Meu dileto amigo está preocupado com o andar da carruagem. Mais um pouco, e ele se transforma em mais um arauto do fim do mundo, daqueles que carregam uma placa catastrofista ou mandam o povo olhar para o alto a procura de um cometa em rota de colisão para expiar a humanidade. "Acabou-se tudo", dizia a todo instante, sem ligar para o quase indecente cacófato. Era um evidente exagero, típico dos nossos dias, característico de uma mesa de bar, onde tudo assume ares dramáticos, ululantes e urgentes.
Estava indignado com seu ídolo Chico Buarque, depois de saber que ele havia renegado uma antiga canção — Com açúcar, com afeto — por romantizar uma relação abusiva contra a mulher. "Uma das minhas músicas favoritas", dizia da canção que narra, em voz feminina, um retrato da submissão.
Não chega a ser original a postura do compositor. Roberto Carlos ficou muito tempo sem mandar tudo pro inferno ou reconhecer que o bem e o mal existem, parando de cantar duas de suas canções mais populares, por exemplo. E ainda teve aquele ex-presidente da República que implorou para que as pessoas se esquecessem do que havia escrito.
No caso de Chico Buarque, meu amigo se incomodou com a autocensura de um autor tão censurado e com o fato de a música ter sido feita a pedido de uma mulher, Nara Leão, que encomendou o tema. "Não se pode apagar o que foi feito", disse. Não sossegou nem quando alguém perguntou: "E você, nunca se arrependeu de nada do que disse ou fez? Não gostaria de poder voltar no tempo?".
Não disse nada. Continuou remoendo sua frustração, enquanto os demais se lembravam de canções que hoje não seriam bem vistas aos ouvidos cheios de mi-mi-mi desses dias correntes. O machismo é tema popular. De Emília ("eu quero uma mulher, que saiba lavar e cozinhar") a Amélia ("achava bonito não ter o que comer"), passando por sucessos importados como Santeria, do Sublime ("Se eu pudesse encontrar aquela garota e aquele mexicano com quem ela se meteu, eu daria um tiro no mexicano e a espancaria"), e Run for your life, dos Beatles ("Eu preferia te ver morta, garotinha, do que te ver com outro homem").
O racismo também é muito presente no chamado cancioneiro popular. Tião Carreiro e Pardinho cantaram Preto de Alma Branca, Teu Cabelo não Nega ainda é uma das marchas carnavalescas mais populares, Fricote, de Luiz Caldas, ainda toca no rádio, Mulata Assanhada não perdeu o status de clássico e Minha Nega na Janela nunca manchou a carreira de Gilberto Gil.
Chico Buarque não quer mais cantar sua canção, e ninguém deve fazer o que lhe é incômodo. Mas essa mania de cancelar o passado na esperança de fazer o mundo girar ao contrário como na canção (e no filme) Super-Homem, de Gil, já passou dos limites do razoável.
Que os russos derrubem estátuas de Lenin, ok, até porque nenhum político deveria servir de inspiração para monumentos. Mas tirar o nome de Mané Garrincha do estádio é ridículo.