Para ser aceita no grupo de meninas da escola, a empreendedora Sara Alves, 21 anos, começou a alisar os fios ainda no início da adolescência. Ela acreditava que, se tivesse o cabelo liso como o das outras meninas, seria considerada bonita pelos colegas. Mas, hoje, ao sentir a necessidade de conhecer seu fio natural, decidiu iniciar a chamada transição capilar.
“Desde criança, eu usava os fios trançados e, depois, passei a alisá-los. Não conhecia meu cabelo natural e decidi me dar a oportunidade de conhecer meu cabelo de verdade”, conta. Sara explica que o seu maior medo era fazer o big chop — processo em que a parte alisada é cortada. “Depois que entendi que eu só cortaria quando me sentisse preparada, eu me encorajei. No dia 30 de setembro de 2020, iniciei minha transição capilar”, relembra.
Já a estudante de biomedicina Thalita Coelho, 18 anos, decidiu passar pelo processo de transição aos 16 anos, quando, segundo ela, não aguentava mais ser refém das químicas que destruíram o seu cabelo. Para ela, a dupla textura, durante o processo, era horrível, mas o tempo foi, de longe, o seu pior inimigo. “Eu ainda tinha muita vontade de alisar, porque demora muito”, justifica.
Para a empresária Rayssa Pires, 31, a vontade de mudar veio com o fato de o cabelo ter caído muito após o nascimento da filha. Aos 25 anos, ela decidiu fazer a transição capilar e assumir a textura natural dos fios. “Faz seis anos desde a última escova progressiva”, comemora.
Muito além do físico
A transição capilar vai além da atitude de deixar de passar químicas alisadoras nos cabelos. Trata-se sobre uma nova forma de se enxergar, um resgate da ancestralidade e uma quebra de paradigmas. É, sobretudo, um momento de aceitação e paciência. O emocional é facilmente afetado, pois, afinal, o cabelo mexe com a autoestima da maioria das mulheres.
A psicóloga Letícia Silva, que faz parte do corpo clínico de atendimento on-line da Casa de Marias, projeto que propõe escuta de atendimento, explica que a maioria das mulheres tende a ficar mais sensível ao passar pelo processo de naturalizar as madeixas. E fala sobre os motivos que contribuem para isso acontecer. “É importante compreender as subjetividades e os contextos sociais. Um desses motivos pode ser porque, ainda hoje, o cabelo liso é tido como padrão de beleza.”
Para a psicóloga, ainda há muita discriminação racial nas relações afetivas, familiares, na escola e no mercado de trabalho. “Essas mulheres têm que lidar, por vezes, com sua própria insegurança e com o julgamento social, em que as pessoas ficam dizendo como acham que seus cabelos ficam mais bonitos — geralmente, impõem que voltem a alisá-los. E elas podem se sentir não aceitas e pertencentes”, detalha.
Autoconhecimento
De fato, ao longo do processo de transição capilar, as mulheres vão se reconhecendo em si mesmas. Rayssa conta que sempre achou que seu cabelo fosse cacheado e que, há pouco tempo, descobriu, por acaso, ser ondulado. “Um dia, na fila de um banco, uma moça me disse: seus cabelos são ondulados”, conta, bem-humorada.
Sara, que acabou de passar pelo tão temido big chop, fala que está se reconhecendo pela primeira vez em anos. “É libertador se ver livre de um padrão que me prendeu por mais de 10 anos”, relata. Para Thalita, a transição foi importante para que se aceitasse como é. “Saber que meu cabelo é bonito, sim. E não precisa ser liso para isso.”
Aceitar e aprender a lidar com a textura ou as texturas naturais dos fios requer força de vontade. Mas o apoio de pessoas próximas e o acompanhamento de um profissional da psicologia que entenda do assunto também fazem a diferença.
Letícia Silva esclarece que compreender é um dos papéis desse profissional. “Ter uma escuta ativa e compreender também o que motiva a pessoa a fazer a transição, trazer elementos que possam contribuir com identificações afirmativas e fortalecer a autoestima da pessoa nesse processo, que não é fácil. Pensar, junto com ela, formas de cuidar de si e do seu cabelo nesse processo, e que essa descoberta — ou redescoberta — de seu cabelo natural possa ser uma forma de se reconectar consigo mesma e com outras mulheres.”
*Estagiária sob a supervisão de Sibele Negromonte