar o que realmente importa — o simples, o genuíno, os próprios valores, o aqui e o agora, as próprias relações. Contrastando com o consumismo, com as aparências. É como se, agora, as pessoas estivessem dispostas a fazer escolhas que façam sentido para elas, tanto profissionais quanto ao estilo de vida e às relações que mantém”, analisa a psicóloga.
E em um momento de sofrimento coletivo, como aceitar as próprias conquistas? Maria Rita diz que o
olhar não deve ser egoísta. Entenda que a sua conquista é maior do que você mesmo. É preciso pensar
em termos globais, não individuais. “É compreender que vivemos em uma aldeia e minhas atitudes refletem na minha vida, mas também na vida do outro, no ambiente, na natureza. O altruísmo, além de
auxiliar a vida de outras pessoas, ajuda a nós mesmos, auxilia no próprio enfrentamento de situações
de estresse e traz bem-estar”, completa.
O maior ensinamento disso tudo, na opinião da especialista? A valorização da gentileza consigo e
com o outro. Se a dificuldade foi coletiva, a vitória merece ser também.
*Estagiária sob a supervisão de Sibele Negromonte
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