Especial

Pessoas transformam adversidade pessoal em solidariedade

Aproxima-se o Natal e as pessoas, naturalmente, tornam-se mais solidárias. Algumas, porém, praticam ações em prol do outro o ano inteiro. A Revista conta histórias de gente que transformou um problema pessoal em doação ao próximo

A religiosidade e a questão cultural fazem do Natal uma época de presentear e de se doar. "No final do ano, as pessoas fazem uma retrospectiva e refletem. Muitas, como forma de resgatar o atraso do que não cumpriram ao longo dos outros meses, aproveitam para fazer uma boa ação", avalia a psicóloga Alessandra Araújo.

E a pandemia de covid-19 tem dado força à comoção e a esse espírito de solidariedade, segundo a especialista. É que a vulnerabilidade foi escancarada de todas as formas e em todos os cantos. "Com isso, deixar comida ou compras na porta de idosos, grupo de risco para o novo coronavírus, tornou-se algo mais comum. Nesses últimos tempos, vimos as pessoas arranjando bandas para tocar nas quadras, pensando no coletivo, para entreter a comunidade, não é? Muita gente também intensificou a doação de comidas e itens que tinha em casa", exemplifica a psicóloga.

Há ainda quem tenha passado por baques e dificuldades, antes ou depois da pandemia — uma doença, uma perda na família — e, com o emocional desafiado, tende a enxergar melhor o lado de quem sofre. De acordo com Alessandra, experiências do tipo estimulam ações mais ativas de solidariedade. É que, normalmente, essas pessoas já desenvolveram empatia e, ao se compadecer com a dor do outro, querem encontrar formas para, de fato, ajudar. "Não quer dizer que quem não tenha passado por algo marcante assim não possa se doar. Pelo contrário, todos devemos fazê-lo", completa.

Para se inspirar, a Revista conversou com mulheres que passaram por momentos desafiadores e, mais que praticar uma boa ação esporadicamente, hoje, tocam iniciativas que são verdadeiros projetos de vida — delas e dos outros.

Como uma princesa

Situação que já não é fácil para ninguém, Sophia Camila Vieira Magalhães, 6 anos, passou a ter uma rotina de idas a hospitais, necessidades especiais e receios antes mesmo de completar um ano de vida. Ainda aos 3 meses, ela foi diagnosticada com atresia das vias biliares (AVB).

Na AVB, os ductos por onde passam a bile, as gorduras e outras substâncias ficam, progressivamente, obstruídos. É a causa mais comum de transplante hepático em crianças, que foi o caso de Sophia. Depois de muita espera na fila de transplantes, quem acabou doando o fígado para a pequena foi a tia, que descobriram ser compatível.

Mas por causa do imunossupressor que tomava para cuidar do fígado, Sophia desenvolveu linfoma de burkitt, câncer do sistema linfático, em 2019. O tumor era do tamanho de um mamão papaya na barriga.

Nesse meio tempo, a família de Sophia se mudou de Porto Seguro, na Bahia, para o Distrito Federal, porque os pais tiveram uma oportunidade de trabalho. Aqui, Sophia fez alguns blocos de quimioterapia no Hospital da Criança de Brasília (HCB). Durante o tratamento, ela recebeu uma tiara, na cor crua, de uma assistente social da Abrace. Para a menina, lembrava uma tiara do filme Frozen, animação da Disney. "Sophia  ficou encantada. Quando carequinha, não tirava o acessório da cabeça", lembra a mãe, Isleila Vieira, 40 anos.

Acalentando corações

Diante da felicidade da filha, Isleila trocou a formação em administração e especialização em hotelaria para tentar o artesanato. Com incentivo da avó paterna de Sophia, decidiu, então, fazer tiaras com detalhes em lã para ajudar pacientes e famílias que estivessem passando pela mesma situação que a deles. A doação virou algo regular.

"Se tem alguma criança em tratamento oncológico, o carinho e o amor da tiara acalentam um pouco o coração", diz Isleila. A cada duas tiaras vendidas, uma terceira é doada para o Hospital da Criança e para a Abrace. O negócio também busca apoiar outras instituições Brasil afora. São seis modelos com lã e outras opções com fio de malha.

A ideia deu certo e vem se consolidando. Hoje, o projeto Tiaras de Amor expõe em feiras — "processo burocrático", segundo Isleila — e em negócios de outros comerciantes, que abrem espaço para ela apresentar a produção.

Assistida pela Secretaria de Turismo do DF, ela tem levado a boa ação também para as redes sociais. Isleila já planeja lives com quem está na manutenção do câncer, para levar histórias de esperança, além de conteúdo para o público geral, para que as pessoas fiquem atentas aos sinais da doença, que, no caso de Sophia, foram vômito, diarreia e febre recorrentes.

Hoje, a menina concluiu o tratamento. Faz acompanhamento com uma equipe de oncologistas e se consulta, anualmente, no hospital Sírio Libânes em São Paulo.

Fotografia para todos

ED ALVES/CB/D.A.Press - 07/12/2021. Crédito: Ed Alves/CB/D.A Press. Brasil. Brasília - DF. Revista. Pessoas com deficiencias, as irmãs Carol Peres e Juliana Peres (Juju). Carol tem uma ONG chamada Lente Cultural. Nela, organiza ações para pessoas com deficiência. A irmã, Juju, tem deficiência e trabalha no projeto. Carol Peres tem uma ONG que, entre outras ações, ajuda pessoas com deficiência, assim como a irmã Juju, a fotografar

Juliana Peres, 33 anos, mais conhecida como Juju, cresceu em meio à fotografia. Pai, irmã, irmão — e outros fotógrafos que ela considera tios — são todos da profissão. "Posso não estar com eles no dia a dia, mas sempre arrumamos tempo para nos ver. Domingo passado, tomamos café da manhã juntos", lembra. Não tinha outra: ela também carrega a paixão por fotografia, que veio, principalmente, por influência do pai. Ainda guarda a primeira máquina fotográfica, dada por ele.

Juju é uma pessoa com deficiência e, entre o trabalho de servidora pública e várias outras atividades, que incluem um grupo de percussão, é também assistente do Festival Mês da Fotografia, projeto do pai, Eraldo Peres. A iniciativa é da ONG Lente Cultural, da qual a irmã dela, Carol Peres, 40, é produtora e coordenadora. Prova de que a fotografia realmente permeia todo o ciclo familiar.

A ONG Lente Cultural organiza ações na área de artes visuais desde 2010. Leva exposições, em parceria com o Sesc, para as regiões administrativas do DF. Já passaram por Ceilândia, Sol Nascente, Riacho Fundo e até outros estados. A ideia é abrir espaço para pessoas iniciantes no ramo.

Carol conta que as atividades do negócio sempre levaram em consideração a inclusão de pessoas com deficiência (PCDs) e outras minorias que têm dificuldade de acesso à cultura. Mas, até o ano passado, o Mês da Fotografia, que acontece em agosto, não havia contado com uma categoria exclusiva para PCDs. Pensando nisso, a edição de 2021 foi encorpada com oficina de fotografia para pessoas com deficiência visual e uma para deficientes auditivos.

"Fui monitora inclusiva da edição deste ano. Antes disso, participei de um treinamento para entender melhor como guiar uma pessoa deficiente visual ou uma pessoa que é cadeirante, foi superemocionante. Eu, que sou uma pessoa com deficiência, entendi como me comunicar melhor com outra pessoa com deficiência", conta Juju.

Experiência

Na edição deste ano, a presença de Juju foi além dos bastidores: "Juju foi quem fez a leitura descritiva do conteúdo, que incluiu palestras e apresentações", diz Carol. Para Juliana, a participação em atividades de promoção do festival a fizeram se sentir importante: "As pessoas foram descobrindo que eu me comunicava bem e, aos poucos, minha irmã foi me chamando mais e mais para divulgar o festival. É trabalhoso decorar falas e fazer gravações, mas gratificante".

Já fez curso na Escola Brasiliense de Fotografia, onde se apaixonou por sombras. No auge da pandemia, fez uma série de fotos em casa, usando máscaras, luvas e a luz da janela. "Registrei a minha interpretação de como superaria aquele momento", diz. A produção vem sendo bastante reconhecida. Mesmo com experiência na área, Juju se considera uma fotógrafa amadora.

Apoio à autoestima

Arquivo pessoal - Roberta Gaspar de Andrade, que perdeu a mãe para o câncer de mama, doa perucas para pacientes que vivem a mesma situação

Roberta Gaspar de Andrade, 42, perdeu a mãe, Zizelda Gonçalves de Andrade, aos 50 anos, para o câncer de mama. Depois do ocorrido, doou os pertences de Zizelda para o Hospital de Base, na Rede Feminina de Combate ao Câncer, conforme desejava a matriarca.

Quando foi ao local entregar as perucas e os lenços, ela se deparou com nove mulheres que se encantaram pelas doações. Daí partiu a ideia de criação da campanha Perucas do Bem, que confecciona perucas que são doadas a pacientes em tratamento de câncer no Distrito Federal. O projeto quer renovar
a autoestima dessas mulheres, o que as ajuda a seguir um caminho melhor, apesar da doença.

Roberta conta que as perucas são feitas com fios naturais, doados. É preciso uma quantidade mínima de 300 gramas para confeccionar cada uma delas. Os fios são, primeiro, higienizados, e, depois, passam por uma tecelagem, que requer uma tela específica. Para a montagem da peruca, é preciso uma base e uma touca também específicas.

“O grupo é incrível. Dona Margarida, que ajudou a cuidar de minha mãe, é quem monta as perucas. Minha irmã faz a parte da costura. Tenho amparo também para cortar, pintar e hidratar os fios”, conta. E toda a ajuda é bemvinda. Para arcar com o custo final, que chega a R$ 250, o Perucas do Bem aceita doações de cabelo, mão de obra e dinheiro.

ED ALVES/CB/D.A.Press - 07/12/2021. Crédito: Ed Alves/CB/D.A Press. Brasil. Brasília - DF. Revista. Pessoas com deficiencias, as irmãs Carol Peres e Juliana Peres (Juju). Carol tem uma ONG chamada Lente Cultural. Nela, organiza ações para pessoas com deficiência. A irmã, Juju, tem deficiência e trabalha no projeto. Carol Peres tem uma ONG que, entre outras ações, ajuda pessoas com deficiência, assim como a irmã Juju, a fotografar
Arquivo pessoal - Roberta Gaspar de Andrade, que perdeu a mãe para o câncer de mama, doa perucas para pacientes que vivem a mesma situação