Especial

Pelo direito de vestir o que quiser

Um dos legados das Olimpíadas de Tóquio, a equiparação de gênero levantou uma forte discussão: a objetificação do corpo feminino. Uma conquista que vai além das arenas esportivas

As Olimpíadas de Tóquio chegaram ao fim no último fim de semana, mas deixaram um legado quando a discussão é igualdade de gênero, dentro e fora das arenas. A participação feminina, que cresceu ao longo do tempo, somou 49% no evento deste ano. Dos 302 atletas do Comitê Olímpico do Brasil, 141 eram mulheres. E alguns feitos marcaram a competição. A equipe da Alemanha de ginástica artística saiu do convencional e optou por macacões que cobrem as pernas, em vez do tradicional collant, em movimento contra a sexualização na modalidade. Elas já haviam vestido calças compridas no Campeonato Europeu de Ginástica Artística, realizado em abril. A seleção entende que a decisão deve ser tomada com base no que as atletas sentem e querem. E depende somente disso.

“O corpo da mulher sempre foi controlado e gerenciado pela sociedade, pela família, pelos relacionamentos amorosos e pensado para fins de reprodução”, analisa a psicóloga e psicanalista Katia Tarouquella, do Departamento de Psicologia da Universidade de Brasília (UnB). Para ela, a escolha das ginastas alemãs pauta ousadia e tira o corpo feminino de um lugar de encenação. Katia justifica: “Parece existir um ideal, que é o que a plateia quer. Como se fosse um corpo colocado em cena para ser visto”. Para a especialista, existem questões de ordem biológica e subjetiva que deveriam deixar a mulher escolher mais.

A psicóloga explica o quanto o corpo, no esporte competitivo, parece deixar de pertencer às atletas. “O que levanta uma questão sobre as histórias de abuso, como da Simone Biles. Além disso, há a Lei Joanna Maranhão, que nasce, no contexto do esporte, da violência e do silenciamento. Nesse caso, tem essa ideia da apropriação do corpo da menina pelo treinador.”

Com que corpo eu vou?

Reprodução/Instagram - Modalidade estreante nas Olimpíadas, o skate deu aula de diversidade ao dar várias opções de uniforme às atletas

Segundo Katia, há uma dicotomia do “como vou me apresentar?” e “com que corpo gostariam que eu me apresentasse?”. As mulheres parecem precisar equilibrar uma performance excelente com um corpo escultural, o que nem sempre é compatível. São vários os fatores de preocupação: o peso, a forma de usar o uniforme, o quão feminina é.

O resultado? Katia chama a atenção para a forma problemática com a qual o sujeito tende a acabar se relacionando consigo mesmo. Controles alimentares, preocupação com o olhar do outro, a noção de um corpo considerado pouco sedutor. “Além da questão do racismo. Meninas negras sentem a incompletude na pele. Tem os próprios corpos negados e atacados quando colocados em cena em competições”, complementa.

O esporte faz parte da vida de Fernanda Basso, 37 anos, desde criança. Foram 15 anos jogando handebol e, agora, já são oito no futevôlei. Atleta profissional nas duas modalidades e empresária, ela conta que temas como o uniforme feminino e o machismo já foram muito discutidos em quadra. “Normalmente, os homens jogam só de sunga e todos encaram bem. Mas a mulher jogar de biquíni parece dizer sobre o caráter dela, entendem como algo vulgar.”

No dia a dia, ela relata ser complicada tanto a aceitação da mulher no futevôlei quanto a questão do respeito ao corpo: “Já peguei pessoas atrás de mim tirando foto… Enquanto eu jogava.” O fato de ser solteira e viajar para competir em outros estados, segundo ela, também guarda ideias de retrocesso e que machucam.

Os treinos acontecem duas a três vezes na semana e são mistos. Para a prática, Fernanda costuma escolher biquíni na parte de cima e um short mais folgadinho. Ela conta que, raras vezes, opta pelo biquíni na parte de baixo — apenas quando o espaço está mais vazio e com pessoas conhecidas. Diz que se não fosse pelas situações desagradáveis, vestiria, sim, roupas mais frescas e curtas com mais frequência.

Nos campeonatos, Fernanda conta que os uniformes costumam ser os mesmos para homens e mulheres. A exceção é a modelagem. Para elas, a vestimenta costuma ser mais curta e acinturada. “Pessoalmente, prefiro o estilo mais ajustado, ajuda no movimento e a não passar calor”, resume.

Trajes democráticos
Reprodução/Instagram - As ginastas alemãs se apresentaram com macacões cobrindo as pernas, em vez dos tradicionais collants

 

Pesquisadora da história da moda, Geórgia Castro, do Departamento de Design Industrial da Universidade de Brasília, explica que a escolha do material e os ajustes de modelagem, feitos para a configuração do corpo masculino e feminino, são mesmo importantes para garantir conforto e flexibilidade. É a chamada tecnologia ou design de material.

Entretanto, isso não impede que se estude, caso a caso, no esporte, modos de adaptar e melhorar as vestimentas. Para Geórgia, a possibilidade de escolher o que se quer vestir faz todo o sentido. “Uma roupa com um determinado corte pode ser desconfortável para uma atleta se movimentar. Parece que não chegamos a considerar isso. Finalmente, estamos ouvindo vozes femininas que nos façam discutir sobre o tema. Até que ponto a exposição desses corpos é importante?”, reflete.

Fato é que desnudar o corpo feminino incomoda há séculos. Para a professora, desde a Idade Média, as mulheres vêm sendo caladas nesse sentido. Por anos, eram proibidas até de assistir a algumas competições. Agora, quando praticam algum esporte, ao mesmo tempo em que se cobra delas uma não vulgarização, são exigidos alguns padrões no que tange à sexualidade.

Como a moda é conceitual e reflete costumes e culturas, é provável que desenvolva peças para prosseguir com essa discussão, segundo ela. Essa lógica pode ser vista em alguns esportes já marcados pela maior equidade de gênero e que destacaram a importância de simplesmente se sentir bem nos uniformes. “No skate, as vestimentas expressam isso. Os meninos podem ter cabelos grandes ou não, as meninas também vestem shorts, justos ou folgados. Não há uma preocupação de gênero. Em parte, vem da essência da modalidade.”

As roupas usadas no surfe, que remetem à roupa de banho, marcante na história do vestuário do esporte, também expressam essa projeção do agênero. A característica colante ajuda na proteção do corpo e a lidar com a temperatura da água. “A modelagem pode até mudar, mas o conceito para os dois é o mesmo”, ressalta Geórgia.

Mais rigor

A Lei Joanna Maranhão qstão surgiu a partir de uma denúncia da nadadora, em 2018, sobre o abuso sexual que sofreu aos 9 anos de idade. Hoje, fica estabelecido que o prazo de prescrição de abuso sexual de crianças e adolescentes seja contado a partir da data em que a vítima completa 18 anos.

Luta contra o machismo

Maria Fernanda Marceline, historiadora e membro da equipe da Sempreviva Organização Feminista (SOP), acredita que, por mais que a sociedade ache que as pautas feministas estejam fazendo sucesso, nos casos em que as atletas revindicaram seus direitos de usar a roupa que acham mais confortáveis, e isso é negado, é possível assistir ao machismo ainda enraizado na sociedade.

Diariamente, somos bombardeados de discursos que dizem que as mulheres já conquistaram muito. Mas, ao mesmo tempo, é visível que ainda há um longo caminho a ser percorrido. “Esse tipo de reação no esporte nos revela exatamente isso. Que ainda existe muito trabalho a ser feito contra o machismo”, ressalta Maria Fernanda.

O que a historiadora quer dizer é que, apesar de sempre ser divulgado “meu corpo minhas regras”, em uma competição internacional que envolve dinheiro, patrocinadores e público, esse mantra não vale tanto. “Ainda vemos uma obrigatoriedade da hiperssexualização das mulheres no esporte”, explica.

A roupa é apenas a ponta do iceberg. A falta de poder na decisão da vestimenta transparece o silêncio dessas mulheres durante anos sobre os salários desiguais, a falta de oportunidades e investimentos nas categorias que atuam e, principalmente, a dificuldade de retornar ao esporte após ser mãe. “Há uma pressão brutal em cima dos atletas e, no caso das mulheres, tem mais esse ingrediente da cobrança de sensualidade”, conta.

Para ela, as roupas olímpicas das atletas podem ser vistas como o reforço de estereótipos. Quando você continua representando mulheres como objetos sexuais, como mercadoria que vende carro, que vende roupa, que vende tantas coisas. A historiadora ressalta que, enquanto no Brasil não houver um investimento na educação e no esporte, continuará a existir a reprodução de um padrão maléfico, especialmente para as mulheres.

Tânia Mara Campos de Almeida, professora do Departamento de Sociologia da Universidade Brasília (UnB) e integrante do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Mulheres (NEPeM), lembra que as atletas, no caso das Olimpíadas, usaram o espaço para um debate que já vem acontecendo na sociedade. “As discriminações sofridas, violências e essa objetificação do corpo feminino, que também está muito presente no ambiente de esporte de alto rendimento.”

Mas isso não é uma pauta levantada no ano de 2021. A professora explica que as atletas mostram que estão incomodadas há algum tempo. Muitas vezes, o patrocinador daquele esporte ou da atleta exige que elas coloquem o biquíni ou roupas justas para subir ao pódio. “As empresas tentam associar a marca da roupa do patrocínio que elas recebem ao corpo delas”, contextualiza.

Da mesma forma, nas Olimpíadas de 2016, as mulheres ficaram muito incomodadas com o fato de o esporte ter tido menos foco, em comparação ao corpo delas, que ficavam em mais evidência do que o esporte em si. “O que muitas vezes agrada aos patrocinadores, agrada ao público, mas desvaloriza a mulher enquanto atleta”, explica.

As mães atletas ou que competiram durante a gestação sentem ainda mais dificuldade para se manter no esporte, pois precisam estar com suas crianças e, por muitas vezes, não existe a opção de levá-las para um centro olímpico ou viagens.

Além disso, Tânia explica que o foco, para muitas atletas, tende a virar a maternidade, como se fosse a identidade delas. Assim, passam a não ser mais reconhecidas pelos seus méritos nos esportes.

Regulamento questionável

Reprodução/Instagram - Jogadoras de handebol de praia da Noruega foram multadas por se negarem a usar biquíni

Em um torneio europeu de handebol de praia, o time feminino da Noruega optou por usar short em vez de biquíni na parte de baixo e acabou sendo multado. A Federação Europeia de Handebol estipulou 150 euros de multa para cada jogadora. Essa mobilização na modalidade já aconteceu, em 2018, entre atletas brasileiras. A norma internacional pontuava que a largura lateral do uniforme feminino deveria ter, no máximo, 10cm. Para os homens, shorts mais largos. A manifestação pública das atletas do time do Cepraea criticava, assim, o critério estético da vestimenta. Com isso, vários protocolos internacionais foram atualizados para contemplar também o uso de shorts.

*Estagiária sob a supervisão de Sibele Negromonte

 

Reprodução/Instagram - Modalidade estreante nas Olimpíadas, o skate deu aula de diversidade ao dar várias opções de uniforme às atletas
Reprodução/Instagram - As ginastas alemãs se apresentaram com macacões cobrindo as pernas, em vez dos tradicionais collants
Reprodução/Instagram - Jogadoras de handebol de praia da Noruega foram multadas por se negarem a usar biquíni