Benjamim Eusébio, de 1 ano e 11 meses, nasceu com lesões no corpo, sem a pele dos pés. Com um dia de vida, na pele e nas mucosas, formaram-se bolhas de água e sangue, com aspecto de queimadura. O diagnóstico de epidermólise bolhosa veio logo que se deu o parto — induzido por dois dias, que acabou com uma cesárea —, mas precisou ser confirmado por um dermatologista pediatra em outro hospital, no HUB (Hospital Universitário de Brasília). Foi o primeiro caso da doença na unidade.
A mãe, Josiane Eusébio, 37, relata que o primeiro contato com a condição do filho foi o mais impactante. “O que vem à cabeça é que a criança não vai sobreviver”, conta. A epidermólise não era desconhecida somente pela família; equipes de saúde não tinham experiência com casos do tipo — realidade quando se trata de doenças raras.
Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), uma doença rara é a que afeta até 65 pessoas a cada 100 mil indivíduos. Uma pesquisa da Interfarma mostrou que 13 milhões de pessoas têm doenças raras no Brasil. São mais de seis mil tipos de enfermidades consideradas raras: 30% morrem antes de completar cinco anos; 75% afetam crianças e 80% têm origem genética.
Com pesquisa e muita dedicação, o caso de Benjamim, o caçula de três irmãos, vem sendo tratado e controlado. A família conseguiu o diagnóstico por meio de mapeamento genético, doado por um laboratório, e, com isso, passou a ter aconselhamento. “Nos ensinaram a manusear as lesões. Ainda assim, vários cuidados não se aplicavam à condição do bebê, que exige toque delicado e tem limitações da própria doença”, lembra. O tempo ensinou. Josiane ganhou prática para manusear os curativos e entender as substâncias que Benjamim poderia receber na pele.
Nessa missão, a APPEB (Associação de Parentes, Amigos e Portadores de Epidermólise Bolhosa Congênita) foi uma importante rede de apoio. Foi com a associação que os pais passaram a compreender a patologia. “Entendemos que as lesões não se davam por atrito, mas, sim, pela fragilidade da pele, característica da doença. E que, às vezes, a pele poderia até estar íntegra, mas existiriam lesões internas, tudo de forma espontânea”, conta a mãe.
As bolhas e as lesões cutâneas fazem o portador de epidermólise perder vitaminas e nutrientes. Por isso, é preciso acompanhamento com uma equipe multidisciplinar: nutricionista, dermatopediatra, gastroenterologista. Na APPEB, as pessoas se mobilizam para garantir que os portadores vivam da melhor forma possível. Josiane partilha experiências com outras famílias e consegue algumas doações.
Mas a doença vira problema secundário frente ao desconhecimento e ao preconceito que acompanha quem tem epidermólise. Para a mãe, dois desafios imperam: “Primeiro, é fazer a doença conhecida, ser obrigada a se informar e levar isso até para os médicos; segundo, é lidar com a incompreensão das pessoas.”
No dia a dia, Josiane anda até com laudo para comprovar a doença do filho, mostrando, para quem questiona, que não são maus-tratos. “Penso que falo por todos: o nosso desejo é que a sociedade tenha um olhar mais sensível a qualquer doença rara.”
A psicóloga Fabiana Andrade, mestre em ciências do comportamento, sustenta que a sociedade precisa estar envolvida com pessoas com deficiência. Segregar não faz sentido. “Não crescemos com pessoas deficientes em volta; no máximo, se a deficiência for considerada leve”, explica. Para a especialista, se, desde pequenas, as crianças fossem expostas a essa convivência, a aceitação seria muito mais fácil.
Outro ponto é que famílias com doenças raras ou outras doenças que exigem cuidados intensivos tendem a se aproximar de pessoas semelhantes, para referência e informação. Mas a socialização, segundo Fabiana, não deve ficar restrita a esses grupos. Até o círculo da família tende a ficar mais restrito. Ela destaca, então, a necessidade de se aprimorar o acesso à socialização, ao lazer e a demais oportunidades de convivência integrada. “Toda condição humana é uma condição. Precisamos estreitar o convívio e naturalizá-lo”, reforça.
Grupos transformadores
Ana Paula Silva, presidente da Associação de Esclerose Múltipla do DF, a Apemigos, trata a esclerose múltipla, uma doença rara, há quatro anos. Contudo, ela suspeita que tem a patologia há muito mais tempo. Chegou a passar por diversos médicos desde a adolescência e recebeu uma série de indicações incorretas, como febre reumática, fibromialgia, depressão e neuromielite óptica, até finalmente ter o diagnóstico correto.
Essa imprecisão na determinação da enfermidade é uma realidade para muitos pacientes com esclerose múltipla, que não sentem melhora no quadro clínico e sofrem sem o tratamento adequado. Por isso, a associação advoga pela criação de um centro de referência e reabilitação para pacientes acometidos por essa doença, para direcionar os pacientes para profissionais preparados para lidar com o quadro e também para facilitar o acesso ao tratamento, que ainda enfrenta problemas de abastecimento e distribuição.
Ana Paula está na Associação desde a descoberta da enfermidade, a fim de lutar por seus direitos e acolher pessoas que enfrentam a mesma realidade, afinal a doença é crônica, não possui cura, mas tem tratamento e demanda atenção frequente. Ela conta que diversas pessoas já frequentaram o grupo e que a maioria chega em busca de informação e ajuda — em alguns casos, desesperados e sem perspectiva. A maior importância, segundo Ana Paula, é “perceber que há uma vida após o diagnóstico, que não é uma sentença final”. Atualmente, a Apemigos conta com mais de 400 pessoas que participam de alguma forma das integrações promovidas.
Grupos em aplicativos de mensagens e eventos, como piqueniques, encontros e reuniões, auxiliam os pacientes a aceitarem o diagnóstico e normalizarem a condição aos olhos de parentes e amigos, que costumam se aproximar dos grupos.
Ajuda mútua
São momentos importantes, pois permitem a troca de experiências, o apoio mútuo e, principalmente, a solução de problemas, como em casos que necessitam de atendimento médico ou quando há falta de remédios essenciais nas Farmácias Populares. Nessas ocasiões, são organizadas reivindicações para a Secretaria de Saúde e feitas doações para pacientes que necessitam de forma urgente da medicação, para prevenir sequelas e lesões causadas pela ausência dos remédios.
Durante a pandemia, a associação não parou e vem realizando atividades adaptadas para o momento, assegurando a saúde e o bem-estar dos membros. Ana Paula conta que promoveram reuniões virtuais, atendimento de psicólogos e fisioterapeutas remotamente, e, em agosto, foi realizada uma entrega de kits informativos, no formato drive thru, no Parque da Cidade, devido ao mês de conscientização da esclerose múltipla, cumprindo todos os protocolos de segurança.
Renata Friedl, que foi diagnosticada no ano passado, conta que começou o tratamento cedo por causa da Apemigos, onde conseguiu uma doação dos remédios que precisava. Ela afirma que sem a contribuição teria ficado aguardando sem tratamento por dois meses até a retirada dos medicamentos no Sistema Único de Saúde (SUS), devido à burocracia envolvida.
Além da associação, que auxilia no âmbito emocional e físico, a família e os amigos foram extremamente importantes no processo. Nunca deixaram de apoiá-la, tanto nas demandas cotidianas quanto nos momentos de medo e inseguranças na adaptação.
Sinônimo de união
Diovana Loriato, 43, é diretora do Iname, o Instituto Nacional da Atrofia Muscular Espinhal, uma associação sem fins lucrativos de pacientes e familiares com AME, sigla para atrofia muscular espinhal. AME é uma doença neurológica que destrói os neurônios motores, responsáveis pelas atividades dos músculos, como andar, respirar, falar e engolir. O instituto trabalha com três pilares: assistência, capacitação e advocacy, que argumenta em favor da comunidade, reivindicando políticas públicas adequadas para os pacientes.
O grupo recebe e acolhe famílias com diagnóstico da doença e ajuda a iniciar as várias formalidades para o tratamento farmacológico. “Quanto antes tratarmos, melhor é o resultado. Por isso, nós nos mobilizamos para conseguir respiradores para as famílias, além de dar suporte psicológico. Isso, literalmente, salva vidas”, conta.
A jornada de Diovana iniciou quando o filho mais velho, Davi Loriato Hermesmeyer, de 9 anos, foi diagnosticado com o tipo 1 de AME, o mais grave. “O diagnóstico é o momento que mais traumatiza. Há nove anos, não existia medicamento que pudesse interromper a progressão da doença”, lembra. Quando conheceu outras famílias com crianças com AME e teve mais contato com a parte prática de cuidados, ela passou a ver esperança para o filho.
Em 2017, Davi recebeu uma medicação na Itália, que ainda não estava aprovada no Brasil. “Quem tem AME tem pressa”, justifica Diovana. A família ficou quase um ano fora, o que foi possível porque tinha cidadania italiana. Na volta, Diovana passou a se envolver com as causas do Iname, como forma de informar e retribuir a ajuda que já tinha recebido. “Penso que, quando nos unimos, temos conquistas de verdade.”
Para ela, a luta por tratamento farmacológico, acesso a terapias multidisciplinares e inclusão é o mais exaustivo. “É uma doença fatal e degenerativa, mas o fato de que não conseguirmos ter os nossos direitos é o maior desafio”, diz.
Perspectivas no Brasil
O coordenador do Centro de Referência para Doenças Raras do Instituto Nacional de Saúde da Mulher, da Criança e do Adolescente Fernandes Figueira (IFF/Fiocruz), Juan Llerena Jr, complementa que as doenças raras são doenças órfãs, tanto na escassez da atenção à saúde como nas pesquisas clínicas. “A indústria farmacêutica e as políticas públicas de saúde negligenciam esses pacientes”, diz.
As patologias têm início, geralmente, na idade pediátrica e são genéticas. De caráter multissistêmico, são crônicas e degenerativas, com alto risco de incapacidade. É a segunda causa de óbito infantil no Brasil.
O que deveria motivar pesquisas e políticas com urgência não acontece bem assim. Juan cita o atraso no diagnóstico, que pode durar décadas, como efeito devastador para o paciente. Nesse tempo, o quadro clínico tende a piorar. Somado a isso, há ainda os medicamentos, que costumam ser de alto custo.
Ainda assim, avanço vem sendo feito na área. No Brasil, teve início uma política com a publicação da Portaria SAS/MS nº 199, de 2014, implantada por meio das Diretrizes para Atenção Integral às Pessoas com Doenças Raras no SUS.
Em termos de pesquisas, o coordenador destaca o projeto nº 25/2019 do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), com o apoio do Ministério da Saúde de Mato Grosso do Sul, que vem realizando um estudo amplo para coleta de dados e aspectos clínicos no contexto de várias doenças. A Rede Nacional de Doenças Raras do Brasil, formada pelos Hospitais Universitários, Serviços de Referência em Doenças Raras e Serviços de Triagem Neonatal, também se organiza em prol de mais conhecimento e atenção na área.
*Estagiária sob a supervisão de Sibele Negromonte
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