“A família é a base de quem somos. Expectativas, dons, valores, traumas e crenças são herdados dela.” A definição do terapeuta e instrutor de constelação sistêmica Alex Possato não deixa dúvidas de que a família é o maior referencial e porto seguro de um indivíduo. Mas o papel fundamental que ela desempenha em nossas vidas nunca foi tão valorizado quanto durante a pandemia da covid-19. O isolamento social provocou uma ressignificação das relações e tradições, como também fez com que se redescobrisse a importância da união e da boa convivência.
A empresária Simone Fleury, 54 anos, é muito ligada à família nuclear, formada por dois irmãos, além das figuras materna e paterna. As datas comemorativas são ocasiões muito valorizadas por todos eles, e o encontro na chácara uma tradição especial. “Família, para mim, é essência, raiz, sustentação. Boa parte do que somos vem dos nossos laços de sangue”, afirma.
Esse vínculo de proximidade é ainda mais fortalecido pelo fato de Simone trabalhar com o pai, Benedito Fleury, e com os irmãos, Ricardo e Juliano. Juntos, eles passaram pelos desafios impostos pela pandemia no setor empresarial e se apoiaram mutuamente durante todo o processo. Os laços de Simone com a mãe, Maria Helena Alves, por sua vez, se estreitaram durante o isolamento em razão de elas serem vizinhas. A responsabilidade de cuidar da mãe e garantir que ela não se sentisse sozinha recaiu sobre os ombros dela, uma vez que o restante da família estava receoso de visitá-la.
“Eu e minha mãe moramos em casas diferentes, mas dentro da mesma chácara. Por isso, eu era a pessoa que fazia a ponte, que levava o mundo para ela. Como minha mãe não podia ficar completamente sozinha, continuei convivendo com ela, mas tomando o máximo de cuidado.” Quando a saudade do resto da família apertou, Simone promoveu uma chamada de vídeo, via Zoom, para que cada um pudesse “sentir um ao outro, sem estar presente fisicamente”.
O valor do abraço
O mais difícil para os Fleury, durante este período, foi controlar o desejo de expressar e receber carinho. Simone conta que o abraço ocupa um espaço de destaque na dinâmica familiar dela: “A gente sentiu muita falta do contato. Não poder ter esse contato mais próximo e compartilhar afeto foi, e ainda está sendo, muito complicado”.
A primeira oportunidade que a família pôde se reencontrar foi no aniversário da matriarca. Na tentativa de transpor as barreiras do distanciamento que ainda a separava dos filhos, a mãe de Simone arranjou uma capa de plástico. “Ela se cobriu nessa capa só para poder receber abraço dos filhos. Nem sabemos onde ou como ela conseguiu o objeto”, brinca.
Da experiência da pandemia, Simone extraiu uma percepção mais clara sobre o valor da união familiar. “Ter essa unidade faz muita diferença neste período. Perceber que, mesmo em meio à diversidade, a gente encontrava formas de se manter em contato e de se alimentar emocionalmente de alguma forma foi muito precioso. A família passou a ter um sabor ainda mais especial para mim.”
A importância da família é tanta que pertencer a uma é um direito garantido no Estatuto da Criança e do Adolescente. O especialista em políticas públicas para a família, Rodolfo Canônico, fundador e diretor-executivo do Family Talks, ressalta o papel fundamental e insubstituível dos laços de parentesco: “Tanto a criança quanto o jovem precisam ter uma relação familiar para se desenvolver, seja na sua família natural, seja, em casos excepcionais, em uma substituta. Isso implica um dever do Estado e da sociedade de garantir que todas as crianças e jovens tenham uma família”.
A psicóloga clínica Stephanie Gutierres, especialista na abordagem sistêmica, acredita que a família também é responsável por inserir o indivíduo na comunidade. “Desde o nascimento, os parentes são a nossa principal forma de contato e o nosso referencial para se colocar no mundo. Além da função de proteção, eles oferecem os recursos de afeto, fazendo a nossa entrada no laço social”, explica.
Adaptações necessárias
Para toda “família raiz”, as tradições de almoço nos domingos, festas de aniversário e encontros em datas comemorativas são compromissos seguidos religiosamente. “As relações trazem a marca da família, o senso de pertencimento. E, muitas vezes, a gente não enxerga certas coisas como tradições passadas de geração em geração. Mas qualquer hábito que se repete e é transmitido ao longo do tempo é uma tradição”, define a psicóloga clínica Stephanie Gutierres.
Na pandemia, essas tradições tiveram de ser pausadas ou repaginadas para atender às necessidades da nova realidade. A psicóloga avalia que algumas famílias sofreram mais, enquanto outras se adaptaram com mais facilidade: “Quanto mais seguro e flexível às mudanças de rotina e de crenças for o ambiente familiar, mais essa mudança de tradições será vivenciada de forma saudável. Já se a família tem um padrão rígido, isso provavelmente será vivenciado de forma mais sofrida e até com conflitos”.
Na visão do terapeuta Alex Possato, a pandemia provocou mudanças sobre diversos conceitos que as pessoas tomavam como verdades absolutas. “O sentido do trabalho, das relações, do estudo, do crescimento financeiro, da saúde e até o sentido do viver são pontos que tiveram que ser repensados.”
Gincana virtual
Acostumado com os tradicionais eventos da sua “grande família”, em Patos de Minas (MG), o professor Leonardo Eustaquio, 44 anos, sentiu o impacto da privação de encontros presenciais. “Essa promoção de encontros, essa presença afetiva de todos é muito importante e muito cultivada por nós. Além do Natal, tentamos estar juntos em outras datas, como nas férias. Já alugamos um ônibus e viajamos para a praia todos juntos”, conta.
Após várias chamadas de vídeo, já saturados dos mesmos assuntos, Leonardo e alguns primos tiveram a ideia de organizar uma “gincana virtual” para animar, e de quebra, instigar o espírito competitivo de todos. “Começamos a pensar em alguma coisa que pudesse movimentar e dar um norte para os nossos encontros. E aí surgiu a ideia de fazer uma brincadeira. Essa tradição de jogar, de competições saudáveis faz muito parte da nossa família. Quando nos reunimos em Patos, costumamos jogar truco, jogos de tabuleiro e adedonha”.
Durante um ano, todos os domingos, entre as 18h e as 18h30, os familiares se reuniam, via Zoom, e faziam uma atividade da gincana. “O legal é que a conversa começou a ter fluidez, as pessoas puderam se divertir, trocar ideias, trazer lembranças e revisitar as memórias do passado”, descreve. A cada semana, a comissão organizadora, formada pelos quatro primos, incluindo Leonardo, elaborava uma prova com uma temática diferente. Provas de fotografia, música, culinária, mímica e pilates foram algumas das que entreteram os finais da tarde dos 45 integrantes.
O professor afirma que a gincana se transformou em um compromisso fixo na agenda de todos. “Eu lembro que, quando era criança, quando ia para a casa da minha avó, ela tinha um fogão a lenha e, muitas vezes, torrava café ou fazia pamonha. Enquanto ela cozinhava, todo mundo ficava em volta. Para mim, essas reuniões virtuais são como se fosse a família reunida ao redor do fogão da minha avó, com todo mundo batendo papo e compartilhando experiências”, compara.
Ao final de cada disputa ainda era feito um ranqueamento da “melhor receita” ou “da melhor mímica”, o que, segundo Leonardo, contribuiu para que toda a família se motivasse a participar. Para ele, as gincanas amenizaram a angústia e a solidão coletiva, sentida principalmente pelos mais velhos: “Até porque algumas provas exigiam uma organização que ocupava a semana inteira, então envolvia muito a cabeça das pessoas, além de dar oportunidade para que elas ficassem em contato”.
Impactos gerais
Mais do que um pilar de amor incondicional, a família se tornou um espaço de proteção do mundo exterior durante o período pandêmico. “Se diz até, na nossa legislação, que as famílias formam redes de proteção social, e a pandemia explicitou isso, justamente por ser um núcleo muito pequeno, em que as pessoas estão ali devotadas aos cuidados umas das outras e conseguem se organizar melhor diante das dificuldades”, destaca o especialista em políticas públicas para a família Rodolfo Canônico.
Contudo, como a maioria dos setores da sociedade, o ambiente familiar também foi afetado pelo novo cenário. Problemas emocionais e de convivência foram realçados durante este período. A psicóloga Stephanie Gutierres observou impactos mais intensos na família nuclear: “Sintomas de depressão, ansiedade, dentre outros, foram agravados durante esta fase, o que gerou um impacto dentro de casa, afetando a comunicação e a resolução de conflitos entre os parentes. Famílias que já tinham alguma vulnerabilidade, algum risco estressor, viram os conflitos se intensificarem”.
Uma vez que a rotina de cada membro da casa precisou ser revista, as famílias tiveram que estabelecer novos acordos para garantir harmonia. “Aí vem a importância de as pessoas estarem revendo suas posturas, seus combinados e tentando ter uma flexibilidade de acordos”, aponta Sthephanie. Em relação à família extensa, ela notou um afastamento: “As pessoas foram se esgotando, aos poucos, de ficar se comunicando apenas por celulares e computadores. No início da pandemia, se utilizava mais desses recursos, mas com o tempo, eles passaram a ser menos usados, provocando um afastamento”.
Para Alex Possato, o mergulho forçado nas questões emocionais, como impotência, medo, dor e raiva, foi um dos maiores desafios da pandemia. No entanto, ele acredita que, dessa jornada interior, brotaram sentimentos positivos e processos de cura: “As famílias foram convidadas a se apoiarem para minimizar essas dores emocionais. Aquelas que conseguiram perceberam o quanto este momento despertou amor, solidariedade, tolerância. Muitos puderam resgatar vínculos que estavam perdidos. Os mais fortes, emocionalmente falando, puderam auxiliar aqueles que fraquejaram e, sob esse aspecto, a família, como um todo, se fortaleceu”.
O terapeuta ressalta o dom de as situações extremas “despertarem o que há de melhor nas pessoas preparadas para isso”, inspirando o aprofundamento dos laços de parentesco. “Tivemos a chance de olhar com mais carinho para os mais idosos. As crianças em casa, junto com os pais, provocaram uma maior aproximação, uma melhor divisão de tarefas. Tivemos a oportunidade de ver o quanto as relações são muito mais importantes do que o lazer, a diversão, o trabalho e outras atividades que nos desviavam do contato íntimo com o outro”, elenca.
Por uma convivência saudável na pandemia
Flexibilidade para conversar e negociar mudanças e regras.
Escuta e acolhimento ao que o outro tem a dizer.
Divisões de tarefas igualitárias em casa (em relação aos pais e aos filhos, considerando suas idades e atividades).
Respeito à rotina de cada um (horários de trabalho e estudo, descanso, lazer, atividades domésticas).
Espaços e momentos individuais, assim como, em grupo, com as pessoas da casa.
Boa comunicação.
Estratégias construtivas de resolução de conflitos,
OBS: Lembrando que cada família é única, com suas histórias e formas de funcionamento. Se surgirem necessidades, procurem acompanhamento psicológico para passar por este momento.
Fonte: Stephanie Gutierres, psicóloga clínica e especialista na abordagem sistêmica
Distantes, mas próximos
Apesar da distância geográfica, os integrantes da família Nunes sempre cultivaram um relacionamento de proximidade. Mas foi na pandemia que eles sentiram mais necessidade de estarem conectados. A revisora de textos Marina Nunes, 28, conta que, por ser filha única, sempre destinou um lugar de importância no coração para a família extensiva: “Como não tenho irmãos, primos, tios e avós sempre tiveram muita participação na minha vida”.
Em um dado momento da pandemia, a rede familiar formado por pais, tio, tia e primos de Marina, marcou uma reunião virtual para conversar sobre os últimos acontecimentos. “Nunca tinha surgido essa ideia até a pandemia. No início, eram reuniões para compartilhar as novidades; depois, começamos a perceber que seria interessante acrescentar algumas coisas para torná-las mais dinâmica e interativa”, explica.
Para temperar os encontros virtuais, eles decidiram dividir a reunião em duas partes. O primeiro momento era voltado para a “terapia familiar”, em que cada um podia desabafar sobre si mesmo. O segundo era dedicado a um debate sobre um tema escolhido por um dos participantes. “A gente designava um mediador para a reunião, que ficava incumbido de trazer um tema para discutirmos. Aí ele pesquisava sobre o tema e enviava um material prévio, como um vídeo, um ted talk, um artigo ou uma reportagem para lermos durante a semana e nos prepararmos para o encontro”, detalha a revisora.
Política, racismo, teologia, criatividade e escrita foram alguns dos assuntos que figuraram nos acalorados debates envoltos por “muito respeito e aceitação de diferentes opiniões”, nas palavras de Marina. “Uma coisa bem positiva foi perceber que, mesmo que a gente não convença o outro, a gente encerra no respeito. Cada um tem o direito e a liberdade de apresentar o seu ponto de vista”.
O tempo final da reunião era separado para uma oração. “Era uma oportunidade de compartilhar casos de amigos e conhecidos que estavam passando por dificuldades e de orarmos juntos por essas pessoas. Essa prática é algo que a gente já tinha antes e que foi reforçada durante esse período”.
Os encontros semanais perduraram por seis meses até que a rotina começou a voltar à normalidade, exigindo que eles ocorressem com menos frequência. Hoje, elas são quinzenais e contam com dinâmicas mais descontraídas, como contação de histórias em grupo. “Foi um tempo que nos aproximou como nunca tínhamos pensado antes. Esses encontros foram um pilar durante todo este tempo de isolamento. Eles nos ajudaram a processar a pandemia individualmente, mas também como família, pois passamos por esse momento de forma conjunta. É uma coisa que veio para ficar, vamos procurar manter essa tradição o quanto puder”, projeta Marina.
Ganhos e aprendizados
É natural que as formas das famílias se relacionarem mudem ao longo do tempo. Contudo, a pandemia impôs novos desafios e acelerou mudanças, à medida que o convívio dentro do lar se intensificou. Para Alex Possato, aceitar as diferenças é o primeiro passo para uma convivência harmoniosa. “A tendência, a partir desse sentimento de compreensão, é nos darmos bem com as pessoas, respeitando as diferenças e também aprendendo a colocar limites, quando somos invadidos. A convivência saudável passa pela nossa flexibilidade em olhar para as relações como elas são, com tolerância, empatia e, também, uma certa proteção à própria individualidade”.
A psicóloga Stephanie Gutierres esclarece que é preciso analisar o contexto e as particularidades de cada família a fim de pensar em estratégias de boa convivência. Mas, de maneira geral, ela elege a comunicação como o principal alicerce: “É uma questão de como os integrantes vão se comunicar, escutar o que cada um vai trazer de necessidade, acolher o que o outro está falando, validar as emoções e sentimentos que estão sendo trazidos. A família precisa tentar chegar a acordos de forma saudável, sem ser uma imposição de um sobre o outro, mas uma negociação entre todas as partes”.
Como saldo positivo do processo de reclusão, está a redescoberta do valor do tempo em família. Canônico cita um estudo da Unicef que identifica a interação familiar como a atividade que mais traz felicidade para as crianças e, consequentemente, para todos. “Eu acredito que esse pode ser um legado positivo: o reconhecimento da necessidade e importância de dedicar mais tempo à formação familiar. E isso tem um impacto público, porque mais tempo em família deve significar melhores condições para o desenvolvimento infantil, e toda sociedade se beneficia disso.”
*Estagiária sob a supervisão de Sibele Negromonte
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