Cidade nossa

A virtude do chato

Não é difícil encontrar pessoas autodepreciativas hoje em dia. Normalmente, elas andam com uma nuvenzinha preta sobre a cabeça, que a gente vê de longe; e não é apenas um subproduto da crise moral que o país vive, embora certamente seja um fenômeno influenciado pela vida moderna, cheia de regrinhas não combinadas antes e que não entendemos, em que até a ironia vem sendo condenada.

Estamos todos sob escrutínio, em revisão permanente, como se fosse preciso apagar o passado para avançar. E assim acreditamos que a mudança de nome de ponte, a derrubada de uma estátua de um herói transformado em vilão, o vandalismo em símbolos religiosos, são mais importantes do que ações efetivas. Apenas porque é como queríamos que o passado tivesse sido.

Mas isso é apenas uma digressão para chegar ao ponto: a autocomiseração. Normalmente, são pessoas que estão de mal com a vida, que veem a existência como um estorvo, que não sabem o que fazer numa manhã ensolarada ou numa noite fria. Estão sempre de cabeça baixa, cheio de lamentos. Mas há quem se orgulhe da condição e faz questão de espalhar o — supõe-se — defeito.

Era bem no início da tarde quando ele se aproximou da rodinha que, claro, tratava da filosofia da vida e do Campeonato Brasileiro naquele boteco improvisado. Não era um desconhecido, mas precisava ser apresentado a alguns no recinto. Como ninguém se animou a apresentá-lo, logo depois de uma rápida — embora desnecessária — intervenção, ele disse, de bate-pronto: "Desculpe, eu sou um chato!".

Era a primeira vez que víamos alguém se introduzir assim, com uma eiva. Normalmente, para ser aceito, o sujeito precisa dizer alguma compostura, que possa contribuir com o grupo social. Mas como o mundo anda diferente, talvez alguém prepare uma lei com sistema de cotas obrigando a presença de chatos nas rodas de cerveja, como era o caso.

Passada a estranheza, o rapaz mostrou que tinha ao menos uma virtude: não era mentiroso. É mesmo um chato. E dos grandes. Metia-se em tudo, falava alto, lançava perigosos perdigotos pelo ar e, embora inteligente, era — característica de todo chato — repetitivo e veemente. Atrapalhava o papo que precedia o almoço e deu-se o fenômeno tão conhecido quanto a pororoca amazônica: o espalha-bolinho.

O chato tem esse poder. Uma vez que ele se instala, só uma ação radical pode resolver o problema. Talvez por isso aqueles piolhos pubianos receberam o apelido de chato. São resistentes a bomba de Flit, Detefon, Baygon e, às vezes, até a Ivermectina. Daí, o único jeito é a depilação. No nosso caso, o isolamento resolveu.

Levantamos do boteco improvisado para mudar de ares, porque ainda não havíamos terminado os assuntos. A roda foi recomposta algumas quadras à frente, mas é claro que o chato, ainda que ausente, continuou por ali; virou assunto principal e esquecemos as relevantes tratativas. Chegamos à conclusão de que o chato aborrece mesmo que esteja longe.

O pior é que no próximo sábado ele certamente estará lá. E nós não estamos preparados para abandonar o boteco improvisado. Alguma sugestão?