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A história que não está nos livros

Atriz Cinnara Leal comemora a voz dada aos personagens negros na novela Nos tempos do imperador

A experiência de viver a personagem Justina na novela das 18h da Globo, Nos tempos do imperador, tem sido intensa para a atriz Cinnara Leal. Ainda mais nessa reta final da trama, quando a personagem cresceu ainda mais. No primeiro trabalho de época de que participa na televisão, ela comemora a oportunidade de contar ao público uma história propositadamente excluída dos livros didáticos: o olhar do negro sobre o período regencial brasileiro.

"Temos a responsabilidade muito mais social do que de entreter e de contar o que a história não conta. Entender a época e subverter a época", afirma Cinnara, em entrevista ao Correio. Ela ressalta que a história de Justina é também dela e de todos os ancestrais. "A entrega foi tão intensa que precisei abrir mão de mim, de tudo. Entendi que precisava me desconectar para voltar à minha raiz, essa realidade que eu tinha que trazer", completa.

No início da novela, Cinnara confessa que demorava a se desligar de Justina. Chegava a ir para casa usando adereços da personagem. Mas essa era uma vivência que acabou sendo doída para a atriz e, aos poucos, ela foi mudando de atitude e ficava no estúdio escutando músicas que a levassem para outros universos. Em casa, fazia também uns banhos de ervas.

"(O processo) foi doloroso, intenso, forte e lindo porque a Justina é necessária para ser mostrada, vista e ouvida. São temas urgentes que precisam ser abordados. A novela tem a função de entreter, mas, principalmente, informar, alertar, conscientizar e transformar. Por isso, a extrema importância da arte nos questionar como sociedade, mostrar o quanto resistimos pra chegarmos até aqui e o quanto reproduzimos modelos antigos de desvalorização e exclusão do negro", lembra a atriz.

A reação e o interesse do público tem deixado Cinnara satisfeita com o trabalho: "Fico feliz que as pessoas querem ver e ouvir nosso ponto de vista da história. Estamos levando informação, descolonizando olhares para trazer outras perspectivas a essa narrativa. A novela está a serviço do público, da história, e esse período trouxe muita dor, foi muito apagamento. Somos atravessados até hoje pelo o que foi vivido naquela época."

Três perguntas // Cinnara Leal

A novela foi gravada em meio à pandemia, tendo as gravações interrompidas e retomadas de acordo com as medidas sanitárias. Você teve covid. Qual foi a sensação de voltar a gravar depois da doença?

Foi muito difícil. Não tem como estar bem quando o mundo vai mal. Sempre pratiquei atividade física e tive 25% do pulmão comprometido. Então, é de extrema importância conscientizar as pessoas. Já era defensora da vacina porque acredito na ciência, mas, depois de passar por essa doença, sou mais ainda. Não só acredito na ciência como fui salva por ela.

Como foi rodar as sequências relativas à escravidão ou à abolição. Imagino que deve ter sido forte, não?

Foram duas semanas de luta para continuar as gravações, enquanto meu corpo reagia a essa catarse emocional. Eu tinha calafrios, febres, meu corpo inchou a ponto de eu ir parar duas vezes na emergência achando que era alergia mas nada adiantava. São dores e lutas que permeiam até hoje as pessoas pretas. Essas características ultrapassaram Justina e, inclusive, a mim. Reviver essas histórias machuca, dói e isso está no físico também. Transbordou o meu emocional. São emoções ancestrais. As nuances da personagem estão todas ali, sentidas, vividas e não interpretadas. Senti na pele as dores de uma época triste, mas de muita resistência do meu povo, da nossa história.

Justina é mulher e negra no século 19. Você tem as mesmas condições dois séculos depois. Poderíamos ter caminhado mais rumo à igualdade social e racial?

O que vejo e sinto é que, cada vez mais, tomamos consciência e valor de quem somos. Digo isso porque não nascemos negros, nos tornamos negros, isso sim já mudou e será a partir de nós, para além de nós. O racismo é estrutural. Vivemos as sequelas de um país colonizado e escravocrata e isso está entranhado no brasileiro. O racismo é a manutenção do poder, do privilégio. A falta de política de inserção dos negros em todos os aspectos, social, cultura e econômico se mantém até hoje. A mudança é um processo, e a luta é constante. Ela não é só minha, é nossa.