Dentre as decisões da vida, temos aquelas que dizem respeito a constituir família. Casar ou não. Um filho ou vários. Ou nenhum. Mas o que deveria ser uma escolha, vira estigma. Na prática, supõem-se que a mulher que não tem um parceiro nem filhos está fadada a ser solitária pelo resto da vida. Infelizmente, esse pensamento tem lugar na linguagem popular: o "fiquei para titia" se refere à mulher que, com certa idade, não se casou ou disse "não" à maternidade.
O termo ainda é usado em tom pejorativo, como algo que as mulheres devem temer. A mulher que nenhuma outra gostaria de ser. Será mesmo? A sociedade engatinha para um olhar mais natural sobre essa questão: "O 'fiquei para titia' carrega uma cobrança pesada. Mas, cada vez mais, as mulheres conseguem assumir para si mesmas e para os outros que, por qualquer motivo, decidiram, não quiseram ou não puderam se tornar mães", avalia Stella Azulay, fundadora da Escola de Pais XD, Educadora Parental e especialista em análise de perfil e neurociência comportamental.
No Brasil, 37% das mulheres não querem ter filhos, apesar das pressões sociais e culturais. A nível mundial, esse número sobe para 72%. Os dados são de uma pesquisa realizada pela Bayer, com apoio da Federação Brasileira de Ginecologia e do Think about Needs in Contraception (Tanco).
E engana-se quem pensa que elas são menos felizes por isso. "Para algumas mulheres, a maternidade pode até fazer falta. Para outras, não. É difícil colocar isso como argumento biológico. Não nos cabe julgar nada, nem ninguém, mesmo que não concordemos. Cada ser humano é um universo complexo, independentemente de ser mulher, mãe, homem, pai", ressalta Stella.
E os sobrinhos e afilhados que passam pelas vidas delas? Ficar para a titia — e ser tia — envolve muito carinho e, claro, amor verdadeiro. A Revista conversou com mulheres que não tiveram filhos ou não chegaram a se casar, mas exercem nos sobrinhos, sejam biológicos, sejam por afinidade, um pouco da maternidade, sem os ônus e as responsabilidades que ela traz.
Sobrinhos do coração
"Meus sobrinhos são a razão da minha vida", define a administradora de empresas Alessandra Cabral, de 54 anos. Sabe aquela super tia? Alessandra sempre foi muito participativa, desde a infância dos pequenos. Marcou presença em todos os eventos escolares e já fotografou muitos momentos especiais. Até hoje, com os sobrinhos já adultos, a convivência é para lá de especial.
A pressão social para o tal desejo materno não foi um problema. Alessandra nunca foi de se importar muito com isso. No caso dela, a descoberta de um pólipo e, mais tarde, de um câncer no endométrio, logo depois de casada, escreveram um caminho diferente no que diz respeito à chance de engravidar. Alessandra precisou tratar essas condições, há mais ou menos 20 anos, e confessa que foi um susto na época.
Ela e o marido chegaram a considerar algumas alternativas para ter um bebê, mas o fato de já terem sobrinhos os encaminhou para um outro destino: "Eu com quatro, ele já tinha um. As crianças supriam nossa necessidade de ter um pequeno em casa". A decisão, então, tomada de maneira conjunta e tranquila, foi cuidar um do outro.
O jeito para lidar com crianças já foi motivo para os outros questionarem o fato de Alessandra não ser mãe. Mas só ela sabe as razões e não precisa dividi-las ou explicá-las com ninguém. Sem filhos e, sim, bem-resolvida com isso.
Hoje em dia, Alessandra conta que os sobrinhos adoram dar uma passadinha na casa dela para pegar um ou outro chocolate. "Casa de tia, sabe? Não costumo cozinhar, pelo contrário, tenho várias besteirinhas disponíveis. É desculpa para nos vermos".
Por trás da expressão
Mesmo diante de tantas conquistas, a esfera doméstica ainda permanece como um espaço historicamente — e exclusivamente — reservado às mulheres. A cientista social Lella Malta explica que há um trabalho invisibilizado nas tarefas do lar, que não somente não é remunerado como sequer tem status de trabalho. “Estamos exaustas desse acúmulo de papéis sociais que são esperados que as mulheres cumpram”.
A maternidade compulsória é fruto dessa lógica. É a crença de que mulheres só serão plenas quando marcarem o check na função mãe — dentre as outras tantas tarefas da lista da feminilidade. E isso quase que no automático, mesmo que não sintam vontade de procriar. “Se sem filhos, a mulher não é amada nem realizada, então, perde a autonomia no controle da própria função reprodutiva”, ressalta a cientista.
É preciso coragem para que mulheres como Alessandra Cabral rompam e questionem a maternidade como suposto propósito feminino. E, mesmo as que desejam ser mães ou já consideraram a possibilidade, podem ampliar o debate para que todas tenham voz. Num movimento coletivo, para Lella, é importante que todas as mulheres se coloquem a favor da escolha.
Prioridades
De uma forma diferente de Alessandra, Juliana Vieira, optou por não ter filhos, apesar do desejo pela maternidade desde a infância: "Eu tinha esse objetivo e acreditava que minha vida seria bem resolvida aos 25 anos, que, com essa idade, eu teria estabilidade emocional, financeira e filhos", conta. Hoje, aos 28, vê a vida de uma forma mais realista, mas sem deixar de sonhar.
A brasileira estuda medicina em Buenos Aires, Argentina, e está em um relacionamento sério. A decisão de não ter filhos veio antes da relação. A namorada até pensava em ter filhos, mas, no momento, as duas compartilham o mesmo pensamento sobre o tema. Embora a maternidade não esteja nos planos delas, o carinho pelas crianças continua. Aliás, não ter filhos não é sinônimo de detestá-las! Juliana tem três primas pequenas e um afilhado, além de outras crianças na família.
No momento, a convivência está dificultada, por ela atualmente morar em outro país. Mas Juliana esteve presente principalmente na primeira infância delas e guarda com carinho os momentos que viveu com os parentes. Mesmo com as primas, sempre esteve em uma posição muito similar a de tia, porque foi uma rede de apoio para as mães, ajudando quando necessário e levando os pequenos para passeios.
"Meu papel era de coadjuvante, porque eu ficava um certo horário com as crianças e, às vezes, até passava o final de semana, mas chegava o momento em que eu os devolvia para as mães, então era como ter e não ter uma responsabilidade", relembra Juliana. Essa relação natural que desenvolveu pelos entes queridos, além de aliviar a rotina das mães, cria laços insubstituíveis que a colocam na posição de tia divertida da família.
Apesar de contar com alegria e orgulho as histórias e do carinho que nutre pelas crianças, ela conta que o processo até tomar a decisão de não ser mãe não foi fácil: "Foi muito desgastante, pois sempre foi um sonho meu. Também foi doloroso aceitar que eu tinha essa escolha porque até então eu achava que estava intrínseco às mulheres ter esse desejo de ser mãe".
Uma das razões para a escolha é a responsabilidade e necessidades de criar um filho, que não se encaixavam na realidade que ela vive no momento, além do contexto global e as dificuldades de criar outro ser humano. "Apesar de ser um processo que levou anos, hoje, sou feliz com essa decisão de não querer ter filhos, não mexe comigo, eu encaro como algo bem natural", afirma.
Tias do cinema
Um presente para Helen
Nessa comédia, Helen (Kate Hudson) é nomeada guardiã dos sobrinhos depois que a irmã e o cunhado morrem em um acidente de carro. Ela precisa, então, adaptar a vida ocupada em Manhattan para cuidar das crianças e acaba descobrindo um novo lado de si.
Homem-Aranha
Mesmo que você não seja o maior fã de Homem-Aranha, sabe da existência da Tia May, personagem central na vida do herói, que sempre o apoia. Tia May já foi retratada de diferentes formas e, no longa de 2021, Homem-Aranha: Sem Volta para Casa, aparece mais jovem, sem o estereótipo de tia velhinha.
*Estagiária sob a supervisão de José Carlos Vieira
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